"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sexta-feira, novembro 23, 2007

Le Monde Diplomatique - Nov 07

Assim se colonizou a África negra

No século 16, as invasões portuguesa e marroquina iniciaram a desestruturação dos reinos e impérios ao sul do Saara — onde havia cidades de mais de 100 mil habitantes. Após três séculos de guerras, e escravidão ocidental e árabe, a população estaria reduzida a um quarto da original e as sociedades, arrasadas

Louise Marie Diop-Maes

No século 16, na maior parte das regiões da África subsaariana, existiam cidades de tamanho considerável para a época (de 60 mil a 140 mil habitantes ou mais), aldeias grandes (de mil a 10 mil habitantes), parte de reinos e impérios notavelmente organizados, territórios de habitat disperso denso. É isso que revelam os vestígios e escavações arqueológicas, bem como as fontes escritas, tanto externas (árabes e européias, anteriores a meados do século 17) como internas (autóctones, escritas em árabe, língua da religião, ou no latim da Europa). A agricultura, criação de animais, caça, pesca, artesanato muito diversificado (tecidos, metais, cerâmica etc.), navegação fluvial e lacustre, comércio local e distante, com moedas específicas, eram bem desenvolvidos e ativos.

O nível intelectual e espiritual era análogo ao do Norte da África na mesma época. O grande viajante árabe do século 14, Ibn Battuta, louva a segurança e a justiça encontrada no império do Mali. Antes da utilização de armas de fogo, o comércio árabe permanecia secundário em relação à atividade econômica e ao volume da população. Leão, o Africano (início do século 16), menciona que o rei de Bornu (região chadiana) organizava apenas uma expedição por ano para capturar escravos [1].

A partir do século 16, a situação modifica-se radicalmente. Os portugueses penetram ao sul da foz do rio Congo, conquistam Angola, destróem os principais portos da costa oriental e alcançam o atual território de Moçambique. Os marroquinos atacam o império songai, que resiste durante nove anos. Os agressores dispõem de armas de fogo; os subsaarianos, não. Milhares de habitantes são mortos ou capturados e condenados à escravidão. Os vencedores se apossam de tudo: homens, animais, provisões, objetos preciosos e o que mais possam pegar.

Reinos e impérios são pulverizados em principados — levados a guerrear com freqüência cada vez maior, a fim de ter prisioneiros que possam ser trocados, principalmente por fuzis, indispensáveis na defesa e no ataque. Populações são deslocadas — provocando novos choques, campos de refugiados, a propagação de um estado de guerra latente até o coração do continente. As investidas militares multiplicam-se, ao ponto de atingir, no nordeste da África Central do início do século 19, o número de 80 por ano, segundo o erudito tunisiano Mohamed el Tounsy, que viajou por Darfur e Ouaddaï (atual Chade) nessa época [2]. A porcentagem de cativos em relação ao conjunto da população aumenta continuamente, entre o século 17 e o fim do 19. “Distritos outrora densamente povoados foram reconquistados pelo mato” ou pela floresta [3].

A partir das invasões portuguesa e marroquina,
toda a estrutura social entra em colapso

O tecido sócio-econômico e político-administrativo, que fora constituído aos poucos, se corrompe e arruína inteiramente. Nos locais onde o cultivo de alimentos e a obtenção de água são difíceis, as pessoas vêem-se, com freqüência, reduzidas à auto-subsistência. Uma regressão enorme ocorre em todos os domínios. O destino dos cativos se agrava. Uma nova categoria social nociva emerge: a dos agentes comerciais, dos encarregados de caravanas, dos intérpretes, dos intermediários, dos abastecedores — os “colaboracionistas” da época, enfim. Alguns príncipes tentam, em vão, se opor a esse comércio cada vez maior de seres humanos. Mas o rei de Portugal responde negativamente às cartas de protesto de Alfonso, o rei do Congo — convertido ao cristianismo. Um de seus sucessores é reduzido ao silêncio pelas armas. O mesmo em Angola.

O posto de comércio francês no Senegal fornece armas aos mouros para que ataquem o damel [4], que não autoriza a passagem das caravanas de escravos. É portanto a demanda externa que provoca uma enorme disseminação e proliferação da escravidão na África negra.

No começo, os reis entregavam apenas os condenados à morte. Mas os portugueses desejam efetivos mais volumosos, que eles próprios se encarregam de capturar, atacando sem qualquer outro pretexto. De 1575 a 1580, Dias Novais, primeiro governador de Angola, expedia cativos a um ritmo de 12 mil por ano em média [5]. É duas vezes mais, só partindo de Angola, que todo o tráfico transaariano na mesma época, se tomarmos como referência, por exemplo, os números colhidos pelo historiador norte-americano Ralph Austen.

No século 17 e, principalmente, no 18, a maior parte dos armadores europeus — sobretudo os holandeses, ingleses e franceses — dedica-se a tal tráfico marítimo ultra-lucrativo. Na segunda metade do século 18, atingem-se números extraordinários: exceto nos anos de guerra entre franceses e ingleses, centenas de navios embarcam de 150 mil a 190 mil cativos por ano [6]. A insegurança generalizada e crescente multiplica a penúria, fome, doenças locais e, pior de tudo, doenças trazidas de fora — particularmente, a varíola. As endemias se instalam e as epidemias se alastram.

Guerras, tráfico de escravos, queda da natalidade: um enorme déficit demográfico reduz a um quarto a população

Surge um enorme déficit demográfico. Ele é devido, em primeiro lugar, a todos os que morreram por causa dos ataques e durante as transferências do interior para os pontos de partida e os entrepostos; aos que se suicidaram e aos revoltosos executados no momento do embarque; aos óbitos resultantes da multiplicação das investidas e das guerras internas provocadas pela desarticulação de entidades políticas, pela fuga das populações, pela vontade cada vez maior de fazer prisioneiros; aos mortos pela fome (após pilhagem de colheitas e estoques) e por doenças de todo tipo; aos que padecem devido à introdução de armas de fogo e álcool adulterado, ao retrocesso da higiene e dos conhecimentos adquiridos.

A todos esses mortos somam-se os cativos e cativas arrancados do subcontinente. O próprio número de nascimentos entra em queda, devido à desarticulação da sociedade. Como durante a Guerra dos Cem Anos, que levou a França a perder metade de sua população, o decréscimo se fez de maneira irregular, variando conforme a região. Acentua-se fortemente a partir do fim do século 17. De meados do século 18 em diante, o decrescimento global é maciço e rápido.

É possível avaliar esse decrescimento? Para medir os efeitos demográficos da Guerra dos Cem Anos na França, comparamos o número de residências existente antes da guerra com o número contabilizado depois. Na África, tanto quanto na Índia, não dispomos de registros de batismos e outros, mas sabemos, a partir dos viajantes e exploradores do século 19, que, na parte ocidental, as maiores aglomerações não contavam com mais de 30 mil a 40 mil habitantes. Eram, portanto, cerca de quatro vezes menores do que as maiores cidades do século 16.

Segundo os mesmos testemunhos, pode-se observar que a diferença era ainda maior entre a população rural ou entre o número de combatentes que um príncipe ou um líder guerreiro podia arregimentar. Será a relação aproximada de 4 para 1, observada na África Ocidental, representativa da diminuição do conjunto da população africana negra entre os séculos 16 e 19? Do cabo das Palmas [7] ao sul de Angola, as perdas foram ainda mais elevadas. Gwato (Ughoton), o porto de Benin, contava 2 mil residências quando os portugueses lá chegaram e não mais que 20 ou 30 quando os exploradores do século 19 apareceram [8]. O historiador norte-americano William G. Randles mostra que a população de Angola havia igualmente se reduzido em proporções imensas [9]. Por outro lado, as regiões do Chade, no interior, permaneceram bastante povoadas até cerca de 1890 — com cidades de 3 mil habitantes em 1878.

A mesma destruição da Guerra dos Cem Anos na Europa,
porém por mais de três séculos...

No atual Sudão, o despovoamento começa com a dominação escravista do paxá egípcio Mohammed Ali, em 1820. Na África Oriental, os planaltos elevados, como em Ruanda e Burundi, permanecem densamente povoados, em torno de 100 habitantes por quilômetro quadrado, contrariamente ao que se deu na região do lago Niassa. Na África do Sul, a partir da primeira metade do século 19, a ação dos ingleses se soma à dos bôeres [10] para dizimar as populações autóctones. No conjunto, parece razoável considerar que a população da África negra era, no século 19, três a quatro vezes menor do que no século 16.

