Contra a 'sociologia das ausências' a 'sociologia das emergências' propõe Boaventura de Sousa Santos
“A democracia vive dias de crise. E não pára de crescer a distância entre representantes e representados”. A afirmação é do sociólogo português
Boaventura de Sousa Santos em entrevista ao suplemento
Aliás, do jornal
O Estado de S.Paulo, dia 27-05-2007.
Boaventura explica como e quando esse processo teria começado, por que vivemos um déficit de democracia e uma abundância de corrupção no mundo, e aproveita para batalhar seus conceitos teóricos. Entre eles, a razão indolente, que justificaria a aceitação do mundo tal como está; a sociologia das emergências, que trata de valorizar experiências humanas “pequeninas”, mas embriões de transformações maiores; e a ecologia dos saberes, que contesta o credo de que só o conhecimento científico salvará o planeta.
Essas reflexões, estão presentes no livro Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social, que a editora Boitempo acaba de lançar no Brasil.
Eis a entrevista.
Já pelo título do seu livro, o senhor parece propor uma ampla revisão de conceitos no âmbito das ciências sociais. É isso mesmo?
As teorias críticas que temos hoje e as formas de emancipação política que herdamos do século 20 não nos servem mais. Teríamos, como alternativa, parar de pensar nessas questões, o que não me parece boa idéia porque as sociedades contemporâneas, mais do que nunca, precisam de pensamento crítico e de princípios. Como precisam urgentemente de alternativas do “viver melhor” num mundo mais justo.
Onde as teorias críticas clássicas nos deixaram na mão?
O vazio crítico aparece em vários níveis, eu poderia identificar alguns deles. Estamos assistindo a uma crise grave dos mecanismos da democracia representativa. Porque representação, em termos teóricos, sempre significou duas coisas: autorização e prestação de contas. ‘Com meu voto, eu autorizo alguém a governar em meu nome e depois peço-lhe contas’. Acontece que a evolução dos sistemas representativos acabou por eliminar a idéia do prestar contas.
Hoje falamos de representação como um sistema de autorização política, por via eleitoral. E ficou bem mais difícil para o cidadão fazer o acerto de contas, a não ser num próximo pleito eleitoral, eventualmente negando seu voto a um determinado candidato. A verdade é que a distância entre representante e representado aumentou demais. Criou-se o que eu chamo de “patologia da representação”, bem como uma “patologia da participação”, pois o cidadão não participa por achar que seu voto não conta. Vê que os partidos, enquanto estão em luta eleitoral, prometem uma coisa, mas, no governo, fazem outra. O eleitor perde a confiança no sistema e deixa de atuar nele. A democracia representativa já não consegue esconder suas debilidades.
Quais seriam?
Tal como a entendemos hoje, a democracia transita por dois “mercados” diferentes, porém muito articulados. O mercado econômico, que é o dos valores com preço, e o mercado político, dos valores sem preço. Por este passam as ideologias, os códigos de ética. O que aconteceu? Nos últimos 20 anos houve uma fusão de “mercados”, sob a égide de um modelo econômico segundo o qual tudo se compra e tudo se vende. Inclusive no mercado político, o que nos leva a essa corrupção desenfreada.
Então, a corrupção seria uma espécie de filha da união entre sistema econômico e sistema político?
Sim. Ambos tinham mecanismos de concorrência distintos. Um batalhava por preços, lucros. Outro, por preferências do cidadão, votos. Juntam-se os mecanismos e surge a corrupção endêmica, que não é um fenômeno do partido A ou do partido B, mas vale para todos.
O senhor chegaria a afirmar que o voto virou mercadoria?
Sim, à medida que os representantes, eleitos pelo voto, permitem-se ser vendidos e comprados. Seja em função dos interesses de um curral eleitoral, de uma região, do país ou simplesmente do bolso do político. Isso começou a acontecer em larga escala a partir dos anos 90, na onda de privatizações dos serviços públicos. Quando estes serviços começaram a ser privatizados, vislumbrou-se uma riqueza enorme, feita de investimento nacional, que passaria a ser gerida por leis do mercado. Mas, quem regula estes serviços? O Estado. Daí as articulações crescentes entre governos e grupos econômicos.
É impressão ou a corrupção no mundo cresceu nos últimos anos?
Cresceu fundamentalmente porque houve uma mudança no padrão ético. A idéia de que o Estado é “diabólico” e a perda dos valores do serviço público, eram sintonizados aos ideais republicanos - como o de que o bem do público prevalece sobre o privado, ou a regra de que eu, funcionário público, necessariamente devo ganhar muito menos do que os que contratam comigo - ora, esses valores foram corrompidos. Fixou-se a idéia de que o que é bom vem da sociedade civil, não do Estado.
