"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sexta-feira, setembro 28, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 26/09/07

O Gasoduto do Sul, a Integração sul-americana e a Petrobras. Artigo de Carlos Lessa

"O futuro suprimento venezuelano é estratégico para a retomada da industrialização brasileira e complemento para a termoeletricidade nacional", escreve Carlos Lessa, professor titular de Economia Brasileira da UFRJ e ex-presidente do BNDES, defendendo o gasoduto do sul, em artigo publicado no jornal Valor, 26-09-2007. Ele critica o ceticismo da Petrobras em relação à proposta de Hugo Chávez. Segundo Carlos Lessa, "se o governo brasileiro se definiu por uma estratégia de integração sul-americana, a Petrobras está obrigada, a exemplo da Pedevesa, a servir ao fortalecimento dessas relações". Segundo ele, "as petroleiras mundiais são contra os gasodutos; esta infra-estrutura as desloca, pois exige, tecnicamente, acordos geopolíticos fundamentais entre o produtor e o utilizador do gás". A Petrobras não pode ser simplesmente mais uma petroleira.

Eis o artigo.

"Em 2005 a Petrobras fechou acordo com a Pedevesa, compreendendo um elenco de projetos conjuntos. Haveria a troca de participações entre as duas estatais petroleiras sul-americanas, sendo que a Pedevesa participaria na refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, e a Petrobras no campo petrolífero Carabobo I (Venezuela). No mesmo bloco, haveria participação da Petrobras na exploração do extremamente importante e promissor depósito de gás na província de Mariscal Sucre. Há dois anos, está lançada a idéia de um gasoduto que remeteria gás natural das imensas jazidas venezuelanas para complementar o consumo industrial brasileiro e suprir Buenos Aires. Seria a coluna vertebral do início de uma integração pela energia na América do Sul.

Consistiria em um eixo que possibilitaria articular Uruguai, Paraguai e talvez Chile na equação energética continental com um combustível que, a cada dia, vê aumentada sua importância ante o débil crescimento das reservas internacionais de petróleo, frente à evolução do consumo internacional do combustível.

Nos últimos 20 anos, não foram descobertas novas bacias petrolíferas; o crescimento das reservas tem sido, basicamente, à base de reavaliações técnicas das jazidas conhecidas. A expansão do consumo mundial de petróleo vem elevando o preço relativo dessa energia, o que abre um horizonte extremamente promissor para a exploração de areias petrolíferas, petróleos ultra-pesados e, principalmente, de gás, quer como combustível, quer como matéria-prima. O gasoduto é vital para o balanço energético da Argentina, que necessita de combustível para seu desenvolvimento industrial, além do aquecimento doméstico durante os meses do inverno. Por outro lado, os dutos limitam a contribuição de gás boliviano ao Brasil. O futuro suprimento venezuelano é estratégico para a retomada da industrialização brasileira e complemento para a termoeletricidade nacional. Nosso país tem, ainda, disponível imenso potencial hidrelétrico, bem como pode ser o celeiro bioenergético do continente, porém não pode prescindir de gás. O gás é um ativo estratégico da Venezuela em seu futuro exportador de energia. O governo venezuelano é o que menos depende do gasoduto, do ponto de vista econômico trivial. Sabe que este combustível liquefeito será um energético com demanda explosiva nos próximos anos, e que deslocará a nafta como matéria-prima, ponto de partida da cadeia petroquímica.

Creio que com grande sabedoria estratégica e inspirado pela visão da integração sonhada por Simon Bolívar o governo venezuelano prioriza a construção do gasoduto. Desnecessário dizer que os laços da Venezuela com a Argentina, hoje importantes para o refinanciamento do passivo externo platino, estarão hiperconsolidados pelo gasoduto, que afastará Buenos Aires dos riscos de desabastecimento domiciliar no período invernal.

Para meu espanto, a Petrobras vem criando dificuldades no projeto de exploração de gás de Mariscal Sucre, autodefinindo-se como uma petroleira em competição com as demais irmãs, no nível do mercado global. A Petrobras vira as costas para a integração sul-americana e se encontra com "medo" do gasoduto, pois não quis rever de maneira fraterna o acordo com a Bolívia, firmado pelos presidentes neoliberais (FHC e o seu parceiro boliviano). No ano passado assisti um alto executivo da Petrobras definir que a missão da companhia era servir a seus acionistas. Claro que esta mesquinharia está reduzindo o Estado brasileiro a alguém que tem ações da companhia. Obviamente, com esse discurso banal a direção da Petrobras quer que os acionistas estrangeiros - mais de 40% do capital da companhia está em ADRs no exterior - se sintam priorizados. Coloca em risco a visão de futuro sul-americano em nome de uma prosaica autodefinição e um alinhamento ridículo com outras petroleiras. Afirmo que a missão histórica da Petrobras não se reduz a servir a seus acionistas, nem apenas a permitir as carreiras de seus funcionários.

A Petrobras nasceu da campanha "O Petróleo é Nosso". Foi construída com imenso esforço pelos brasileiros, que lhe garantiram o mercado interno, e viabilizaram uma robusta lucratividade em nome da soberania energética nacional. É uma empresa estatal estratégica para o futuro energético brasileiro. Deveria se definir como empresa de energia. É uma instituição pública com forma empresarial, que depende e deve estar a serviço do desenvolvimento nacional. Não é uma empresa "solta", cuja referência administrativa e teleológica seja a cotação de suas ações na bolsa de Nova Iorque. Se o governo brasileiro se definiu por uma estratégia de integração sul-americana, a Petrobras está obrigada, a exemplo da Pedevesa, a servir ao fortalecimento dessas relações. As petroleiras mundiais são contra os gasodutos; esta infra-estrutura as desloca, pois exige, tecnicamente, acordos geopolíticos fundamentais entre o produtor e o utilizador do gás. O gás liquefeito pode ser tratado como commodity, o que preservará o papel das petroleiras mundiais, agora ameaçadas pelo cenário futuro de um petróleo se esgotando. O consumo mundial projeta um progressivo encarecimento do petróleo. Países que esgotaram seu petróleo, exportando-o a US$ 3 o barril, são hoje importadores de óleo a mais de US$ 70. A Indonésia é um exemplo trágico de país que banalizou suas reservas. A China, com inteligência geopolítica, perfura poços e os mantém como estoque.

Ao invés de exportar excedentes nascidos de seu raquítico crescimento econômico nos últimos 25 anos, o Brasil deveria pensar no petróleo brasileiro como uma salvaguarda nacional e uma boa aplicação financeira para o futuro."

Instituto Humanitas Unisinos - 26/09/07

Autonomia na pós-modernidade: um delírio?

Conceitualmente, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) pode ser apontado como o fundador da modernidade e, consequentemente, da autonomia do sujeito, ao utilizar seu princípio da dúvida metódica e submeter tudo ao exame impiedoso da razão. “Este princípio, de aplicação universal, propugna a refundação de todo saber por meio do aval da certeza subjetiva. Isso abarca tanto a refundação das ciências quanto a refundação das normas que regem as escolhas do sujeito individual. Deste modo, tanto as ciências quanto a moral entram em um novo paradigma”, menciona o psicanalista e filósofo Mário Fleig na abertura da edição 86 dos Cadernos IHU Idéias, intitulado Autonomia na pós-modernidade: um delírio?

Fleig
continua seu raciocínio avaliando que, no campo da refundação da moral, “vemos que a autonomia da vontade se relaciona com a noção de emancipação, ou seja, recusa qualquer lei que venha do outro e que não tenha passado pelo exame da razão. Trata-se, então, da radical recusa de um outro que não seja o próprio eu, ou o próprio homem ou a própria razão. A autonomia da vontade, como se vê, entra em choque como o modelo tradicional de fundamentação das normas morais. Assim, autonomia passa a significar repúdio de qualquer ordenamento heterônomo, como a lei sagrada e transcendente, imposta a partir de um Outro, seja na forma da religião ou da tradição”.