Mas será possível saber o tamanho da população da África negra perto de meados do século 19? A conquista colonial (artilharia contra fuzis de tráfico), o trabalho forçado multiforme e generalizado, a repressão das numerosas revoltas por meio do ferro e do fogo, a subalimentação, as diversas doenças locais e, de novo, as doenças importadas e a continuação do tráfico oriental reduziram ainda mais a população que baixara para quase um terço, já em 1930. Nessa época, medidas administrativas e sanitárias propiciaram a retomada do crescimento demográfico, que foi cada vez maior.

Essa avaliação foi possível porque, com a presença européia no interior dos territórios, certos dados estatísticos foram acrescentados às fontes narrativas [11]. Em 1948-1949, um recenseamento geral e coordenado foi efetuado em toda a África subsaariana. Após a correção por falta de declaração, a população foi estimada em, aproximadamente, 140 a 145 milhões de pessoas. Pode-se supor que, em 1930, a população somava de 130 a 135 milhões de indivíduos. Esses representavam, então, dois terços da população aproximada das décadas de 1870-1890 — cerca de 200 milhões. Segundo o resultado de minhas pesquisas, a população era da ordem de pelo menos 600 milhões (uma média de 30 habitantes por km2) no século 16 . Os números antigos de 30 a 100 milhões são totalmente imaginários, como bem o mostrou Daniel Noin, ex-presidente da Comissão de População da União Geográfica International (IGU, segundo as iniciais em inglês) [12].

Entre meados do século 16 e 19, a população subsaariana decaiu em cerca de 400 milhões. Desse total, a porcentagem dos que foram deportados do litoral e do Sahel é impossível de precisar, em função do volume do contrabando e do número muito elevado de clandestinos, antes e depois da proibição do tráfico. Segundo diversas fontes e pesquisas, os números oficiais para o tráfico europeu são, na realidade, o dobro [13]. As estimativas do tráfico árabe são também aleatórias. Para fornecer uma ordem de grandeza, digamos que o número, para os dois tráficos somados, deva se situar entre 25 e 40 milhões. Continua ainda um tanto discutível, mas não resta dúvida que as estimativas frágeis não dão conta da enormidade das dissimulações. Cerca de 90% da perda de população deveram-se a mortes ocorridas na própria África. Isso se explica pela situação de grave insegurança no conjunto do território, que persistiu por quatro séculos, resultado dos efeitos destrutivos, diretos e indiretos, de dois tráficos simultâneos, cada vez mais intensos.

Uma Guerra dos Cem Anos que durou três séculos, com as armas da Guerra dos Trinta Anos, e depois as dos séculos seguintes. A conquista e a ocupação colonial determinaram, de forma permanente, a dependência do exterior, tanto cultural como econômica, e tornaram, problemática, a reestruturação do conjunto subsaariano e de cada uma de suas regiões. Não faz nem dez anos que a África negra recuperou o nível populacional que detinha no século 16. E o fez de forma muito desequilibrada, devido à congestão das capitais.



[1] Jean-Léon l’Africaine, Description de l’Afrique, Paris, Adrien-Maisonneuve, 1956.

[2] Pierre Kalck, Histoire de la République centrafricaine, Paris, Berger Levrault, 1995.

[3] Charles Becker, "Les effets démographiques de la traite des esclaves en Senegambie", em De la traite de l’esclavage, actes du Colloque de Nantes, t. 2, Nantes-Paris, CRHMA e SFHOM, 1988.

[4] Título dado aos soberanos animistas do reino de Cayor (Senegal).

[5] William G. Randles, De la traite à la colonisation: les Portugais en Angola, em Annales ESC, 1969.

[6] Idem.

[7] Localizado na fronteira entre o que são hoje a Libéria e a Costa do Marfim, margem Norte do Golfo da Guiné (Nota da edição brasileira)

[8] Raymond Mauny, Les siècles obscurs de l’Afrique, Paris, Fayard, 1970

[9] Charles Becker, op. cit.

[10] Colonizadores holandeses (e franceses).

[11] Wiliam Randles, op. cit.

[12] Idem.

[13] Daniel Noin, La population de l’Afrique subsaharienne, Éditions Unesco, 1999.

Le Monde Diplomatique - Nov 07

Até onde irá a crise financeira

Um dos maiores estudiosos das finanças internacionais investiga, em diálogo com dois livros recém-publicados, os tremores dos últimos meses. Seu diagnóstico: vêm aí grandes solavancos, que podem atingir a Ásia e mudar a economia do planeta

François Chesnais

No início de agosto, surgiu uma crise financeira no setor dos empréstimos hipotecários, nos Estados Unidos. Imediatamente, ela se propagou para outras partes do sistema financeiro mundial, com uma rapidez e uma amplitude que surpreenderam a comunidade dos investidores e dos operadores (os “mercados”), bem como os observadores. Os bancos centrais intervieram rapidamente, principalmente com o fornecimento de crédito a taxas baixíssimas para os bancos em dificuldade (a que se dá o nome de "criação de liquidez") [1] Desde o início de setembro, fases de tranqüilidade têm alternado com o anúncio de novas dificuldades dos bancos e outras instituições financeiras.

Para compreender todo o alcance do processo iniciado no mês de agosto, é preciso recorrer a uma obra assinada por Michel Aglietta e Laurent Berrebi (economista-chefe da empresa Groupama Asset Management), Désordres dans le capitalisme mondial [2]. O período de 2003-2007 constituiu-se de “anos milagrosos”, com efeitos euforizantes. Na França, tanto a UMP (União para um Movimento Popular, centro-direita) quanto o PS (Partido Socialista, de centro-esquerda), os políticos e a grande mídia louvaram o exemplo norte-americano. O mesmo se deu na maioria dos outros países. Em seu trabalho, extenso e bem documentado, os autores explicam a dinâmica perversa dessa alta conjuntura e anunciam seu fim inevitável.

O interesse do livro deve-se à escolha metodológica dos autores — criar um quadro analítico único, propriamente mundial —, bem como ao volume de fatos e análises reunidos. Na introdução, eles definem “a globalização como um sistema de interdependências multilaterais em que as potências emergentes (isto é, a China e, em menor grau, a Índia) exercem uma influência determinante sobre as economias desenvolvidas”, acrescentando que “foi a partir da virada do século 21 que o termo ‘globalização’ se tornou adequado aos fenômenos que ele supostamente deve designar”.

No terreno específico da macroeconomia, que é a especialidade deles, Aglietta e Berrebi percebem a economia mundial como uma totalidade diferenciada e hierarquizada, cujos pólos são os Estados Unidos e a China. Nesse quadro situam-se desenvolvimentos muito mais tímidos na União Européia e no Japão. Esse aparece com uma economia e uma sociedade marcadas por fatores de inegável debilidade, mas também com trunfos. Em contrapartida, “a Europa está deserdada” (título do capítulo 6). A União Européia estimula “as atitudes não-cooperativas dos governos, numa busca interminável de diminuição dos custos salariais”. Trata-se de “uma zona de livre-câmbio que engloba uma falsa união monetária”, já que “a zona do euro não tem nem federalismo orçamentário, nem cooperação orçamentária entre seus membros, nem sequer regras mínimas comuns”. Depreende-se do livro de Aglietta e Berrebi a quase certeza de que, em caso de crise financeira acentuada e de recessão mundial, é na União Européia que os impactos serão os mais graves [3].

Inverte-se a dinâmica da década passada: agora, crise começa nas finanças (EUA) e se espraia para produção (Ásia)

A referência à virada do século 21 também é importante. O ano de 2001 não é somente o dos atentados de 11 de setembro e da declaração da “guerra sem fim” por George W. Bush. É também o ano da entrada da China na OMC (Organização Mundial do Comércio), que representa o ponto mais avançado das medidas para fazer do planeta um espaço único de valorização do capital. Enfim, 2001 é o ano que vê as autoridades monetárias norte-americanas adotarem a ampliação do crédito hipotecário, como resposta à crise da bolsa de ações de alta tecnologia (a Nasdaq) e a seus desdobramentos industriais (falência da Enron etc.). A análise parte das interconexões entre a crise asiática de 1997-98, que Aglietta e Berrebi apresentam corretamente como uma crise de superprodução. Trata das medidas de salvaguarda de fundos especulativos e de criação de liquidez tomadas pelo Federal Reserve e, em seguida, do estouro da bolha das bolsas de valores na primavera de 2001.

A seqüência mostra a que ponto essas interconexões se consolidaram e seus efeitos se agravaram. A análise nos prepara para a interconexão, análoga, porém bem mais grave, entre uma crise de superprodução, centrada no Sudeste Asiático — e, principalmente, na China — e uma crise financeira sistêmica mundial, cujo epicentro só pode se situar nos Estados Unidos. A primeira lição da crise iniciada em agosto é a de que a direção dos desdobramentos se inverteu em relação a 1997-98/2001. Dessa vez, a crise financeira internacional, nascida nos Estados Unidos, precede a crise de superprodução, cuja lenta gestação na Ásia aparece em muitos índices.