Mas, lá trás, viu-se que o Estado centralizador acabava derivando para o Estado paternalista e corrupto.
De fato. Mas tiremos um exemplo do mundo empresarial. Quando uma companhia está mal, reúne-se o conselho de administração para buscar soluções. Ninguém prefere fechar a empresa de cara, certo? Não se fez isso com relação ao Estado. Não se buscou reformá-lo. Ao contrário, disseminou-se a idéia de que ele é “irreformável”. O que vemos hoje? Vemos que essa visão mudou. No momento inicial de imposição do modelo neoliberal, criou-se não só a idéia de que o Estado é corrupto - o que era verdade - mas a de que o Estado era irrecuperável.
Isso, até meados dos anos 90, quando tanto o Banco Mundial quanto o FMI passaram a reavaliar suas posições, chegando à conclusão de que não se pode confiar em Estado fraco. Bom mesmo é o Estado forte, eficiente e transparente. Enterraram a idéia de que não é reformável! Essa mudança aparece claramente no relatório de 1997 do Banco Mundial, com uma análise detalhada do desmantelamento do estado soviético.
Hoje o que se vê hoje na Rússia são infiltrações das máfias em todo o aparelho estatal e na burocracia. Por que aquilo deu nisso?
Porque diante do Estado desacreditado cresceram as organizações mafiosas. Elas ocuparam o vazio de autoridade. Daí os magnatas russos. O senhor Abramovich, por exemplo, é dono do Chelsea, o time inglês que ganhou campeonatos na Inglaterra... E surgiram outros tantos milionários como ele. Ficaram formidavelmente ricos com o encolhimento do Estado. Por isso, proponho rever a política à luz de uma nova teoria crítica. Não devemos detonar a democracia representativa, mas fortalecê-la.
Como intensificar a democracia?
Uma boa opção seria aproximá-la da democracia participativa, que incorpora melhor a prestação de contas.
Professor, o senhor acompanhou com entusiasmo a experiência petista do orçamento participativo em Porto Alegre. Mas o partido acabou sendo derrotado pelo voto.
A idéia não saiu derrotada junto à população, tanto que a prefeitura de Porto Alegre continua a adotá-la. E mais: há orçamento participativo em 1.200 cidades da América Latina. No meu site, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, mantenho um observatório global das práticas de orçamento participativo e vejo que muitas cidades européias hoje se valem desse mecanismo testado em cidades latino-americanas. Não sou eu quem diz, mas o Banco Mundial: o orçamento participativo, além de ter surtido efeito sobre a distribuição da renda, permitiu que os empréstimos da instituição ficassem mais protegidos da corrupção.
Veja o caso dos conselhos municipais de saúde do Brasil: como funcionam bem, de maneira independente, com poder deliberativo e participação dos cidadãos! Esse modelo não se choca com a representação, apenas se articula com ela. Só que os partidos, de modo geral, não gostam dessa conversa de participação popular, pois a sentem como ameaça... Por essas e outras é que setores da população começam a alimentar um certo fundamentalismo contra os partidos. Reagem dizendo que todos estão podres, todos são vendidos, etc.
Aconteceu esta semana: um ministro da base aliada do governo é envolvido em denúncias de corrupção, entrega o cargo, mas se articula para fazer o sucessor. Esse tipo de manobra não faz com que o cidadão passe a descrer a política?
Evidente. Mas isso não acontece só no Brasil. Na Venezuela, Chávez só consegue fazer o que faz porque, lá trás, os partidos já vinham se degradando. Em compensação, na Itália, nos anos 90,a operação Mãos Limpas levou 630 empresários e líderes políticos para a prisão - só em Milão. Foi um processo de limpeza da corrupção que pegou amplos setores.
O senhor já disse que há mais corrupção no mundo. Em contrapartida, há menos democracia?
Exato. Há um déficit de democracia cada vez maior. Nos últimos 20 anos, agravaram-se os problemas da desigualdade no mundo, como prova o relatório do Pnud de 2000. Os 500 indivíduos mais endinheirados do planeta têm tanta riqueza quanto os 40 países mais pobres do globo, países que somam uma população de 1 bilhão de pessoas. Sendo assim, os países periféricos ficaram incapazes de fazer frente às políticas hegemônicas.