Entretanto, será preciso aguardar até o século XVIII para que, através do sistema do filósofo de Könnigsberg, Immanuel Kant, a autonomia da vontade passe a significar, positivamente, “a obediência à lei que nós mesmos nos prescrevemos, ou seja, a capacidade apresentada pela vontade humana de se autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno. Kant, na sua busca de uma fundamentação da moral, que não encontra na teoria aristotélica da prudência e das virtudes, transforma a noção de liberdade de seu antecessor em autonomia da vontade, no exercício da qual situa o imperativo categórico, princípio supremo da moralidade”, menciona Fleig. Assim, kantianamente falando, “a autonomia do ser humano significa a capacidade de se autogovernar e o direito de um indivíduo tomar decisões livremente, no âmbito moral e no âmbito intelectual, ou seja, a autonomia da vontade remete ao princípio segundo o qual a vontade expressa livremente por pessoa capaz, e dentro das normas legais, deve ser considerada soberana”.

Ainda que não seja o enfoque da edição 86 dos Cadernos IHU Idéias discutir a pertinência e aplicabilidade do edifício moral kantiano, Fleig questiona “aonde levaria a exacerbação do princípio de não depender de nada e de ninguém, rompendo inclusive com a idéia kantiana de autonomia como submissão a lei comum calcada na solidariedade”. A hipótese que aventa é que encontramos “na pós-modernidade a emergência de novos ideais que propugnam uma sociedade de indivíduos que reúne meros sujeitos de direitos, comandados por imperativos de gozar a qualquer preço, sem depender de ninguém e de nada e sem limites. Denominamos esse fenômeno emergente de delírio de autonomia”.

Não se trata de colocar em questão o conceito de autonomia da vontade, correlato de liberdade e, como apontado por Hegel, uma das maiores conquistas da modernidade. Fleig enfatiza que é preciso prestar atenção ao fato de que os “desdobramentos da exacerbação dos ideais de autonomia têm produzido efeitos sociais e subjetivos inquietantes, em formas que se apresentam em novos ideais configurados em modo de vida em que não haveria limites para nada, gozar a qualquer preço”. Para ele, “a autonomia alcança o limiar do delírio quando o ideal se orienta pela abolição da dimensão do impossível, ou seja, o ideal de vida perseguido pressupõe que tudo seja possível. Outro traço que caracteriza o que passou a ser denominado de pós-modernidade é, além da recusa de qualquer limite, a descrença generalizada em qualquer referência que seja transcendente ao contexto vivido. O delírio de autonomia poderia ser descrito, então, como a dissolução dos fundamentos da moral, à medida que a consistência da alteridade desaparece (o outro já não conta como uma das referências que orientariam a vontade na busca do que seria bom para o próprio sujeito em seu convívio com o semelhante), assim como a dimensão da auto-recriminação”.


Nova economia psíquica

Fleig admite a hipótese de que vivemos o advento de uma nova economia psíquica, retomando uma idéia tributária a Charles Melman. E no que consiste essa nova economia psíquica? O próprio Fleig argumenta: “Ela pode ser caracterizada como o efeito da economia neoliberal globalizada somado ao impacto subjetivo das tecnologias digitais e das transformações no campo da biológica (novas formas de sexualidade e de reprodução etc.), correlato a um progressivo declínio da dimensão do grande Outro (conforme a denominação de Lacan (1966)) e da lógica trinitária (própria da linguagem cotidiana, organizada pelas operações metafóricas de substituições e criação), e da supremacia crescente da lógica binária (sistema de informação), que determinam o deslocamento da responsabilidade centrada no sujeito para a responsabilidade atribuída aos procedimentos e enunciados sem sujeito”. Até aqui podemos captar inúmeras sutilezas perceptíveis em nossa sociedade e vivências diárias, quando o uso do computador nos outorga a capacidade de justificar ausências ou práticas que, em outras circunstâncias, não teríamos, ou a cortina burocrática que abafa o bom funcionamento do Estado e seus serviços, por exemplo.

Fleig continua: “Esta sucinta caracterização de uma nova economia psíquica, que teria como um de seus produtos a emergência de sujeitos organizados na lógica da autonomia delirante, requereria o exame dos efeitos sociais e subjetivos das grandes revoluções que marcaram a Modernidade e cuja continuidade e desdobramentos vivemos na atualidade: a revolução da ciência moderna, as revoluções sociais (revolução inglesa, revolução americana, revolução francesa, revolução russa, revolução chinesa, revolução de maio de 1968 etc.), as revoluções biológicas, as revoluções industriais, as revoluções na informação, a revolução digital etc. Poderemos apenas tomar alguns detalhes”.


Um ser humano que tudo pode?

Assustador, mas plausível em face dos rumos que nossa sociedade vem tomando, paira o espectro do ser humano como dotado de poderes ilimitados, senhor da Terra e de seu destino. Mas por que razões o sujeito se acredita capaz dessa façanha? “Uma das razões poderia ser encontrada no conjunto de fatores que determinaram o advento de uma nova economia psíquica. Hoje, a felicidade e a vida boa já não resultam mais da harmonia com o ideal de cada um partilhado socialmente, mas do objeto que possa trazer satisfação, equivalente do objeto de consumo ofertado sem limites”, esclarece Fleig.

De acordo com o filósofo e psicanalista, “A nova economia psíquica é organizada pela exibição de prazer e determina novos deveres, dificuldades e sofrimentos. Os novos sujeitos tendem a operar no puro registro da demanda, ou seja, se há um desejo ou carência, a satisfação do mesmo se torna legítima. A demanda é então de encontrar sua satisfação, tomada como um direito, exigível a qualquer preço. A posição da autonomia tradicional, orientada por princípios que marcavam os limites, está em falta, e em seu lugar se encontra o excesso como norma”.

As conseqüências dessa postura, mais do que aterradoras, põem em xeque as noções de normalidade e limites que estabelecemos para a vida em sociedade: “A ponta nevrálgica desta cadeia emerge, em seus efeitos socialmente visíveis, nas formações paranóicas, nas alucinações tóxicas e nos surtos de violência incontida. O que ocorre é que o Outro, como referente da lei simbólica, entra em declínio e se inicia um crepúsculo do mundo, correlato da suspensão de toda imunidade psíquica, ficando o sujeito tomado em uma relação dual, com incidências mortíferas. Tais efeitos psíquicos e sociais se evidenciam no declínio das condições de enunciação, no incremento da impessoalidade (formações de massa) e em funcionamentos que pervertem as funções estruturantes da condição humana. As estes efeitos denominamos de patologias da responsabilidade, que aparecem de modo generalizado ao lado da progressiva impessoalização das relações de trocas (laços de parentesco, troca de bens e trocas lingüísticas)”.

Fleig é professor do curso de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos e membro da Associação Lacaniana Internacional. Graduado em Psicologia pela Unisinos e em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, é mestre em Filosofia pela UFRGS, com a dissertação Os esquemas horizontais em Ser e Tempo, doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com a tese O tempo é a força do ser – Lógica e temporalidade em Martin Heidegger, e pós-doutor pela Université de Paris XIII (Paris-Nord), França, em Ética e Psicanálise. A edição 150 da IHU On-Line, de 08-08-2005, entrevistou Fleig sob o título As modificações da estrutura familiar clássica não significam o fim da família. Na edição 179, de 08-05-2006, Fleig concedeu a entrevista Freud e a descoberta do mal-estar do sujeito na civilização. Na edição 185 da IHU On-Line, concedeu a entrevista O declínio da responsabilidade, antecipando assuntos que apresentou no IHU Idéias sob o título “Ah! Não vai dar nada” Patologias da responsabilidade e delírio de autonomia na pós-modernidade, apresentado em 29-06-2007 no lançamento do Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos? Na edição 220 da IHU On-Line, de 21-05-2007, concedeu a entrevista O delírio de autonomia e a dissolução dos fundamentos da moral.