Comecemos pelos sobressaltos financeiros e tentemos compreender suas raízes profundas. A leitura conjunta dos livros de Paul Jorion — Vers la crise du capitalisme américain? — e de Aglietta e Berrebi é muito útil desse ponto de vista. O primeiro permite compreender por que era quase inevitável que o choque ocorresse no setor hipotecário norte-americano. O autor, decerto porque não vem das finanças, nem da economia, lança um olhar bem severo sobre práticas financeiras que ele não hesita em caracterizar como quase permanente e intrinsecamente fraudulentas, mesmo nos casos em que, como no da Enron (que ele analisa bem), não se abriu nenhum processo penal.

Aglietta e Berrebi, por seu turno, explicam de que modo a atual fase do capitalismo, posta sob o signo do valor acionário, só pode gerar, em intervalos próximos, crises financeiras cujo epicentro são os Estados Unidos. Também revelam como a globalização financeira se propaga rumo ao conjunto das praças mundiais. Colocar o interesse dos acionistas à frente dos objetivos das empresas e estabelecer normas de rendimento dos capitais investidos (o return on equity ou ROE) [4] tem como resultado, fora das fases muito curtas de difusão de novas tecnologias, onerar o investimento produtivo e permitir “a uma elite financeira, no topo da hierarquia profissional das grandes empresas e das profissões jurídicas e financeiras associadas, capturar a maior parte dos ganhos de produtividade”.

Crédito imobiliário: durante décadas, a rede principal que protegeu economia dos EUA das grandes crises

Para manter um nível de atividade elevado, “é necessária uma demanda dinâmica”. Ao menos por enquanto, ela não provém dos países emergentes (China, Índia, Brasil), onde a distribuição de renda e as relações entre cidade e campo freiam o crescimento do consumo interno e onde os excedentes externos asseguram o financiamento dos déficits dos Estados Unidos. A demanda “também não pode ter como origem as rendas salariais, cujo crescimento é fraco. Ela provém das rendas distribuídas aos acionistas e à elite dirigente, mas sua massa global é insuficiente para sustentar uma demanda agregada em crescimento rápido. A resposta a esse dilema encontra-se no poder de expansão do crédito. É aí que o capitalismo contemporâneo encontra a demanda que permite realizar as exigências do valor acionário. Esse mecanismo atinge seu paroxismo nos Estados Unidos. […] Empurrando para o alto os preços dos ativos patrimoniais, o crédito desconecta o consumo da renda disponível”.

Esses ativos não têm, necessariamente, a forma de títulos. Contrariamente ao que se pensa, os lucros com a bolsa são, nos Estados Unidos, a segunda fonte de enriquecimento patrimonial das famílias (20%). A primeira fonte (60%) provém dos lucros realizados na compra e na revenda das residências individuais. Portanto, não é por acaso que o Fed escolheu o imóvel residencial como base das medidas para impedir a quebra da bolsa de 2001 e relançar a economia por meio do consumo dos particulares.

Da análise minuciosa de Jorion depreende-se que o objetivo de dar ao capitalismo norte-americano uma base social ampla, favorecendo o advento de uma “sociedade de proprietários” (ownership society), vem sendo perseguido há quase um século. Desde 1913, uma lei permite deduzir do imposto os juros sobre os empréstimos para a habitação. A isenção foi estendida aos lucros com as vendas. Entre as medidas tomadas durante o New Deal, para enfrentar os efeitos da crise de 1929, aparece a criação de uma agência federal da habitação (Federal Housing Authority, FHA). Ela ainda existe e continua a ajudar na constituição do patrimônio pessoal. É o caso também das entidades semipúblicas, com nomes pitorescos, encarregadas de assegurar um mercado secundário para os empréstimos concedidos pelos bancos e instituições financeiras.

A primeira (Fannie Mae) foi estabelecida, em 1938, para compensar os impactos políticos e sociais da grande crise. Foi preciso criar uma segunda, em 1970 (Freddy Mac), para enfrentar o aumento rápido das necessidades de transformação dos empréstimos hipotecários em ativos realizáveis. O recurso à securitização [5] das hipotecas, portanto, é antigo e sua utilização vem aumentando sem parar. Ao longo dos anos, as entidades semipúblicas beneficiaram, sobretudo, as classes média e alta, permitindo-lhes realizar lucros na revenda de sua residência. O ex-presidente do Fed, Alan Greenspan, avaliava-os, em 1999, em 25 mil dólares em média. Dois terços das famílias tiveram acesso, desse modo, à propriedade. Em 2003, o objetivo da “sociedade proprietária” foi novamente fortalecido, ao menos no nível da propaganda, pela criação de um fundo de auxílio à primeira residência cujo nome é um programa em si mesmo: “American Dream Downpayment Initiative” (iniciativa de aporte inicial para o sonho americano).

Empresas de crédito sem controle concedem empréstimos usurários a famílias pobres. Os bancos garantem o jogo

Jorion explica que, de fato, metade dos “proprietários” só são proprietários no nome, pois possuem apenas 10% do valor real de suas casas. Num contexto econômico em que as disparidades de riqueza são extremamente elevadas para um país industrializado (os 50% mais pobres da população possuem somente 2,8% do patrimônio, e o 1% mais rico, 32,7%), o sonho norte-americano de “todo mundo proprietário” sempre foi, diz o autor, “no melhor dos casos, um sonho, e no pior, um simples efeito de propaganda”.

A partir de 2001, num contexto de taxas de juros muito baixas e de desregulamentação financeira, tal sonho imobiliário serviu de fundamento para numerosas operações fraudulentas. Desde então, ele transformou-se em pesadelo, sobretudo para as famílias mais pobres submetidas a um regime de “empréstimos de rapina”. Entre os fatos pouco conhecidos citados por Jorion figura o voto, em 1980 (no momento da liberalização financeira orquestrada por Paul Volker, no final da presidência de Jimmy Carter), de uma lei revogando as disposições sobre a repressão das taxas de juros usurárias.

A desregulamentação acelerada das décadas de 1990 e 2000 permitiu o crescimento rápido das empresas independentes de empréstimos hipotecários, e o Fed reconhece que não pode fiscalizá-las ou controlá-las. Em 2002 (último indicador citado), tais empresas ofereciam apenas 12% dos empréstimos, mas 62% dos mutuários tinham vínculos com elas. Foram elas que apanharam na armadilha as famílias pobres, que têm pagado prestações usurárias, por se endividar a taxas elevadíssimas. Jorion analisa minuciosamente técnicas que em muitos países seriam consideradas fraudulentas. Ele anuncia a catástrofe social atualmente em curso. Os processos de arresto de moradias atingiram 180 mil só no mês de julho, ou seja, duas vez mais do que em julho de 2006. Eles ultrapassaram a linha do milhão desde o início do ano, isto é, 60% a mais do que um ano atrás. A expectativa é de que haja no total 2 milhões de arrestos em 2007.

Para que o mercado mafioso (não há termo mais conveniente) dos empréstimos “subprime” [6] se desenvolvesse, era preciso satisfazer uma última condição: que as empresas independentes de empréstimos hipotecários encontrassem empresas financeiras sólidas (ao menos na aparência), junto às quais pudessem securitizar os contratos assinados com elas. A partir de 2005, esse mercado encontrou fundos especulativos de alto risco (os hedge funds), filiais de grandes bancos de investimento ou de grandes bancos comerciais americanos e estrangeiros, prontos para comprar “lotes de ativos” contendo promissórias hipotecárias “subprime”.

O fator-China empobrece assalariados em todo o mundo. Mas cria enorme massa de recursos financeiros

É aqui que voltamos ao trabalho de Aglietta e Berrebi e à ênfase que eles dão à passagem dos mercados de ações a um regime “de inclinação deflacionista”. É o efeito não desejado e não previsto da extensão da globalização no rumo da Ásia. Ele se traduziu por uma baixa do rendimento das ações e das obrigações, enquanto volumes crescentes de fundos líquidos buscavam se valorizar. Provocou a enxurrada dos fundos especulativos e das aplicações cada vez mais arriscadas.

Com algum atraso, a plena integração da China à economia mundial — e, em grau menor, a da Índia — provoca uma tomada de consciência dos efeitos planetários que ela acarreta para os assalariados. Que efeitos? Os da competição direta entre os trabalhadores, em razão da “duplicação da oferta de trabalho global”, como o “excesso estrutural de mão-de-obra” que ela cria no seio de uma economia mundial liberalizada e desregulamentada. Isso permite que as empresas “façam incidir sobre os assalariados o essencial do ajuste às novas condições de concorrência”.