Neste ponto, eu ressalto o papel meritório de Brasil, Índia e África do Sul, ao cobrarem mais seriedade nas negociações internacionais. Veja agora o que aconteceu com Paul Wolfowitz, retirado do Banco Mundial. A maioria dos países-membros do banco pediu a saída dele, por corrupção. Mas Wolfowitz só caiu porque a União Européia (UE) resolveu derrubá-lo. Como no banco o poder de voto é correspondente ao PIB dos países-membros, de nada adiantaria os 180 mais pobres pedirem a cabeça dele. Isso é déficit democrático.
Podemos continuar a análise pensando na ONU, na guerra do Iraque, em Darfur... Se pensarmos em tudo isso vamos, como se diz aqui em Portugal, desfiar um rosário de muitas contas. Quanto à corrupção, ela também é um fenômeno em escala global, mas se dá em graus diferentes. Ela é pequena nos países nórdicos. O mesmo não posso dizer de Portugal, infelizmente. Aqui ela cresce e vejo isso claramente em pesquisas que faço sobre o sistema judiciário. Na África, outra realidade que também estudo, trata-se de problema gravíssimo. Grande parte da ajuda internacional para as nações africanas ou permanece nas mãos dos doadores ou vai para as mãos de líderes políticos locais. Não chega a quem de fato necessita dela.
Em certos países, experimenta-se a democracia direta. O que o senhor acha disso?
Os referendos, como as consultas e os conselhos populares, são mecanismos importantes para garantir participação. Mas não podem ser usados indiscriminadamente, exigem certas condições, inclusive culturais. A Suíça tem uma vastíssima tradição nessa área. Lá os referendos são uma prática incrustada na cultura política do país, e funcionam muito bem. Mas isso depende do grau de informação do cidadão e dos meios disponíveis para impedir a manipulação da opinião pública.
Vamos avaliar o que aconteceu em Portugal. Grupos de alto poder econômico, ligados à Igreja Católica, desviaram a discussão sobre o aborto com anúncios caríssimos, com intervenções televisivas, numa luta desigual. Fora isso, a Igreja intensificou seu trabalho publicitário gratuito nas homilias das missas. Mesmo assim, ao passar por um segundo referendo, o aborto foi legalizado.
O senhor aponta “a razão indolente” como um mal do nosso tempo. O que isso significa?
Ela é como uma pessoa preguiçosa. É a razão que não trabalha, não pensa, não se esforça, acomoda-se na superficialidade das coisas. Anos atrás, o modelo thatcherista foi apresentado como uma idéia acima de qualquer contestação, idéia para a qual não havia alternativa. Foi aceita no mundo inteiro, num movimento passivo, guiado pela razão indolente. Hoje, aceitamos que existem economias e economias, que as européias são diferentes da americana, que esta por sua vez é diferente das latino-americanas, e assim por diante.
A discussão sobre as mudanças climáticas, que hoje se impõe em termos globais, pode decretar o fim da razão indolente?
Sem dúvida. Não escaparemos disso. O meio-ambiente é justamente uma área em que a razão indolente dos Estados têm sido perversa. Evita-se pensar no tema fora dos ciclos eleitorais. Para enfrentar esse problema imenso, que afeta a todos, pede-se uma razão muito mais atenta, muito mais crítica e muito mais cautelosa no sentido de suspeitar daquilo que nos parece natural. Por exemplo: até pouco tempo o governo dos EUA sustentava que não havíamos de nos preocupar com o aquecimento global porque ele não estava provado cientificamente.
Então os países perderam um tempo enorme para reagir ao problema, relaxados numa indolência estrutural e política. Ora, num mundo com risco de colapso ecológico, essa indolência é trágica! As pessoas no Brasil parecem ignorar o ritmo de destruição da Amazônia. É absolutamente preocupante! Não é mais uma questão ambiental, mas de sobrevivência da humanidade. Por que o problema não entra para valer na agenda política? Porque esbarra em interesses econômicos. Voltamos ao ponto inicial.
O senhor enfatiza a necessidade de os países reagirem na chave do multiculturalismo. E condena o “vazio niilista” pós-moderno. Como apoiador de primeira hora do Fórum Social Mundial (FMS), não acha que o slogan “um outro mundo é possível” também é um tanto vazio?
Agradeço esta sua pergunta. Tenho acompanhado o movimento e continuo acreditando que ele é remédio contra o niilismo. Este slogan hoje é repetido em todo mundo exatamente por sua abertura. O movimento não está dizendo que o “outro mundo” é capitalista, socialista ou ambiental. Está dizendo que este sistema atual, que produz desigualdade, catástrofe ambiental e nos mergulha em processos de guerra, não é bom. Queremos outra coisa. O que é? Não sabemos. Vivemos num mundo de perguntas fortes e respostas fracas.