Os Cadernos IHU Idéias podem ser adquiridos na Livraria Cultural, no Campus da Unisinos, ou pelo endereço livrariaculturalsle@terra.com.br. A publicação pode ser acessada através do site do IHU, www.unisinos.br/ihu, editoria Publicações¸ um mês após seu lançamento.

Instituto Humanitas Unisinos - 26/09/07

Lula rejeita metas de emissão de gases para países pobres

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva reconheceu ontem que países emergentes como o Brasil precisam ajudar a atenuar o impacto das mudanças climáticas no planeta, mas reafirmou sua posição contrária ao estabelecimento de metas rígidas para controlar a emissão de gases nocivos à atmosfera em economias menos desenvolvidas, como as nações mais avançadas querem. A reportagem é de Ricardo Balthazar e publicada pelo jornal Valor, 26-09-2007.

Em seu discurso na abertura dos debates da 62ª Assembléia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Lula disse que as políticas adotadas pelos países em desenvolvimento para combater o problema devem implicar apenas "responsabilidades dos governos diante de suas próprias populações". Ele criticou os países ricos por não terem cumprido os compromissos estabelecidos pelo Protocolo de Kyoto, o tratado internacional que fixou metas para reduzir a emissão dos gases responsáveis pelas mudanças no clima. "Cada um de nós deve assumir sua parte nesta tarefa, mas não é admissível que o ônus maior da imprevidência dos privilegiados recaia sobre os despossuídos da Terra", disse. "Os países mais industrializados devem dar o exemplo."

Os EUA abandonaram Kyoto e vários membros da União Européia têm dificuldades para cumprir as metas estabelecidas no tratado, mas seus líderes têm pressionado os países em desenvolvimento a aceitar compromissos mais exigentes nas negociações sobre um novo tratado para lidar com o problema depois de 2012, quando expira o Protocolo de Kyoto.

O alvo principal das pressões dos países ricos é a China, que tem crescido aceleradamente e está prestes a superar os EUA como o maior poluidor do planeta. Países como o Brasil, cujas emissões são bem menores, temem que metas rigorosas travem seu desenvolvimento ao impor custos para suas empresa e torná-las menos competitivas. Representantes de 15 países, incluindo EUA, Brasil e China, se reunirão amanhã e sexta-feira em Washington para discutir essas questões, numa reunião promovida por iniciativa do governo americano para influenciar o rumo das discussões sobre o novo tratado. Ontem, Lula ofereceu o Rio de Janeiro como sede de uma conferência internacional da ONU sobre o tema em 2012.

No discurso, o presidente disse que o Brasil está fazendo sua parte, mencionando a redução no ritmo da destruição da Floresta Amazônica e o avanço no uso de combustíveis de origem renovável como o etanol. "O mundo precisa urgentemente de uma nova matriz energética", afirmou. "Os biocombustíveis são vitais para construí-la."

O presidente disse que o uso do álcool como combustível no Brasil permitiu que o país evitasse nas últimas três décadas a emissão de 644 milhões de toneladas de gás carbônico, o mais nocivo dos gases responsáveis pelo efeito estufa. Segundo estimativas recentes da ONU, o Brasil emite por ano 332 milhões de toneladas de carbono na atmosfera, 1% das emissões mundiais.

Lula, que tem viajado ao redor do globo para promover o etanol, procurou desfazer a preocupação crescente da comunidade internacional com o impacto que o aumento da produção de biocombustíveis pode ter sobre os preços dos alimentos e áreas em que o meio ambiente é frágil, como a Floresta Amazônica.

"É plenamente possível combinar biocombustíveis, preservação ambiental e produção de alimentos", disse o presidente. "No Brasil, daremos à produção de biocombustíveis todas as garantias sociais e ambientais." Ele disse que no futuro os combustíveis alternativos produzidos no Brasil serão vendidos no mercado internacional com um "selo que garanta suas qualidades sócio-laborais e ambientais".

Instituto Humanitas Unisinos - 26/09/07

A banalização do absurdo. Acabou o trabalho escravo no Brasil

"Acabou o trabalho escravo no Brasil. Era uma imensa chaga aberta - uma delas apenas.
Trabalho escravo em pleno século 21 era também uma demonstração - uma delas apenas - do primitivismo do país tropical", escreve Clóvis Rossi, jornalista, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 26-09-2007.

Ele comenta:

"Agora, não há mais. Ou melhor, não há mais fiscalização, logo não haverá mais denúncias de trabalho escravo e, sem denúncias, só saberão que existe trabalho escravo suas vítimas diretas e os respectivos algozes. Ninguém mais.

É o mundo ideal para qualquer governante, já que todo governante odeia críticas e denúncias. A "mídia golpista" perde, assim, uma chance de atacar o governo. Tivessem a Procuradoria Geral da República e o STF também suspendido seus trabalhos antes da denúncia do mensalão e de sua aceitação, não existiria o que a procuradoria chamou de "organização criminosa", rótulo aceito pelo STF.

Ironias à parte, o fato é que a suspensão da fiscalização sobre trabalho escravo é um aspecto -um deles apenas- da banalização do absurdo em que se transformou o Brasil. A paralisação se deve, essencialmente, a uma ação de senadores contra a autuação de uma fazenda do Pará. Os pais da pátria, em vez de zelarem pelo devido cumprimento da lei, preferem punir quem de fato zela por ela. Se houve abuso dos fiscais, o certo seria puni-los, após a devida apuração.

Paralisar a fiscalização equivale a deixar de prender assassinos em flagrante só porque um policial, num dado dia, abusou na hora de prender alguém.

Mas, bem feitas as contas, quem se surpreende com o absurdo, ainda mais quando o absurdo é praticado por senadores? Afinal, o Senado caiu oficialmente na clandestinidade na hora em que líderes do governo e da oposição decidiram reunir-se, longe das vistas do presidente da Casa, para decidir o que ela deve fazer. Seria absurdo, não estivéssemos no Brasil."

quarta-feira, setembro 26, 2007

Alguns Dados sobre os EUA

"As acções alcançaram o que parece ser um patamar permanentemente alto". Irving Fisher, Professor of Economics, Yale University, 1929.

São cada vez maiores os activos que se esfumam...

EUA: UMA ECONOMIA COM PÉS DE BARRO
Para saber o montante da (colossal) dívida pública americana neste exacto instante, clique aqui .




"...sob certas condições, os capitalistas privados inevitavelmente controlam, directa ou indirectamente, as principais fontes de informação (imprensa, rádio, educação). É então extremamente difícil, e na maior parte dos casos na verdade quase impossível, para o cidadão individual chegar a conclusões objectivas".

Albert Einstein, no seu ensaio de 1949 Porquê o socialismo .

Saque a descoberto sobre o resto do mundo.

A histeria do aquecimento global

A histeria do aquecimento global
Ar quente & dinheiro frio – os comerciantes do medo

por Alexander Cockburn [*]

Alexander Cockburn. Nenhuma resposta é mais previsível do que aquelas esganiçadas pelos que vendem o medo do efeito de estufa: dizem eles que qualquer um que questione as suas afirmações está na folha de pagamento das companhias de energia. Uma segunda réplica, igualmente previsível, contrasta o número sempre diminuto de agnósticos com as crescentes legiões de cientistas agora renascidos para a "verdade" de que o CO 2 antropogénico é responsável pela tendência para o aquecimento da Terra, a fusão das calotas polares, o alteamento dos mares, o aumento dos furacões, o declínio da fertilidade do pinguim e outros horrores demasiado numerosos para serem mencionados.