A transformação da China em “fábrica do mundo” e da Índia em país de relocação das atividades de serviços de informática e de produção de softwares teve também efeitos importantes no domínio financeiro. A transferência para os assalariados das pressões deflacionistas sofridas pelas empresas se fez acompanhar, na esfera financeira, de uma baixa das taxas de juros a longo prazo e de uma modificação do movimento de longa duração das ações.

Do lado das empresas, as aposentadorias com prestações definidas foram maciçamente convertidas em fundos de previdência privada, onde são os assalariados que suportam os riscos. Do lado dos fundos de aplicação financeira, ocorreu uma fuga na direção das operações cada vez mais arriscadas sobre ativos cada vez mais opacos. O “regime de inclinação deflacionista” empurra para as aplicações especulativas. Ele fortalece as “finanças carniceiras”, dos quais os fundos de “private equity”, freqüentemente filiais de bancos, se tornaram a expressão mais temida [7].O acúmulo de excedentes comerciais e de reservas em divisas, sobretudo em dólares, pelos países asiáticos, mas também por grandes países fornecedores de matérias-primas, que foram colocados em bônus do Tesouro, em obrigações privadas e em ações, em Nova York, tem permitido, aos Estados Unidos, exibir índices financeiros invejáveis e deixar escoar os déficits externos. Também vem permitindo que o governo Bush financie suas guerras, sem parar de baixar os impostos. Esses excedentes também vêm constituindo a base de um processo de criação de “liquidez”, isto é, de meios amplamente fictícios de financiamento de operações especulativas de alto rendimento.

Crescimento da China é dependente das vendas aos EUA. Será possível encontrar outros mercados?

Um dos meios encontrados pelos grandes bancos de investimento de Nova York, por bancos internacionais (como BNP-Paribas), mas também, para surpresa geral, pelos bancos regionais alemães, foi a criação de filiais com status de hedge funds. Os riscos incorridos foram subestimados, pois a “comunidade financeira” acreditou ter criado anteparos importantes sob a forma, principalmente, de mecanismos de parcelamento do risco. A crise de agosto mostrou a extrema vulnerabilidade e o potencial de contágio muito elevado.

Hoje, é nos Estados Unidos e, em menor grau, no Reino Unido que se situam os impactos mais fortes da crise hipotecária e seus desdobramentos bancários. Em prazos um pouco mais longos, o elo crítico se situará na Ásia, sobretudo na China. Ainda que a crise financeira tenha sido (mais ou menos) contida, a baixa dos preços imobiliários — e, portanto, dos ativos e das capacidades de endividamento dos proprietários — vai provocar uma desaceleração da demanda global. Ora, mais de 70% da economia chinesa depende de seu comércio exterior. Desde 2005, as exportações brutas representam mais de um terço de seu crescimento econômico.

Os Estados Unidos são o principal mercado da China. O grupo de distribuição Wal-Mart, que possui uma densa rede de franqueados na China, assegura quase 10% das vendas chinesas no estrangeiro — a maior parte para os Estados Unidos. Pequim buscará compensar a desaceleração da demanda norte-americana voltando-se para outros mercados, mas pode chegar um momento em que, como no caso da Coréia do Sul em 1997, os efeitos do superacúmulo transformem-se em fator imediato de crise.

É aqui que precisamos nos deter nos capítulos que Aglietta dedica à China em seu livro com Berrebi, bem como no trabalho centrado exclusivamente nesse país — (La Chine vers la superpuissance) —, escrito com Yves Landry. Aglietta considera que as chaves da estabilidade macroeconômica internacional nos próximos anos, e independentemente do futuro da economia mundial, encontram-se na China. Embora dê mostras de muita solicitude para com os dirigentes chineses [8], ele não consegue esconder sua grande preocupação. É o caso da criação de sobrecapacidades muito fortes.

Aglietta e Berrebi observam que “o governo chinês decidiu esfriar o motor do investimento e até mesmo, em alguns setores (imobiliário, siderúrgico e automobilístico), proibir quaisquer novos investimentos. No entanto, os números recentes disponíveis mostram que, apesar dessas medidas estritas, ele tem dificuldades para frear os gastos no imobiliário, nas infra-estruturas rodoviárias e nas construções de outras fábricas. Essa situação se deve, em parte, às províncias e aos industriais locais. As províncias buscam afirmar sua autonomia frente ao poder central, encorajando sem discernimento a implantação de indústrias locais, e os industriais locais tentam se aproveitar da euforia geral”.

Nos EUA e China, nós políticos dificultam a adoção de soluções que poderiam reverter a crise

Atenuando suas críticas com observações sobre a herança positiva do confucionismo, Aglietta detém-se longamente nos estragos da corrupção (ver a introdução do livro escrito com Landry). O único remédio para a superprodução, dizem os autores, seria “uma reorientação da atividade de um crescimento extrovertido para um crescimento mais autocentrado”.

Aqui se coloca, evidentemente, a questão da liberdade de organização política e o direito dos assalariados de construir verdadeiros sindicatos. Aglietta e Landry sublinham assim que, “passada a fase de recuperação quantitativa, em que basta investir para gerar crescimento, vem a fase qualitativa, em que só a melhoria da produtividade e o fortalecimento institucional fundamentam o crescimento e o transformam em desenvolvimento sustentável. Nesta segunda etapa, os fatores-chave são a educação, a valorização da iniciativa e a criatividade, que permitem a emergência de novos modos de organização e de novas estruturas. A liberdade dos debates e a presença de contrapoderes são então elementos essenciais que dão uma flexibilidade indispensável às estruturas”. Os autores sublinham que “a China ainda está longe disso”.

Um dos fios condutores do diagnóstico de Aglietta sobre a economia mundial, e sobre os remédios que seria preciso aplicar a ela, diz respeito à taxa de poupança. Ela é baixa demais em alguns países, alta demais em outros. Os Estados Unidos, onde ela se tornou negativa, e a China representam os pólos extremos dessa distorção. A reconstituição de uma taxa de poupança que deixasse de fazer dos Estados Unidos a sede, quando não o transmissor mais imediato, de crises financeiras sucessivas “requer uma consolidação orçamentária incompatível com as orientações políticas da maioria conservadora no poder. Implica sobretudo uma recuperação considerável da poupança das famílias. Isso supõe uma revisão dilacerante do consumo a crédito, combinado com o desperdício aterrorizante dos recursos não-renováveis, que constitui o modo de vida norte-americano”.

Dúvida: será necessária uma grande crise econômica global para reintroduzir a regulação da moeda e crédito

Coincidindo com as conclusões de Jorion, eles acrescentam que “isso supõe também uma mudança na concepção que os dirigentes norte-americanos têm do lugar dominante e do papel hegemônico dos Estados Unidos no mundo”. Quanto à China, além dos reflexos de entesouramento que mergulham suas raízes na história, lida-se com “uma poupança de precaução ante a degradação dos sistemas públicos de proteção social, de educação, de aposentadoria, diante do risco de perda de emprego nas empresas estatais subsistentes”, problemas, portanto, que conduzem à liberdade de organização e de reivindicação.

O concentrado dos mecanismos suscetíveis de conduzir a uma situação em que as “mudanças estruturais maiores [sejam] impostas por uma crise” encontra-se na moeda internacional (as divisas e suas taxas de câmbio). Em razão do “caráter de bem público da moeda”, sua regulação “só pode ser política”. Para Aglietta e Berrebi, “a responsabilidade de sua gestão é necessariamente intergovernamental”. Os Estados Unidos sempre se opuseram a isso por causa dos privilégios que tiram do regime de semipadrão dólar. Mas, atualmente, uma responsabilidade compartilhada seria de absoluta necessidade.

Não existe nenhum outro meio de criar “uma estrutura ordenada das taxas de câmbio, de um lado, e de regular a liquidez global em função da demanda de meios de pagamentos internacionais, do outro”. Ora, o que fizeram os bancos centrais desde meados de agosto senão criar mais liquidez ainda e travar entre si uma espécie de guerra das moedas, da qual o euro sofreu as piores conseqüências pelas razões vistas anteriormente? Será necessário que o sistema capitalista mundial passe por uma crise enorme antes de serem recriados os fundamentos de uma regulação monetária e financeira? É preciso se preparar para isso? Seja como for, Aglietta e Berrebi terão soado o alarme.



[1] Ver Frédéric Lordon, O mundo refém das finanças, em Le Monde Diplomatique Brasil setembro de 2007.

[2] Michel Aglietta e Laurent Berrebi, Désordres dans le capitalisme mondial, Paris, Odile Jacob, 2007. O livro se beneficiou dos recursos do serviço de estudos econômicos da empresa, bem diferentes dos de um laboratório universitário.

[3] Ver, no mesmo sentido, o livro bem recente de Patrick Artus, Les incendiaires: les banques centrales dépassées par la globalisation, Paris, Perrin, 2007, que examina a possibilidade de uma explosão do euro.