Seu livro opõe duas categorias: a “sociologia das ausências” e a “sociologia das emergências”. Como chegou a essa formulação teórica?
A razão indolente produz ausências. Produz exclusão. Dou um exemplo: a razão indolente acredita que só a ciência é pensamento rigoroso. E todos os outros saberes são irracionais. Acontece que a biodiversidade nos mostra o quão importante é o saber dos índios, o saber dos povos originários de certas regiões. Saberes sem os quais não conseguiremos preservá-la. Portanto, a visão indolente da ciência, como fonte única de saber, produziu, por exemplo, a ausência do pensamento indígena. É simples: se eu quero ir à lua, precisarei do pensamento científico. Mas se eu quero preservar a diversidade amazônica, preciso conhecer o pensamento do índio.
Já a sociologia das emergências é o outro lado disso tudo. É a incorporação de saberes, a inclusão de experiências humanas que, mesmo pequeninas, funcionam como embriões de alternativas. Não é à toa que, hoje, a economia solidária é a sétima do mundo! Microcréditos, mutualidades, cooperativas, projetos populares, programas do Terceiro Setor...não é pouca coisa. Em setembro vou a Belo Horizonte participar do Festival do Lixo e da Cidadania. São catadores que se organizaram em cooperativas e fazem um trabalho incrível para melhorar suas vidas. Trata-se de um movimento absolutamente vibrante e inovador.
Ao se valer dessas duas sociologias, está levando em conta o “fator China”, que pode mudar completamente o jogo no plano mundial?
A China é a prova de que Max Weber errou. O grande sociólogo nos fez acreditar que o capitalismo só se desenvolveria no Ocidente, devido a uma série de fatores. Mas hoje temos uma China pujante em termos econômicos, porém politicamente anômala, uma China que combina economia de mercado com partido único comunista. Claro, este país será um grande jogador global, mas temos de fazer todos os esforços para que ele venha se juntar à comunidade internacional em termos de direitos humanos e democracia.
Atualmente contam-se 100 milhões de operários chineses vagando pelo país, de cidade em cidade, à procura de emprego. Cem milhões de trabalhadores sem nenhum direito, sem garantias, sem nada. São os bóias-frias chineses. Isso é dramático. Tenho trabalhado muito na África e, por lá, meus colegas mostram uma visão muito positiva em relação à China. Porque ela está emprestando dinheiro para os países africanos sem impor condições, apenas interessada em sugar-lhes matéria-prima. É dinheiro alto, que chega sem aquelas condições do Banco Mundial, do tipo “você tem que ser democrático, tem que fazer isso, aquilo...”. Os chineses dão o dinheiro e a liberdade dos beneficiários se desenvolverem como acharem melhor. No contexto africano, isso é altamente emancipatório. A China já é o maior investidor estrangeiro em Angola, por exemplo.
Estamos assistindo à construção de um novo imperialismo?
As opções chinesas hoje se confundem com opções de países capitalistas e, de certo modo, com opções de sistemas coloniais. Ela investe na infra-estrutura de países africanos para garantir a circulação e exportação das matérias-primas de que necessita. A China será absolutamente voraz em termos de recursos naturais.
O que é “ecologia dos saberes”?
Uso a expressão na tentativa de incorporar visões que vão além do conhecimento técnico-científico. Tenho andado pela África. Você não imagina o quanto aprendo sentado embaixo de uma árvore, escutando um ancião daquelas comunidades remotas. É outra fonte de saber.
O senhor morou em favelas no Rio, nos anos 70, para fazer sua tese de doutorado. O que sente quando vê morros cariocas conflagrados na guerra do tráfico?
Quando morei no Rio, em plena ditadura, não havia essa violência toda. Eu me sentia até mais seguro na favela. Hoje o que vejo são respostas violentas e desorganizadas da população ao enfrentar a profunda desigualdade brasileira. Não se esqueça de que o Brasil é um dos países mais injustos do mundo. Esse tipo de resposta social se verifica em outros lugares, também. Johannesburgo tem taxas de violência superiores às do Rio.
Os negros sul-africanos achavam que o fim do apartheid lhes daria uma sociedade melhor, mas os brancos continuam mais ricos e influentes. O que vejo no Brasil é, sobretudo, a situação de desespero da juventude face a uma economia que não a absorve e uma sociedade que a expõe à corrupção todos os dias. Como não apelar para a violência? Como não recorrer ao lucro rápido das drogas? Em termos sociológicos, os jovens estão ausentes do Brasil.