Realmente, as companhias de energia adaptaram-se há muito às fantasias em voga, recitando devidamente todo o catecismo acerca da neutralidade do carbono, descontraidamente e sem rir referem-se ao encantador endosso de Tom Friedman ao "carvão limpo", reposicionando-se a si próprias como pioneiras interessadíssimas na investigação de virtuosos combustíveis alternativos, a estabelecerem-se confortavelmente em novos lares, tais como o "Energy Biosciences Institute" da British Petroleum no Campus de Berkeley da Universidade da Califórnia, primeiro fruto de um acordo de US$ 500 milhões entre aquela companhia petrolífera e um campus cuja família fundadora, os Hearsts, afinal de contas fez a acumulação da sua fortuna no negócio mineiro.

De facto, quando se chega ao patrocínio corporativo de teorias insanas acerca da razão porque o mundo está a ficar mais quente, a conspiração de interesses mais bem documentada é entre os comerciantes do medo do aquecimento global e a indústria nuclear, agora largamente possuída por companhias de petróleo, cujas perspectivas vinte anos atrás pareciam negras, no meio de manchetes acerca das precipitações de Chernobyl, centrais a envelhecerem e depósitos de resíduos nucleares com fugas até à eternidade. Os que administram a fabricação do medo do efeito de estufa estão bem conscientes de que a única saída para a crise imaginária que têm estado a patrocinar é através de uma porta com a inscrição "energia nuclear", com uma porta de serviço lateral com a etiqueta "carvão limpo". James Lovelock, o Rasputin do Gaia, disse que "A energia nuclear tem uma importante contribuição a dar". (Àqueles que se sobressaltaram com as palavras "crise imaginária", remeto ao meu último artigo acerca deste tópico, onde enfatizo que ainda há zero evidência empírica de que a produção de CO 2 antropogénico esteja a dar qualquer contribuição mensurável à actual tendência para o aquecimento do mundo. Os comerciantes do medo do efeito de estufa confiam inteiramente em modelos computacionais não verificados, brutalmente super-simplificados, para apontar o dedo à contribuição pecaminosa da espécie humana).

O histérico mais bem conhecido do mundo, auto-promotor do tópico da responsabilidade física e moral do homem pelo aquecimento global, é Al Gore, um sócio da indústria nuclear e dos barões do carvão desde o primeiro dia em que entrou no Congresso encarregado do sagrado dever de proteger os interesses orçamentais e regulamentares do Tennessee Valley Authority e do Oakridge National Lab. As "task forces" da Casa Branca sobre alterações climáticas nos anos Clinton-Gore foram sempre bem despachadas por Gore e o seu conselheiro John Holdren com gente da indústria nuclear como John Papay da Bechtel.

Como cidadão de Washington desde os seus verdes anos, Gore sempre entendeu que a ameaça da inflação é a ferramenta mais segura para engordar orçamentos e incitar multidões de eleitores. Em meados da década de noventa ele posicionou-se como chefe da aliança estratégica e táctica formada em torno do "desafio das alterações climáticas", que agora avançava para ocupar o lugar do comunismo no teatro essencial a toda a vida política. Na verdade, foi no New Republic, um incansável agente publicitário da ameaça soviética em fins da década de 70, que Gore anunciou em 1989 que a guerra ao aquecimento global não poderia ser ganha sem uma renovação dos valores espirituais.

A infantaria nesta aliança tem sido os privilegiados modeladores climáticos e a sua Internacional, o Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) da ONU, cuja perícia científica colectiva é reverentemente invocada por todos os devotos do catecismo dos fabricantes do medo do Efeito de Estufa. Fora o facto de que o cemitério de erros intelectuais está recheado com uma miríade de lápides de "esmagador consenso científico", o IPCC tem o exército habitual de funcionários e colectores de privilégios, e uns pequenos salpicos de cientistas reais com a qualificação primária de climatologistas ou físicos da atmosfera.

Identificar tanto os modeladores do clima financiados por governos como as suas tropas de choque, os membros do IPCC, com rigor e objectividade científica é tão irrealista quanto detectar tais atributos num craniologista financiado por Lombroso que estuda a cabeça de um assassino numa prisão do século XIX para criminosos insanos. Os dedos e compassos dos craniologistas foram programados pelos habituais incentivos de estipêndios, privilégios e ego profissional a fim de descobrir sulcos, protuberâncias e depressões na caveira daquele assassino, cada uma delas meticulosamente equacionada com uma ingovernável paixão, um défice étnico ou um desarranjo mental. A cabeça do indivíduo assassino tornou-se um modelo universal, o particular promovido a uma teoria inatacável.

Lombroso e os seus seguidores pelo menos mediam cabeças. Mas tudo o que Al Gore alguma vez precisou para promover a sua inatacável teoria do aquecimento global feito pelo homem foi de um dia quente ou alguma chuva forte. Viesse um Verão chuvoso (1995), um El Niño perfeitamente rotineiro (1997) ou um incêndio florestal na Florida (1998) e lá estava Gore para a foto oportunidade, com o dedo levantado a advertir da pioria do aquecimento por vir. O ano de 1997 também encontrou Gore no Parque Nacional de Glaciares, a apontar para o glaciar Grinnell e a dizer com gravidade à imprensa que ele estava a fundir, o que na verdade tem estado a acontecer desde o fim da Pequena Idade do Gelo, de 1450-1850 . Os glaciares das latitudes médias expandem-se, assim como se contraíram no Período do Aquecimento Medieval, mais quente do que hoje e portanto tão vexatório para alarmistas do clima como Michael Mann (agora um burocrata reinante do clima no IPCC) que eles o extirparam dos seus gráficos de temperaturas históricas, tal como um editor no tempo de Stalin recortou uma foto da equipa de antigos bolcheviques para livrar-se de indesejáveis que haviam sido anatematizados.

A teoria de um aquecimento global produzido pelo homem é alimentada por previsões pseudo quantitativas de carreiristas do clima a extraírem [dados] primariamente do grande mega-computador Modelos de Circulação Geral (MCG), os quais incluem o National Center for Atmospheric Research (NCAR), o Goddard Institute for Space Studies da NASA, o Geophysical Fluid Dynamics Lab do Departamento do Comércio, um MCG privado que costumava estar no estado de Oregon antes de a Universidade de Illinois atrair a equipe para outro lugar. Há um outro em Livermore e um na Inglaterra, em Hadley.

Estas burocracias da programação do modelo computacional manobram muitos milhares de milhões de dólares e pretendem a sua auto-preservação e reforços orçamentais tal como as burocracias nucleares cognatas de Oakridge e Los Álamos.

É tão improvável que desenvolvam modelos refutando a hipótese do aquecimento global induzido por humanos quanto o IPCC de dizer que o tempo possivelmente está a ficar um pouco mais quente mas que não há grande motivo para alarme e na verdade até alguma razão para regozijo, uma vez que este aquecimento (cujas causas naturais discuti naquele artigo recente) dão-nos uma estação de plantio mais longa e CO2 acrescido, um poderoso fertilizante de plantas. Bem vindo ao amadurecimento global.

Remontando ao princípio da década de 1970, em agências tais como a Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento (Conference on Trade and Development, UNCTAD) a ONU alimentou alguns planos bastante radicais para uma nova ordem económica internacional, os quais estabeleciam termos de comércio mais favoráveis para os países mais pobres. No fim da década dos 70 tais esperanças estavam a esvanecer-se sob a maré neoliberal e a era Reagan-Clinton pôs-lhe fim. No fim da década de 1980 os altos escalões da ONU perceberam claramente que o "desafio" das alterações climáticas poderia ser o cavalo de batalha para reconstruir a cada vez mais esfarrapada autoridade moral da organização, e para reclamar um papel além daquele de ser um óbvio garoto de recados americano. Em 1988, o Programa das Nações Unidas para o Ambiente, criado originalmente em 1972, foi unido num não sagrado matrimónio burocrático à Organização Metereológica Mundial da ONU, dando-nos o IPCC.