[4] Para uma definição desses conceitos e de sua importância, ver Frédéric Lordon, Enfin une mesure contre la démesure de la finance, le SLAM!, Le Monde Diplomatique, fevereiro de 2007.

[5] A securitização consiste em “transformar os créditos em posse dos bancos, das instituições financeiras, das companhias de seguro ou das sociedades comerciais (as contas clientes) em títulos negociáveis” (ver Bertrand Jacquillat, Les 100 mots de la finance, Paris, PUF, 2006). A etapa seguinte, que se desenvolveu principalmente a partir de 2002, consiste em “fundir” junto certo número de créditos para fazer deles uma linha de obrigações negociáveis. Os títulos assim “manufaturados” podem ser vendidos nos mercados em pequenos pacotes aos diversos investidores institucionais ou fundos especulativos que quiserem comprá-los.

[6] A palavra pode ser traduzida pela perífrase “inferior à norma de qualidade”. Designa os empréstimos com risco de falência elevado.

[7] Ver por exemplo “Public versus private equity”, The Economist, 7 de julho de 2007. Há alguns meses, o semanário da City londrina se tornou o eco da preocupação crescente de uma parte dos melhores financistas quanto aos private equity, cujos perigos agora são sistematicamente expostos.

[8] É espantoso ver Aglietta e Berrebi retomarem, por conta própria, uma das “justificativas” dadas pela direção do Partido Comunista Chinês para a repressão do movimento estudantil da praça Tiananmen em 1989, isto é, “a ajuda considerável que o movimento recebia do exterior”.

quinta-feira, novembro 22, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 22/11/07

‘Epidemia de suicídios’ ceifa veteranos de guerra dos Estados Unidos

Uma onda de suicídios acomete os ex-combatentes de guerra dos Estados Unidos. Em algumas faixas de idade, o suicídio entre ex-soldados é quatro vezes maior que entre a população. Além disso, os distúrbios mentais e sociais dos ex-combatentes têm custos econômicos de remonta. O departamento dos ex-combatentes gasta em torno de três bilhões de dólares por ano em serviços especializados em saúde mental. Um de cada quatro ex-combatentes é sem-teto.

Segue a íntegra da matéria do Le Monde, 15-11-2007. A tradução é do Cepat.

Uma verdadeira “epidemia de suicídios” castiga os ex-militares americanos, com 120 mortes por semana, revela a rede de TV CBS. Pelo menos 6.256 pessoas que serviram no exército tiraram a própria vida em 2005 – ou seja, uma média de 17 suicídios por dia –, relata a rede em sua pesquisa difundida na quarta-feira [14] à noite.

Enquanto que a taxa de suicídios na população é de 8,9 por 100 mil, a proporção entre ex-militares é de 18,7 a 20,8 a cada 100 mil. A taxa é ainda mais elevada entre os jovens entre 20 e 24 anos, faixa em que a proporção chega a 22,9 a 31,9 suicídios para uma população de 100 mil, ou seja, quatro vezes a taxa de suicídios registrada entre não militares para esta mesma faixa de idade.

“Essas cifras mostram claramente uma epidemia de problemas de saúde mental”, avalia Paul Sullivan, defensor dos direitos dos ex-combatentes. A CBS também cita também o pai de um soldado de 23 anos que se matou em 2005, para quem os dirigentes dos Estados Unidos e as Forças Armadas estão escondendo a gravidade do problema. O governo “não quer dados” e “não quer que o número dos mortos seja difundido”, disse Mike Bowman.

Há 25 milhões de veteranos de guerra nos Estados Unidos, dos quais 1,6 milhão estiveram recentemente nos conflitos do Afeganistão e do Iraque, segundo a CBS. Os dados não dizem respeito exclusivamente aos militares que estiveram em combate no Iraque, Afeganistão, Vietnã ou durante a segunda guerra mundial, mas a todos os ex-soldados.

"Nem todos voltam para casa feridos, mas a verdade é que ninguém volta para casa sendo a mesma pessoa", afirmou Paul Rieckhoff, ex-fuzileiro naval e fundador de uma associação de veteranos.

A CBS sublinha que se trata do primeiro cálculo do número de suicídios entre ex-combatentes realizado nos Estados Unidos. O departamento dos ex-combatentes gasta em torno de três bilhões de dólares por ano em serviços especializados em saúde mental, segundo a CBS.

Um estudo publicado na semana passada mostra que os ex-combatentes representam um quarto dos sem-teto nos Estados Unidos, quando representam apenas 11% da população adulta. Segundo o estudo, citado pela revista Time, ao menos 1.500 ex-combatentes das guerras do Afeganistão e do Iraque já teriam sido identificados como sem-teto. O organismo encarregado de ajudar esta população (The National Alliance to End Homelessness) avalia que em 2006 havia 195.827 veteranos sem-teto.

Instituto Humanitas Unisinos - 22/11/07

Impostos no Brasil. Opção preferencial pelos pobres

Na novela da CPMF, tudo foi dito sobre o cenário e os personagens, mas nada sobre o que está por trás da cena. A opinião é de Fábio Konder Comparato, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da OAB, no artigo "Marinheiro sem rumo nem vento ajuda", publicado no jornal Folha de S. Paulo, 22-11-2007. Comparato pergunta: "Sobre quem recai o maior peso dos impostos, indispensáveis para fazer face ao serviço da dívida pública? Sobre os empresários? Não".

Segundo ele, "o Brasil fez nesse particular uma opção preferencial pelos pobres: 70% da massa de impostos e assimilados são indiretos, vale dizer, regressivos e transmissíveis ao consumidor final. O que significa que os despecuniados contribuem muito mais do que os ricos para financiar os gastos públicos".

Eis o artigo.

Na novela da CPMF que se arrasta há mais de ano, tudo foi dito sobre o cenário e os personagens, mas nada sobre o que está por trás da cena.

O governo federal demonstra matematicamente que, sem a prorrogação da falsa contribuição provisória, o Orçamento da União de 2008 será deficitário. Os empresários, por sua vez, deblateram contra o peso excessivo da carga tributária.

Mas ninguém -no governo, na oposição ou na imprensa- aponta a verdadeira causa desses desconchavos; menos ainda denuncia os vilões da história e identifica as vítimas.

Tomemos o exercício financeiro de 2006. O serviço da dívida pública (amortização do capital e pagamento de juros) custou ao país R$ 158 bilhões; vale dizer, quase o quádruplo do (falso) déficit da Previdência Social que o governo atual e o anterior sempre apontaram como a causa do nosso descontrole financeiro. Analogamente, entre 2002 e 2006, as despesas orçamentárias da União no campo da saúde, para o qual se destinariam integralmente os recursos arrecadados com a CPMF quando foi criada, representaram menos de um quarto do total dos gastos com a dívida pública. As referentes à educação, pouco mais de 10%.

Quem ganha e quem perde com isso?

De um lado, como ninguém ignora, a maioria absoluta dos brasileiros depende, para sobreviver, da Previdência Social, do SUS (Sistema Único de Saúde) e da escola pública.

De outro lado, os clientes exclusivos do sistema de dívida pública são os bancos e um punhado de aplicadores. Dentre estes, ocupam lugar de destaque os que possuem domicílio fiscal no exterior, pois são simultaneamente beneficiados com juros dentre os mais elevados do mundo, com a desvalorização contínua do dólar e com a isenção tributária. Realmente, o brasileiro não é xenófobo.

Será necessário indagar qual dos dois grupos, o de cima e o de baixo, arca com as inevitáveis reduções de verbas para alcançar o equilíbrio do Orçamento?

Examinemos o sistema tributário.

Sobre quem recai o maior peso dos impostos, indispensáveis para fazer face ao serviço da dívida pública? Sobre os empresários? Não. O Brasil fez nesse particular uma opção preferencial pelos pobres: 70% da massa de impostos e assimilados são indiretos, vale dizer, regressivos e transmissíveis ao consumidor final. O que significa que os despecuniados contribuem muito mais do que os ricos para financiar os gastos públicos.

Diante desse quadro, como explicar a paz social e política que reina entre nós, em contraste com a turbulência verificada na Venezuela, na Bolívia e no Equador?

Entra aí o talento sem par do nosso chefe de Estado. Lula encontrou a fórmula genial para contentar os dois extremos da sociedade brasileira: submeteu a política econômica do país ao controle do presidente (perdão, "governor") do Banco Central e criou ao mesmo tempo o Bolsa Família, com extraordinária economia de recursos e marcantes efeitos eleitorais. O programa de auxílio aos pobres representou, no ano passado, 5% dos juros pagos aos detentores de títulos da dívida pública. Cumpriu-se assim, grotescamente, a palavra evangélica: a todo aquele que tem, muito mais lhe será dado.