O ciclo de previsões alarmistas agora está bem estabelecido. Não muito antes de algum novo debate da ONU sobre "O que fazer acerca do clima", algum conhecido vendedor de medo como James Hansen ou Michael Mann fará uma trémula declaração acerca da aceleração do tempo e das dimensões da crise do aquecimento.

A choradeira é então retomada pelo IPCC (e na década de 1990 pelo par Clinton/Gore - Casa Branca), com os comunicados de imprensa postos em manchete pelo New York Times, exactamente com a mesma falta intencional de avaliação crítica com que aquele jornal reciclou as mentiras do governo acerca das armas de destruição maciça de Saddam. Meses e anos mais tarde virão as qualificações e retractações, muito depois de novos contratos e privilégios terem sido concedidos, e novas legiões contratadas para os impérios sempre em expansão dos fabricantes do medo. (O Pentágono pelo menos entendeu a situação, e instruído por um brilhante almirante que conduz o estudo do Center for Naval Analysis, está a construir o fundamento intelectual para enormes novos aumentos orçamentais com base em hipotéticas conexões entre aquecimento global e terrorismo explosivo devido à fome).

Quando a realidade medida não coopera com as apavorantes previsões do modelo, são cozinhados novos "factores" compensadores, tais como os – populares por breve tempo – dos aerossóis da década de 1990, recrutados para arrefecer o calor obviamente excessivo previsto pelos modelos. Ou os existentes dados inconvenientes são despachados como aconteceu com as amostras dos cilindros de gelo que deixaram de confirmar as necessidades dos modeladores de temperaturas recorde hoje a serem opostas às de meio milhão de anos atrás. Como observou Richard Kerr, o homem do aquecimento global na revista Science, "Os modeladores climáticos têm estado a trapacear por tanto tempo que isto se torna quase respeitável".

A consequência? Tal como a espiral de gastos com armas fomentadas pelos mercadores do medo da Guerra Fria, vastas quantias de dinheiro serão gastas inutilmente em programas que não funcionam contra um inimigo que não existe. Enquanto isso, perigos reais e ambientais sanáveis são tratados superficialmente ou ignorados. A histeria governa estes dias, afogando necessidades urgentes de limpeza no nosso quintal enquanto aplaina o caminho para a indústria nuclear colher as suas recompensas globais.

12-13/Maio/2007
Do mesmo autor: Is Global Warming a Sin?

[*] Co-editor de CounterPunch e co-autor de Dime's Worth Of Difference: Beyond The Lesser Of Two Evils

O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/cockburn05122007.html


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

terça-feira, setembro 25, 2007

Le Monde Diplomatique Brasil - Agosto 07

A batalha das palavras

O que está em jogo é a arquitetura da “rede” como base de uma nova ordem mundial. Mas que controla a rede? Na disputa, o sentido das palavras desempenha papel decisivo. Pois quem domina as palavras domina as construções mentais que induzem as políticas

Armand Mattelart

O empobrecimento dos conceitos que servem para designar o estado atual e o futuro do mundo se acentuou na medida que o mercado das palavras se reduziu às palavras do mercado. A noção mecânica de informação como quantidade de dados (data), vinda da engenharia de telecomunicações, desempenhou o papel de Cavalo de Tróia. Apartando-se da cultura como produção dos sentidos e da memória, essa definição da nova matéria-prima “imaterial” reverberou sobre os outros dois termos da trilogia: a cultura e a comunicação. Em razão disso a Organização Mundial do Comércio (OMC) pôde reivindicar o direito de ocupar-se da “cultura”, classificada como “serviço”, comandando uma cúpula mundial sobre a “sociedade da informação”, que se desenvolveu em duas etapas: Genebra, em 2003; e Tunis, em 2005.

A friabilidade do solo das palavras criou o terreno para a nebulosa dos neologismos amnésicos, que produzem “efeitos realísticos” por meio dos modelos de ação que patrocinam e promovem como os únicos possíveis [1]. O movimento multissecular de unificação do mundo encontra-se despojado de sua história e de sua geopolítica conflitante e reduzido a um fenômeno que data de no máximo duas décadas.

A “sociedade da informação”: uma história em três etapas

No coração dessa novilíngua, imperam as noções de “sociedade da informação” e de “sociedade global da informação”, erigidas em paradigmas dominantes da mudança social e em cauções de um mundo mais transparente. Sua história de longo prazo inicia-se nos séculos 17 e 18 com o pensamento do quantificável e do mensurável como o protótipo de todo discurso verdadeiro. Sua história mais recente inicia-se no final da Segunda Guerra Mundial e se prolonga pelas duas décadas seguintes. Sua história de curto prazo, finalmente, o espaço-tempo que os historiadores chamam de “presentismo”, opera sob o domínio da corrida atual.

Ninguém falou melhor da história de longo prazo do que o escritor argentino Jorge Luis Borges, quando se refere ao mito da construção de uma língua artificial partilhada por todos como fundamento de uma comunidade universal, de uma comunicação perfeita. É o “Congresso” imaginado por don Alejandro Glencoe em Libro de Arena. É a quimera da construção arbitrária de uma língua analítica por John Wilkins em Otras Inquisiciones. Se o inventor da cibernética, Norbert Wiener, designou, em 1948, precisamente Leibniz como santo padroeiro da nova ciência, foi não apenas porque esse inventou o sistema de numeração binário e o cálculo diferencial, mas porque, por meio de seu projeto de automatização do raciocínio, também procurou criar uma lingua characteristica, uma língua “artificial” isenta dos defeitos das línguas naturais, fonte de desentendimentos e discórdia, uma língua que fosse capaz de contribuir para a criação de uma comunidade universal.

Década de 1950: desenham-se, nos Estados Unidos, as premissas teóricas da “sociedade pós-industrial”, que, a partir dos anos 1970, seria metamorfoseada em “sociedade da informação”

A história de médio prazo deve ser lida no contexto da Guerra Fria. Desde os anos 1950, se desenham, nos Estados Unidos, as premissas teóricas da “sociedade pós-industrial”, que, a partir dos anos 1970, seria metamorfoseada em “sociedade da informação”. Coloca-se agora em campo um discurso de combate relativo à “sociedade”, orientado pelo primado da ciência e da inteligência artificial, e baseado no anúncio dos “fins”: fim da ideologia, da política, da luta de classes, da intelectualidade contestadora e, portanto, do engajamento, em prol da legitimação da figura do intelectual positivo, orientado para a tomada de decisões.

Nos anos 1960, a tese principal era que a convergência do telefone, da televisão e do computador estava em vias de transformar o mundo em uma “aldeia global”. Mas a única potência que atingiu esse estágio foi os Estados Unidos. Suas indústrias culturais e redes de informação e comunicação veiculam os valores de um novo universalismo. A sociedade global será então a extrapolação do arquétipo nascido nos Estados Unidos. O tempo das relações de força imperiais passou. A “diplomacia das canhoneiras” dará lugar a uma “diplomacia das redes”, e a atração natural exercida por um modo de vida já provado passará à frente das estratégias coercitivas [2].

Ao longo da década seguinte, nos anos 1970, o discurso sobre a sociedade de informação tornou-se performático. Legitimou a formalização de políticas públicas. O problema revelado pela primeira crise do petróleo (1973) pôs as novas tecnologias da informação a serviço das estratégias imaginadas pelos grandes países industriais para se livrarem da crise. Nos anos 1980, a desregulamentação e as privatizações desestabilizaram a idéia de política pública. Os anos 1984-1985 marcaram uma reviravolta. A onda de choque da desregulamentação das empresas de telecomunicação se propagou dos Estados Unidos para o resto do mundo, reforçada pelo regime neoliberal de Margaret Thatcher.