Vale a pena, no entanto, ainda aí, enxergar atrás da cena. Há mais de um quarto de século, a média de crescimento econômico do Brasil é inferior à da América Latina, o que constitui um fato inédito em nossa história. A classe média desagrega-se rapidamente: entre 2002 e 2006, a renda dos que ganham de três a dez salários mínimos decresceu 46%. Entre 1992 e 2004, o desemprego formal aumentou 80%. A subserviência ao capitalismo financeiro internacional deu início a um processo de desindustrialização precoce.

Dir-se-á, porém, que a recente descoberta de um extenso lençol petrolífero no litoral santista mudará em pouco tempo esse panorama sombrio. Pura ilusão! Sem a quebra de nossa oligarquia política e econômica, reproduziremos, na melhor das hipóteses, o destino dos países petrolíferos do Oriente Médio: ricos por fora e dilacerados por dentro.

Eis por que, diante do desnorteamento do Estado, entidades prestigiosas, como a OAB e a CNBB, em associação com movimentos populares, têm insistido na urgência de uma reforma política republicana e democrática, que atribua enfim ao povo uma soberania efetiva, e não apenas simbólica, e ponha o bem comum da nação brasileira sempre acima dos interesses particulares.

Reencontraremos o rumo perdido ou continuaremos a navegar à deriva?

Instituto Humanitas Unisinos - 20/11/07

Mais Estado e menos mercado

"Se, nos anos 1990, presenciamos a uma onda que pregava o afastamento do Estado das funções e do gerenciamento dos serviços públicos; agora pede-se que o Estado volte e cumpra sua função social. Segundo a pesquisa recente, 74% acreditam que o Estado deve ser responsável pelos serviços essenciais da população. Em síntese, a maioria da população quer um Estado forte com maior proteção social", afirma Dejalma Cremonese, cientista Político, professor do Departamento de Ciências Sociais e do
Mestrado em Desenvolvimento da Unijuí – RS em artigo que nos enviou e que publicamos a seguir.

Nos anos 1990, a América Latina passou por profundas reformas estruturais (neoliberais), a partir das políticas de livre mercado impostas pelo Consenso de Washington. Fizeram parte desse Programa de Reestruturação (ajustes) a reforma administrativa e previdenciária, que exigiram um rigoroso esforço de equilíbrio fiscal; a redefinição do papel do Estado na economia, que causou, ao contrário do que seus defensores alardeavam, recessão econômica, ingresso do capital externo, desemprego, aumento do trabalho informal, conflitos sociais, flexibilização dos direitos trabalhistas, precariedade e, ao mesmo tempo, o desmonte dos sistemas de seguridade social, de saúde e de educação.

No Brasil, as políticas de reestruturação do Estado deram-se em meados dos anos 1990. A principal dela foi a chamada reforma administrativa, também conhecida como reforma “Bresser-Pereira” (coordenada por Luiz Carlos Bresser-Pereira, então Ministro da Administração Federal e da Reforma do Estado no governo de Fernando Henrique Cardoso).

Porém, mais tarde, o próprio Bresser-Pereira, em artigo publicado na Folha de São Paulo (2002), reclamava da baixa confiança dos mercados internacionais frente à economia brasileira e da vulnerabilidade da mesma frente às constantes crises econômicas mundiais. Talvez por isso, Bresser-Pereira lamentou que sua Reforma Administrativa não tivesse alcançado os resultados esperados. Em suas palavras: “cumprimos uma parte desse programa, mas, em vez de reconstruir financeiramente o Estado, endividamo-lo ainda mais”. Em relação ao processo de privatização, Bresser também reclamou: “em vez de privatizarmos apenas setores competitivos, privatizamos também monopólios naturais”. No Brasil, houve a “flexibilização” do mercado e a multiplicação da dívida: “em vez de controlar a entrada de capitais e reduzir a dívida externa, ampliamo-la; ao invés de mantermos um câmbio relativamente desvalorizado, como fizeram todos os países que iniciavam seu desenvolvimento, deixamos que a entrada de capitais valorizasse nossa moeda e aumentasse artificialmente salários e consumo”. Seguimos, de joelhos, às normas das instituições internacionais: “E tudo, nos anos 90, com o apoio do FMI, do Banco Mundial e dos mercados financeiros internacionais”, conclui Bresser-Pereira.

A política das privatizações foi a principal medida das reformas estruturais, sendo que as mesmas reduziram, consideravelmente, o tamanho e a função do Estado. O Brasil, desde os anos 1990, tem privatizado mais de 70% de suas empresas estatais. Porém, essa política tem encontrado resistência da opinião pública: até pouco tempo os serviços prestados por empresas públicas eram considerados ineficientes, de baixa qualidade e mal administradas. Por outro lado, os serviços prestados pela iniciativa privada eram sinônimos de qualidade e conforto. Essa percepção parece estar mudando em nossos dias. Segundo dados do Instituto Ipsos, a maioria do eleitorado brasileiro prefere que o Estado controle os serviços, sendo que 62% se mostraram contrários à política de privatizações. Apenas 25% aprovam. Podem-se atribuir esses percentuais, entre outras razões, ao alto custo e à questionável qualidade dos serviços privados, principalmente, nos setores da energia elétrica, telefonia, estradas, água e esgoto.

Se, nos anos 1990, presenciamos a uma onda que pregava o afastamento do Estado das funções e do gerenciamento dos serviços públicos; agora pede-se que o Estado volte e cumpra sua função social. Segundo a mesma pesquisa, 74% acreditam que o Estado deve ser responsável pelos serviços essenciais da população. Em síntese, a maioria da população quer um Estado forte com maior proteção social.

Instituto Humanitas Unisinos - 20/11/07

Rendimento chega a ser 44% menor entre negros, revela estudo

Em meio às comemorações do Dia Nacional da Consciência Negra, um estudo da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), do governo de São Paulo, revela os efeitos da discriminação racial no mercado de trabalho da região metropolitana do Estado mais industrializado e de economia mais dinâmica do País. A reportagem é de Marcelo Rehder e Elisangela Roxo e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 20-11-2007

De acordo com o estudo, divulgado ontem, o rendimento médio da população negra ocupada é 44% menor que o dos brancos e amarelos (não-negros): R$ 752,00, contra R$ 1.346,00. No período de 12 meses terminado em setembro, que serviu de base ao estudo, a taxa de desemprego entre os negros foi de 18,1%, contra 13,2% entre os não-negros. “Essa diferença reflete a nossa herança de discriminação e de menores oportunidades para os pobres, que são majoritariamente negros”, diz Alexandre Loloian, gerente de Análises da Fundação Seade.

Renata Carneiro, de 30 anos, é um exemplo das dificuldades enfrentadas pelos negros no mercado de trabalho. Apesar de formada em Propaganda e Marketing, falar inglês, cursar Letras na Universidade de São Paulo (USP), Renata está desempregada há seis meses.

Depois de se formar na Universidade Mackenzie, em 2002, ficou um ano à procura de uma oportunidade na área. Sem sucesso na busca, aceitou uma vaga para trabalhar com atendimento. “Estava desesperada e resolvi fazer qualquer coisa para poder, pelo menos, pagar as contas”, diz ela. Seu último emprego foi como auxiliar de reservas de bilhetes, na TAM, de onde foi demitida em maio.

Feito a partir de dados da Pesquisa Mensal de Emprego e Desemprego, apurada em conjunto com o Dieese, o estudo da Seade deixa claro a grande disparidade entre os rendimentos do trabalho de negros e não-negros inseridos nos mesmos grupos de ocupação. Em cargos de direção e planejamento, o rendimento médio real de pretos e pardos não passava de R$ 10,00 a hora trabalhada, enquanto o ganho dos brancos e amarelos era 78% maior: R$ 17,80 a hora trabalhada.

Essa diferença se reduz conforme diminuem os rendimentos. Ainda assim, mesmo nos grupos ocupacionais com menores remunerações, as desigualdades persistem e não são desprezíveis.

Nas ocupações classificadas como serviços gerais, por exemplo, os não-negros ganham R$ 3,60 por hora, contra R$ 3,20 dos negros, uma diferença de 12,5%. Mesmo nas ocupações não qualificadas, com pior remuneração, o rendimento dos negros (R$ 2,90) é 3,3% menor que o dos não-negros (R$ 3,00)

“O negro tem menos oportunidade de se inserir no mercado de trabalho porque na maioria dos casos tem menor grau de escolaridade”, diz Loloian.

Por conta disso, a população negra passa a ocupar posições de baixa remuneração e que não exigem qualificação profissional. Não é por obra do acaso que só 4,6% dos negros ocupam cargos de direção e planejamento, enquanto esse porcentual salta para 18,3% quando se trata de não-negros.

Os negros só superam os brancos e amarelos no segmento de serviços domésticos, com 54,9% das ocupações.

Instituto Humanitas Unisinos - 19/11/07

Trabalho escravo no RS em plantação de eucalipto. Empresa madeireira do PR é denunciada.

Um grupo de 32 pessoas vivendo em condições desumanas no interior de Cacequi, na região central, foi flagrado pelo Ministério do Trabalho e removido da área. Trabalhando para uma empresa madeireira do Paraná, muitos viviam com as famílias, inclusive crianças, em plantações de eucalipto localizadas em um raio de 30 quilômetros do centro de município. A reportagem é de Ronan Dannenberg e publicada pelo jornal Zero Hora, 19-11-2007.

Segundo os depoimentos, o grupo estava sem receber salários, cortando mato em jornadas de trabalho intensas e instalado em condições desumanas, alguns deles há até quatro anos. Oriundos de Alegrete, de Mato Grosso do Sul e do Paraguai, eles foram retirados do local na sexta-feira e estão hospedados em um hotel em Cacequi. Os trabalhadores cortavam madeira que, mais tarde, seria transformada em blocos de sustentação para trilhos de trem.

A informação sobre a situação no local chegou à Brigada Militar de Cacequi na noite de terça-feira, fornecida por um dos trabalhadores. Na manhã de quarta-feira, agentes do Ministério do Trabalho, com a Polícia Federal, a Brigada Militar e o Ministério Público do Trabalho, foram aos locais.

Segundo o delegado da Subdelegacia do Ministério do Trabalho, José Locatelli, que acompanha o caso, o receio é de que a empresa entre em acordo com os trabalhadores e, sem a participação das autoridades, ofereça valores menores do que os legalmente devidos. Por isso, uma reunião entre a empresa e o Ministério será realizada hoje.

A família de Hugo Rubens Vera, 27 anos, fazia parte do grupo de trabalhadores. Com a mulher, Leila, 28 anos, e os filhos Flávio, seis anos, e Juliano, dois anos, eles saíram de Alegrete há cerca de quatro meses para trabalhar na retirada de madeira. Apreensivo com a situação, Hugo não quer que o caso entre na Justiça, o que atrasaria pagamentos.

- A esperança é de que tudo se resolva o quanto antes para eu poder voltar a trabalhar - diz.

O Ministério do Trabalho não informou o nome da madeireira porque quer antes negociar o pagamento dos valores devidos, evitando processo na Justiça. O ministério também organiza o retorno das famílias a suas cidades de origem.

Segundo o delegado da PF Américo Boff, os responsáveis pela situação de exploração deverão ser denunciados pelo crime de "redução à condição análoga de escravo" por terem submetido os trabalhadores a más condições de trabalho.

A situação

Por causa das condições de trabalho encontradas nas plantações de eucalipto, como a falta de pagamento de salários e a jornada de trabalho exaustiva, o Ministério do Trabalho está considerando a situação como de "redução à condição análoga a de escravo", crime previsto no artigo 149 do Código Penal. Por exemplo, enquanto havia luz do sol, homens e mulheres cortavam mato, o que totalizava até 15 horas de trabalho diário. A pena pode chegar à reclusão de dois a oito anos.

Os alojamentos foram considerados em condições precárias. Sem banheiros, os trabalhadores tomavam banho no Rio Cacequi e faziam necessidades fisiológicas em meio à vegetação. Todos, inclusive crianças, tomavam água direto do rio, junto aos animais.

As famílias recebiam alimentos da empresa periodicamente, mas nem sempre era o suficiente. Nos alojamentos, foram encontradas duas cobras.

Instituto Humanitas Unisinos - 18/11/07

Tupi. 2 km de sal desafiam tecnologia

Sete mil metros abaixo da superfície, o petróleo aguarda, aprisionado nas entranhas rochosas da plataforma continental. Trazê-lo para a superfície não será fácil. Muito menos barato. O tão cobiçado petróleo do campo de Tupi - suficiente para encher até 8 bilhões de barris - está enterrado sob dois quilômetros de água, mais dois quilômetros de rocha e, para completar, outros dois quilômetros de crosta de sal. É aí que a coisa se complica. A reportagem é de Herton Escobar e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 18-11-2007.

A preocupação maior, do ponto de vista tecnológico, não é nem a profundidade. O que mete medo mesmo é o sal. O Brasil é um dos líderes mundiais em exploração de petróleo em águas profundas, mas nunca teve de atravessar uma crosta desse tipo. “Vamos ter de desenvolver essa tecnologia”, disse ao Estado o engenheiro Nelson Ebecken, coordenador do Núcleo de Transferência de Tecnologia (NTT) da Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), principal parceira acadêmica da Petrobrás. “Se essa camada de sal estivesse em terra já seria difícil. Imagine, então, a três mil ou quatro mil metros de profundidade.”

A essa profundidade, pressionado e aquecido pelo calor interno do planeta, o sal se comporta como um material viscoso, o que cria problemas para a perfuração e a manutenção dos poços. “A rocha é dura, mas é estável. O sal não é tão duro, mas é menos estável”, explica o colega e também engenheiro Edison Castro Prates de Lima. Imagine algo como uma gelatina: “Você abre o buraco e o buraco fecha”, compara o especialista Giuseppe Bacoccoli, do Laboratório de Métodos Computacionais em Engenharia da Coppe.

O planejamento dos poços, dizem os pesquisadores, terá de ser extremamente bem feito, para que não entrem em colapso. Trata-se de um ambiente pouco explorado no mundo. No Golfo do México, há poços que chegam a 8 mil metros de profundidade, mas mesmo esses estão acima da camada de sal, segundo Giuseppe. “Já se perfurou sal em outros lugares, mas não a essa profundidade nem com essa espessura”, completa Ebecken.

DIFICULDADE

Desde que o Brasil começou a tirar petróleo do fundo do mar, no fim da década de 60, não se deparava com um cenário tão complexo. A descoberta do campo de Tupi, na Bacia de Santos, anunciada na semana passada pela Petrobrás, impõe um novo desafio econômico e tecnológico para a exploração petrolífera nacional. Técnicas terão de ser aprimoradas; custos terão de ser reduzidos. Na própria Bacia de Santos, a Petrobrás possui poços de até 5 mil metros de profundidade na rocha, mas em lâminas d’água (a distância entre a superfície e o leito marinho) muito mais rasas, na faixa dos 100 metros. E sem sal.

Apesar das dificuldades, todos os especialistas da Coppe estão confiantes em que o Brasil tem competência tecnológica para chegar ao óleo de Tupi. “Não vejo nenhuma quebra de paradigma, é mais uma evolução”, afirma Bacoccoli, que já foi superintendente de Exploração da Petrobrás. O desafio maior, segundo ele, diz respeito ao custo, que aumenta exponencialmente com a profundidade e a complexidade da operação. “Talvez cheguemos à conclusão de que podemos, mas não devemos.”

“Vencer a camada de sal implica um custo adicional considerável”, completa o diretor de Tecnologia e Inovação da Coppe, Segen Estefen. Além das dificuldades de perfuração, ele prevê a necessidade de “poços inteligentes”, equipados com sensores para monitorar a saúde das veias petrolíferas em tempo real. Algo como um carro de Fórmula 1, que pode ser monitorado completamente dos boxes, compara Estefen.

A sete mil metros de profundidade, qualquer falha pode significar prejuízos de milhões de dólares. Todos os materiais que vão para o fundo do mar precisam ser duramente testados em terra. A Coppe tem duas câmaras hiperbáricas de fabricação própria, capazes de simular pressões de até mil metros e cinco mil metros de profundidade. São tanques de aço lacrados, com água injetada sob alta pressão.

Uma terceira câmara, que está sendo usada justamente para testar os sensores de poços inteligentes, combina profundidade e temperatura (6 mil metros e 200 °C, respectivamente). O projeto para um quarto simulador, de até 7 mil metros, já está pronto e a expectativa é de que entre em operação no início de 2009.

A instalação dos poços é toda feita remotamente da superfície, com o uso de robôs. A pressão a dois mil metros de profundidade é 200 vezes maior do que a pressão em terra, ao nível do mar. Um ser humano nessas condições seria literalmente esmagado. A profundidade máxima para um mergulhador, com riscos altíssimos, é por volta de 300 metros.

Dentro das rochas, o petróleo está fervendo. Quando chega ao topo do poço, no leito marinho, está a quase 100°C. Aí começa um outro problema. A água no fundo do mar está a aproximadamente 4°C. Para transportar o petróleo até a plataforma, dois mil metros acima, é preciso mantê-lo quente. Caso contrário, a queda de temperatura induz a formação de “coágulos” que podem entupir completamente os dutos. “É como se o óleo passasse por uma serpentina, perdendo calor ao longo do trajeto”, compara Segen. A solução é revestir os canos de aço com material isolante, ou injetar produtos químicos para evitar o adensamento do óleo.