Década de 1990: o fim da guerra fria e a internet alimentam a ideologia da “sociedade global de informação” como promotora de uma “nova ordem mundial” e da “unificação da grande família humana”

O fim da Guerra Fria, em 1989, e a irrupção da Internet, a partir de 1994, impulsionaram a informação e suas redes para o seio das doutrinas sobre a construção da hegemonia mundial. O domínio da informação converteu-se, na linguagem geoestratégica, no princípio das “três revoluções”: nos assuntos militares, diplomáticos e comerciais. O controle das redes (“globalinformation dominance” — domínio da informação global), impôs novas maneiras de guerrear (a “guerra limpa”) e novas estratégias para a integração do conjunto das nações em torno do mercado mundial (o “soft power” — uso da persuasão para impor seus objetivos a outros países).

Em 1995, os sete países mais industrializados (G-7) ratificaram, na Cúpula de Bruxelas, a noção de “sociedade global da informação”. As “auto-estradas da informação” foram promovidas a vetores de uma “nova ordem mundial da informação”, título de um discurso de caráter messiânico pronunciado pelo então vice-presidente dos Estados Unidos, Albert Gore, sobre a unificação da “grande família humana”.

Seria preciso esperar até 2001 para que a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) inaugurasse a noção de “fratura numérica” e propusesse uma medida estatística com o propósito explícito de propiciar uma “visão mais social” das tecnologias da informação e da comunicação. Antes de sua definição administrativa, ela seria inaugurada em 2000, no G8 de Okinawa, acompanhada de um “regulamento da sociedade global da informação”.

A noção e o projeto da “sociedade da informação” tornaram-se assim uma evidência histórica, sem que os cidadãos tivessem tido oportunidade de exercer seu direito a um verdadeiro debate.

Década de 2000: a guerra global ao terrorismo desacredita a ideologia do “fim do Estado”. A obsessão pela segurança põe em evidência a face oculta das tecnologias da informação: a vigilância

O jogo começou a mudar no começo do milênio. Três acontecimentos foram reveladores. Primeiro, a constatação da emergência do “cognitariado”, termo forjado pelos artesãos da cibercultura anglo-saxã para designar o novo proletariado do “’capitalismo do conhecimento”, fonte de novas precariedades [3]. A “global war” (guerra global) contra o terrorismo desmentiu, por sua vez, a crença nas virtudes do “todo tecnológico”, a começar pelos campos de batalha. A representação de uma globalização regulada unicamente pelo recurso imaterial deu “chabu” diante da redescoberta dos fatores geopolíticos em jogo no longo prazo, ligados ao controle do abastecimento energético. O leitmotiv do fim do Estado e de seus poderes reais perdeu credibilidade. A obsessão pela segurança tirou a máscara da face oculta das tecnologias da informação e da comunicação aplicadas à gestão das sociedades: a vigilância.

Os postulados das doutrinas sobre a construção da hegemonia mundial — base de um novo universalismo — sofreu fissuras. A violência se exibiu como agente essencial na realização do projeto econômico de integração global, ou melhor, da “moldagem do mundo” (shaping the world), na língua dos estrategistas. O soft power, declinação da “diplomacia das redes”, apagou-se diante da volta das versões hard do poder e da imposição.

A “rede” é de fato administrada pela Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN), que controla o acesso a qualquer domínio virtual, genérico (.com, .org, .gov, .edu etc) ou nacional

Sob o pretexto da perseguição ao terrorismo, os Estados Unidos erigiram-se em polícia dos fluxos globais (financeiros, marítimos, aéreos e informacionais). Assim, durante a cúpula mundial da sociedade da informação de 2005, assistiu-se a uma recusa em levar em consideração a questão da reforma do “governo da Internet”. A “rede” é de fato administrada pela Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN). Dotado de um estatuto singular (sociedade de direito californiana com fins não-lucrativos), esse organismo controla o acesso a qualquer domínio virtual, genérico (.com, .org, .gov, .edu etc) ou nacional. Na verdade, ele está ligado, em última instância, ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos. A ampla aliança entre governos do Hemisfério Sul e da União Européia, movidos, cada qual, por seus próprios interesses, não abalou o fato do controle da “rede” pelos Estados Unidos, agarrados à sua doutrina da ‘‘global information dominance’’.

Tornaram-se evidentes as diferenças que separam o projeto plural de construção das “sociedades do saber”, por todos e para todos, do projeto unívoco de uma “sociedade global da informação”, que esquece as relações de força entre as culturas e as economias

Enfim, a nova configuração de agentes sociais e profissionais começou a subtrair a questão das novas jazidas da riqueza imaterial do domínio das doutrinas e estratégias hegemônicas. Tornaram-se evidentes as diferenças de fundo que dividem o projeto plural de construção das “sociedades do saber”, por todos e para todos, tanto na esfera da produção quanto da circulação, e o projeto unívoco e abstrato de uma “sociedade global da informação”, que esquece as relações de força entre as culturas e as economias. É o que confirmam as contribuições desses novos atores do espaço público nos debates da União Internacional das Telecomunicações (sobre a “sociedade da informação”) e da Unesco (sobre a proteção e promoção da diversidade cultural).

Dois princípios articulam o projeto crítico às lógicas de mercado promotoras da patrimonialização. Por um lado, a filosofia (balbuciante) dos bens públicos comuns. Esses dizem respeito não somente à educação, à informação, ao saber e à cultura mas também ao espectro das freqüências de radiodifusão, à saúde, à água, ao meio ambiente — todos esses domínios que deveriam constituir “exceções” à lei do livre comércio, “coisas” às quais as pessoas e os povos têm direito, produzidas e repartidas em condições de liberdade e eqüidade, que são a própria definição do serviço público, sejam quais forem os estatutos das empresas que garantam essa missão. Para o serviço público, os direitos humanos e ecológicos universais são a regra; as instituições internacionais legítimas, o aval; a democracia, a exigência permanente; e o movimento social, a fonte [4].

Do outro lado, está o “direito à comunicação”. Ironia da história, trata-se, aqui, da volta de um conceito lançado em 1969, por Jean d’Arcy, então diretor da divisão de rádio e serviços visuais do Serviço de Informação da ONU, no momento em que o debate sobre as liberdades no campo da informaçãotomava forma na Unesco. Em artigo publicado na revista da União Européia de Radiodifusão (UER), D’Arcy afirmava: “A Declaração Universal dos Direitos do Homem, que, há 21 anos, estabeleceu pela primeira vez, em seu artigo 19, o direito à informação, terá de reconhecer, um dia, um direito mais amplo: o direito do homem à comunicação. Pois, hoje em dia, os povos sabem, e, se são mais difíceis de governar, é talvez porque o instrumento de comunicação, informação e participação que lhes oferecemos não corresponde mais ao mundo atual e ao avanço de sua técnica” [5].

Ao longo da década seguinte, iria se desenvolver, na Unesco, a idéia da caducidade do modelo vertical de comunicação — fluxo de sentido único para a informação— e da recusa de uma comunicação da elite para as massas, do centro para a periferia, dos ricos (em matéria de comunicação) para os pobres. A partir dos anos 1980, as desregulamentações descartaram o conceito ainda embrionário. Mas, desde 2001, os quatro princípios-chave que fundamentam esse “direito à comunicação” — liberdade, diversidade, acesso e participação — estão no centro dos canteiros abertos pelo movimento social sobre a diversidade das expressões culturais e midiáticas. É a grande batalha atual.



[1] Mattelart, Armand: Histoire de la société de l’information (Paris, La Découverte, 2006) e Diversité culturelle et mondialisation (Paris, La Découverte, 2007).

[2] Brzezinski, Zbigniew: Between two ages: america’s role in the technetronic era, Nova York, Viking Press, 1969.

[3] Geert Lovink: Dark Fiber, Cambridge, MIT University Press, 2002.