Os dutos que transportam o óleo do solo marinho até a plataforma são chamados de risers (do inglês rise, que significa elevar ou ascender). Podem ser de aço rígido ou flexíveis, com camadas intercaladas de aço e polímeros. A lâmina d’água profunda do campo de Tupi exigirá um planejamento cuidadoso de engenharia. Uma opção para reduzir o peso dos risers seria usar titânio no lugar do aço: um metal altamente resistente e leve. Só que muito mais caro. “Estamos operando no limite da tecnologia. O problema é o custo, se vai ser caro demais ou não.”

Isso vai depender do preço do petróleo. Com o barril a US$ 100, como está hoje, Bacoccoli acredita que a exploração será economicamente viável. A expectativa é começar a produção do campo por volta de 2013. “Mesmo que o preço do petróleo caia 50%, o que é improvável, ainda dá para trabalhar.”

O anúncio da descoberta de Tupi coincidiu com o aniversário de 30 anos da parceria entre Petrobrás e Coppe, que impulsionou a exploração de petróleo offshore no País. Para engenheiros que estão no projeto desde o início - quando as profundidades não passavam de 50 metros - o novo desafio é muito bem-vindo. “Não torcemos para que seja mais profundo e mais complicado, mas para a academia é ótimo”, afirma, maliciosamente, Nelson Ebecken, um dos pioneiros da área, já pensando nas muitas teses de mestrado e doutorado que poderão ser produzidas com o estudo do reservatório. “A vocação da universidade é inovar, buscar soluções. É tudo que a gente queria.”

Instituto Humanitas Unisinos - 18/11/07

Cena brasileira. Luxo peludo

Animais de estimação também têm feito latir o mercado do luxo.

Seguindo as pegadas de grifes como Gucci, Louis Vuitton, Burberry e Daslu, que tem produtos especiais para mascotes, a Casa Masson, de Porto Alegre, também colocou seu focinho no segmento. A notícia é do jornal Zero Hora, 18-11-2007.

A joalheria gaúcha criou uma linha de coleiras preciosas, exclusivas para cães e gatos. Elaboradas com correntes, pérolas e madrepérolas, as peças trazem placas em ouro 18 quilates ou em prata para gravação do nome e telefone do peludo.

Custam entre R$ 475 e R$ 998.

segunda-feira, novembro 19, 2007

O Globo (Resenha CCOMSEX) - 18 Nov 07

As regalias dos poderes

Elite de 74 mil servidores tem diversas mordomias e ganha cinco vezes mais que a dos EUA

José Casado

'Álamo a caminho', avisa o chefe da segurança.

O comboio engole rapidamente os dois mil metros de asfalto que separam a residência do escritório. Entre a escolta e a ambulância, sob o sol matinal, reluzem os apliques cromados de um portentoso sedã escuro. Blindado potente, é capaz de passar da imobilidade aos 100km/hora em apenas oito segundos. Como sempre, estaciona na garagem. Quando o motorista destrava as maçanetas internas, de prata acetinada, o passageiro desliza do banco revestido de couro em direção ao elevador privativo. Lá fora, uma nova bandeira começa a escalar o mastro frontal do Palácio do Planalto. Para os agentes, missão cumprida: "Álamo", como chamam o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chegou à "base".

Presidentes ditam a moda em Brasília. Três anos atrás, Lula começou a desfilar a bordo de um Chevrolet Ômega e, desde então, o carro fabricado na Austrália virou símbolo de poder na capital da República. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, gastou R$5,4 milhões na compra de 37 deles - 33 para seus juízes e mais quatro para a diretoria. O Senado, a Câmara e alguns ministérios adotaram o estilo.

Cada sedã importado custa US$81 mil (R$146 mil). O modelo só consome gasolina - e muita, à média de um litro para cada seis quilômetros.

Sua inclusão na frota pública é paradoxal, sobretudo num governo que faz propaganda dos biocombustíveis como alternativa para um mundo ameaçado pelo efeito estufa. Mas esse é apenas um detalhe nas despesas da administração federal com energia: a conta de luz das repartições federais já soma R$3,9 milhões por dia útil. Gasta-se R$954 milhões por ano para iluminar os prédios públicos - 200 vezes mais que o investimento governamental realizado no programa Luz para Todos. Esse valor é, também, superior à soma dos dispêndios em proteção ambiental, no período janeiro-outubro.

Vantagens compõem 37% dos salários

O dinheiro dos tributos paga tudo, dos desperdícios aos privilégios de um grupo de 74 mil pessoas que detém os altos cargos do governo, do Legislativo e do Judiciário.

É a elite civil do contingente de 2,2 milhões de servidores públicos (17,5% do total de assalariados), entre os quais 1,1 milhão ativos.

Essa minoria é a principal beneficiária da folha de pagamentos da União, que abriga nada menos que cinco dezenas de itens de remuneração monetária do funcionalismo - entre salários diretos, indiretos e gratificações eventuais, como um certo "adicional de atividades penosas".

Bem remunerada, tem ganho mensal 24,5 vezes acima da renda média dos brasileiros, informa um estudo realizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo Centro Latino-Americano de Administração para o Desenvolvimento (Clad).

Destaca-se entre as mais bem pagas do mundo: ganha proporcionalmente cinco vezes mais que a chefia burocrática dos Estados Unidos e da Espanha e três vezes mais que a da Argentina - se tomada como referência a renda média (PIB per capita) desses países, segundo a pesquisa.

As vantagens monetárias extra-salariais compõem 37% dos ganhos totais de ministros, juízes, parlamentares e assessores diretos - bem mais do que se registra em nove países latino-americanos analisados pelos pesquisadores do BID/Clad.

As despesas com gratificações por cargos e funções federais ultrapassaram R$13 bilhões no ano passado, conforme dados do Ministério da Fazenda. Oito vezes mais que os investimentos em saneamento previstos pela União para este ano.

Com capacidade de se autogovernar e arbitrar o destino dos recursos no Orçamento da União, a cúpula do serviço público brasileiro se distingue, também, pelo contínuo aumento das regalias.

Amparadas por leis ou costumes, as mordomias estão disseminadas e já alcançam o terceiro nível hierárquico do governo, do Legislativo e do Judiciário.

A lista de despesas que os três Poderes diariamente registram no sistema de administração financeira do Tesouro Nacional é pródiga em exemplos.

Inclui, entre outras coisas, a moradia gratuita (para os dirigentes da burocracia em Brasília), em apartamentos reformados e decorados, com enxoval completo, louças e aparelhos eletrodomésticos, periodicamente renovados. É possível a opção por receber o auxílio-moradia (R$3 mil mensais, em média, quantia suficiente para a compra parcelada de um apartamento em hotel-residência na capital federal).

Em Brasília, agora tem até massagem

E mais: carro e motorista à disposição, do próprio órgão público ou alugado - em geral, modelos de luxo e sem identificação funcional. Gabinetes de trabalho equipados com frigobar, microondas e aparelhos de televisão de plasma ou LCD - com permanente serviço de copeiragem. Telefone celular pós-pago, sem limite para chamadas nacionais ou internacionais. Uma novidade são os contratos de serviços de massagens, prestados nos prédios públicos.

Nem sempre foi assim. Até o fim dos anos 50, privilégios do gênero eram vetados. A legislação admitia alguns gastos peculiares à rotina da Presidência da República, exceto despesas pessoais. O presidente Café Filho, por exemplo, morava em casa própria na Zona Sul carioca.

Na transferência da capital do Rio para Brasília, nos anos 60, foram criados "incentivos" à mudança dos altos dirigentes do setor público. Em 1975, o presidente Ernesto Geisel tentou por decreto restringir aos ministros o acesso aos imóveis funcionais disponíveis no Distrito Federal. Até impôs limites aos gastos nessas residências com o dinheiro dos contribuintes.

Meses depois, foi surpreendido pela publicação de uma série de reportagens no jornal "O Estado de S.Paulo" com relatos sobre a dimensão das regalias: Arnaldo Prieto, ministro do Trabalho, tinha 28 servidores à disposição. Desde o fim dos anos 90, a Câmara dos Deputados mantém 21 apenas para cuidar da residência oficial do seu presidente. Nos longínquos anos 70 houve escândalo quando o tribunal de contas descobriu que o governador Elmo Serejo, do Distrito Federal, comprou 47 vidros de laquê. Virou rotina: no mês passado o Comando da Aeronáutica debitou na conta do erário a aquisição de 15 porta-perfumes "em aço inox com gravação a laser", em sacos para presente, a R$2.180 cada, o equivalente a 5,7 salários mínimos.