[4] Conforme o site

[5] D’Arcy, Jean (1969), “Direct broacast satellites and the right to communicate”, em L. S. Harms, L.S. (ed): The right to communicate: collected papers, Honolulu, University of Hawaii Press, 1977.

Le Monde Diplomatique Brasil - Agosto 07

A grande fábrica de consensos

Numa entrevista exclusiva, o lingüista Noam Chomsky debate o papel da mídia na preservação do capitalismo, o desgaste do governo Bush e o papel do Estado numa nova sociedade

Daniel Mermet

Le Monde Diplomatique — Comecemos pela questão da mídia. Na França, em maio de 2005, por ocasião do referendo sobre o Tratado da Constituição Européia, a maioria dos meios de comunicação de massa era partidária do “sim”. No entanto, 55% dos franceses votaram “não”. O poder de manipulação da mídia não parece, portanto, absoluto. Esse voto dos cidadãos representaria um “não” também aos meios de comunicação?

Noam Chomsky — O trabalho sobre a manipulação midiática ou a fábrica do consentimento, feito por mim e Edward Herman, não aborda a questão dos efeitos das mídias sobre o público [1]. É um assunto complicado, mas as poucas pesquisas detalhadas sugerem que a influência das mídias é mais expressiva na parcela da população com maior escolaridade. A massa da opinião pública parece menos dependente do discurso dos meios de comunicação.

Tomemos como exemplo a eventualidade de uma guerra contra o Irã: 75% dos norte-americanos acham que os Estados Unidos deveriam pôr fim às ameaças militares e privilegiar a busca de um acordo pela via diplomática. Pesquisas conduzidas por institutos ocidentais mostram que a opinião pública dos Estados Unidos e a do Irã convergem também sobre certos aspectos da questão nuclear: a esmagadora maioria das populações dos dois países acha que a zona que se estende de Israel ao Irã deveria estar totalmente livre de artefatos nucleares, inclusive os que hoje estão nas mãos das tropas norte-americanas na região. Ora, para se encontrar esse tipo de opinião na mídia, é preciso procurar por muito tempo.

Quanto aos principais partidos políticos norte-americanos, nenhum defende esse ponto-de-vista. Se o Irã e os Estados Unidos fossem autênticas democracias, no seio das quais a maioria realmente determinasse as políticas públicas, o impasse atual sobre a questão nuclear estaria sem dúvida resolvido.

Há outros casos parecidos. No que se refere, por exemplo, ao orçamento federal dos Estados Unidos, a maioria dos norte-americanos deseja uma redução das despesas militares e um aumento correspondente das despesas sociais, dos créditos depositados para as Nações Unidas, da ajuda humanitária e econômica internacional. Deseja, também, a anulação da redução de impostos que beneficia os norte-americanos mais ricos, decidida por George W. Bush.

Em todos esses aspectos, a política da Casa Branca é contrária aos anseios da opinião pública. Mas as pesquisas de opinião que revelam essa persistente oposição pública raramente são publicadas pelas mídias. Resulta que não somente os cidadãos são descartados dos centros de decisão política como também são mantidos na ignorância sobre o real estado da opinião pública.

Existe uma preocupação internacional com o abissal “déficit duplo” dos Estados Unidos: o déficit comercial e o déficit orçamentário. Eles somente existem em estreita relação com um terceiro: o déficit democrático, que não cessa de aumentar, não somente nos Estados Unidos, mas em todo o mundo ocidental.

LMD — Toda vez que perguntamos a uma estrela do jornalismo ou a um apresentador de grande jornal da televisão se ele sofre pressões ou é censurado, a resposta é invariavelmente “não”. O jornalista diz que é totalmente livre, que somente expressa suas próprias convicções. Conhecemos bem os mecanismos de dominação ideológica das ditaduras. Mas como funciona o controle do pensamento em uma sociedade democrática?

Chomsky — Quando os jornalistas são questionados, eles respondem de fato: “nenhuma pressão é feita sobre mim, escrevo o que quero”. E isso é verdade. Apenas deveríamos acrescentar que, se eles assumissem posições contrárias à norma dominante, não escreveriam mais seus editoriais. Não se trata de uma regra absoluta, é claro. Eu mesmo sou publicado pela mídia norte-americana. Os Estados Unidos não são um país totalitário. Mas ninguém que não satisfaça exigências mínimas terá chance de chegar à posição de comentarista respeitável. Essa é, aliás, uma das grandes diferenças entre o sistema de propaganda de um Estado totalitário e a maneira de agir das sociedades democráticas. Com certo exagero, nos países totalitários, o Estado decide a linha a ser seguida e todos devem se conformar. As sociedades democráticas funcionam de outra forma: a linha jamais é anunciada como tal; ela é subliminar. Realizamos, de certa forma, uma “lavagem cerebral em liberdade”. Na grande mídia, mesmo os debates apaixonados se situam na esfera dos parâmetros implicitamente consentidos – o que mantém na marginalidade muitos pontos de vista contrários.

O sistema de controle das sociedades democráticas é mais eficaz; ele insinua a linha dirigente como o ar que respiramos. Não percebemos, e, por vezes, nos imaginamos no centro de um debate particularmente vigoroso. No fundo, é infinitamente mais teatral do que nos sistemas totalitários.

Tomemos, por exemplo, o caso da Alemanha dos anos 30. Temos a tendência de esquecer, mas era então o país mais avançado da Europa, na vanguarda em matéria de ciência, técnica, arte, literatura e filosofia. E, depois, em pouquíssimo tempo, houve uma grande reviravolta e a Alemanha tornou-se o mais letal, o mais bárbaro Estado da história humana.

Tudo isso foi feito espalhando-se o medo. Medo dos bolcheviques, dos judeus, dos ciganos, dos norte-americanos — em suma, de todos aqueles que, segundo os nazistas, ameaçavam o coração da civilização européia, herdeira direta da civilização grega. Era o que escrevia o filósofo Martin Heidegger em 1935. Ora, a maior parte da mídia alemã, que bombardeou a população com esse tipo de mensagem, usou as mesmas técnicas de marketing utilizadas por publicitários norte-americanos. Não esqueçamos de como uma ideologia se afirma. Para dominar, a violência não basta. É preciso uma justificativa de outra natureza. Assim, quando uma pessoa exerce poder sobre outra, seja um ditador, um colonizador, um burocrata, um patrão ou um marido, ele precisa de uma ideologia justificadora, que sempre redunda na mesma coisa: a dominação é exercida para “o bem” do dominado. Em outras palavras, o poder se apresenta sempre como altruísta, desinteressado, generoso.

Nos anos 30, as regras da propaganda nazista consistiam, por exemplo, em escolher palavras simples e repeti-las sem parar, associando-lhes emoções, como o medo. Quando Hitler invadiu os Sudetos, em 1938, o fez invocando os objetivos mais nobres e caritativos: a necessidade de uma “intervenção humanitária” para impedir a “limpeza étnica” da população de língua alemã e garantir que todos pudessem viver sob a “asa protetora” da Alemanha, com o apoio da mais avançada potência do mundo no domínio das artes e da cultura.

Em propaganda, se de alguma maneira nada mudou depois de Atenas, houve certamente aperfeiçoamentos. Os instrumentos sofisticaram-se muito, em particular e paradoxalmente nos países mais livres do mundo: o Reino Unido e os Estados Unidos. Foi lá, não em outra parte, que a moderna indústria das relações públicas, isto é, a fábrica da opinião ou a propaganda, nasceu nos anos 20.

Esses dois países haviam de fato progredido em matéria de direitos democráticos: com o voto feminino, a liberdade de expressão etc. A tal ponto que o desejo de liberdade não podia mais ser contido somente pela violência estatal. Convertemo-nos, assim, às tecnologias da “fábrica do consentimento” [2]. A indústria das relações públicas produz, no sentido próprio dos termos, consentimento, aceitação, submissão. Ela controla as idéias, os pensamentos, os espíritos. Em relação ao totalitarismo, foi um grande progresso: é muito mais agradável sofrer o efeito de uma publicidade que se ver em uma sala de tortura. Nos Estados Unidos, a liberdade de expressão é protegida em um grau sem paralelo em qualquer outro país do mundo. Isso é muito recente. Desde os anos 60, a Suprema Corte deu grande proteção e garantia à liberdade de expressão, o que traduz, na minha opinião, um princípio fundamental estabelecido desde o século 18 pelo Iluminismo. A Suprema Corte afirma que a palavra é livre com a única ressalva de não participar de ato criminoso. Se, por exemplo, entro em uma loja para roubar, um de meus cúmplices tem uma arma, e eu digo “atire!”, isso não será protegido pela Constituição. Quanto ao resto, o motivo deve ser particularmente grave para que a liberdade de expressão seja posta em xeque. A Suprema Corte já reafirmou tal princípio até mesmo em favor dos membros do Ku Klux Klan. Na França, no Reino Unido e, me parece, no resto da Europa, a liberdade de expressão é definida de maneira muito mais restritiva.

A meus olhos, a questão essencial é: o Estado tem o direito de definir qual é a verdade histórica e punir quem dela se afasta? O pensamento começa a se acomodar a uma prática propriamente stalinista. Os intelectuais franceses têm dificuldades em admitir que é essa a sua inclinação. No entanto, a recusa de tal abordagem não deveria comportar exceção. O Estado não deveria possuir nenhum meio de punir quem quer que pretenda que o Sol gire em torno da Terra. O princípio da liberdade de expressão tem algo de muito elementar: ou o defendemos no caso de opiniões que detestamos, ou renunciamos por completo à sua defesa. Mesmo Hitler e Stalin admitiam a liberdade de expressão daqueles que defendiam seus pontos de vista 3.

Acrescento que há algo de perturbador e mesmo de escandaloso em debater essas questões dois séculos após Voltaire, que, como sabemos, declarava: “Odeio as suas opiniões, mas daria a minha vida para que você pudesse expressá-las”. Seria prestar um triste desserviço às vítimas do holocausto adotar uma das políticas fundamentais de seus carrascos.

LMD — Em um de seu livros, você comenta a frase de Milton Friedman “ter lucro é a própria essência da democracia”...

Chomsky — A bem dizer, as duas coisas são de tal forma contrárias que não há sequer comentário possível. A finalidade da democracia é que as pessoas possam decidir suas próprias vidas e fazer as escolhas políticas que lhes concernem. A realização de lucros é uma patologia de nossas sociedades, associada a estruturas particulares. Em uma sociedade decente, ética, a preocupação com o lucro seria marginal. Tome como exemplo meu departamento universitário, no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Lá, alguns cientistas trabalham duro para ganhar muito dinheiro. Mas são considerados um pouco marginais, um pouco perturbados, quase casos patológicos. O espírito que anima a comunidade acadêmica é, antes, o da descoberta, a um só tempo por interesse pessoal e para o bem de todos.

LMD — Em texto que lhe é dedicado, Jean Ziegler escreve: “ existem três totalitarismos: o totalitarismo stalinista, o totalitarismo nazista, e, agora, o ‘tina’ [3].” Você compararia esses três totalitarismos?

Chomsky — Eu não os colocaria no mesmo plano. Combater o “tina” é afrontar uma construção intelectual que não pode ser comparada aos campos de concentração ou ao gulag. Além disso, a política norte-americana suscita oposição em escala planetária. Na América Latina, a Argentina e a Venezuela expulsaram o FMI. E os Estados Unidos não puderam recorrer ao que seria a norma há vinte ou trinta anos: o golpe militar. O programa econômico neoliberal que foi imposto à América Latina durante os anos 80 e 90 é hoje rejeitado no continente. Vemos essa mesma oposição à globalização econômica por toda parte.

O movimento global pela justiça, sempre sob o foco da mídia na época de cada reunião do Fórum Social Mundial, trabalha na realidade durante todo o ano. É um fenômeno muito recente na história, que marca talvez o início de uma verdadeira Internacional. Seu principal cavalo de batalha é a existência de uma alternativa. Aliás, que melhor exemplo de uma globalização diferente do que o próprio Fórum Social Mundial? As mídias hostis chamam aqueles que se opõem à globalização neoliberal de “os antiglobalização”, quando, na verdade, eles lutam por uma outra globalização, a globalização dos povos.

Podemos observar o contraste entre uns e outros, porque, no mesmo momento, ocorre o Fórum Econômico Mundial, que trabalha para a integração econômica planetária, mas somente em prol dos interesses das altas financeiras, dos bancos e dos fundos de pensão – potências que controlam, também, as mídias. É a concepção deles de integração global: uma integração a serviço dos investidores. As mídias dominantes entendem que somente tal integração global merece o título oficial de globalização. Eis um belo exemplo de funcionamento da propaganda ideológica nas sociedades democráticas. Essa propaganda é eficaz a tal ponto que mesmo os participantes do Fórum Social aceitam, às vezes, a qualificação pejorativa de “antimundialistas”. Em Porto Alegre, compareci ao Fórum e participei da conferência mundial dos camponeses. Eles representam, sozinhos, a maior parte da população do planeta...

LMD — Você é classificado na categoria dos anarquistas ou dos socialistas libertários. Na democracia, tal como você a concebe, qual seria o lugar do Estado?

Chomsky — Vivemos neste mundo, não em um universo imaginário. Então, neste mundo, existem instituições tirânicas, que são as grandes empresas. É o que há de mais próximo das instituições totalitárias. Elas não têm, por assim dizer, que prestar qualquer esclarecimento ao público ou à sociedade. Agem como predadoras, tendo como presas as outras empresas. Para se defender, as populações dispõem apenas de um instrumento: o Estado. Mas ele não é um escudo muito eficaz, pois, em geral, está estreitamente ligado aos predadores. Há, no entanto, uma diferença que não se pode negligenciar: enquanto, por exemplo, a General Electric não deve satisfações a ninguém, o Estado deve regularmente se explicar à população.

Quando a democracia tiver se alargado ao ponto em que os cidadãos controlem os meios de produção e de troca e participem no funcionamento e na direção do conjunto em que vivem, então o Estado poderá, pouco a pouco, desaparecer. Ele será substituído por associações voluntárias sediadas nos locais de trabalho e de moradia.

LMD — Seria uma nova forma de sovietes? Qual a diferença em relação aos sovietes da Rússia revolucionária?

Seriam sovietes, sim. Mas lembremos que, na Rússia, a primeira coisa que Lênin e Trotski destruíram, logo após a Revolução de Outubro, foram os sovietes: os conselhos de operários e todas as instituições democráticas. Lênin e Trotski foram, nesse sentido, os piores inimigos do socialismo no século 20. Porque, marxistas ortodoxos, eles consideravam que uma sociedade atrasada como a da Rússia de sua época não poderia passar diretamente ao socialismo sem ser precipitada à força na industrialização.

Em 1989, no momento do desmoronamento do regime comunista, eu pensei que esse desmoronamento, paradoxalmente, representava uma vitória para o socialismo. Pois o socialismo, tal como o concebo, implica, no mínimo, eu repito, o controle democrático da produção, das trocas e de outras dimensões da existência humana.

No entanto, os dois principais sistemas de propaganda conspiraram para afirmar que o sistema tirânico implantado por Lênin e Trotski e depois transformado em monstruosidade por Stalin era o “socialismo”. Os dirigentes ocidentais não fizeram mais do que se deleitar com esse uso absurdo e escandaloso do termo, que lhes permitiu difamar o socialismo autêntico durante décadas.

Com igual entusiasmo, mas em sentido contrário, o sistema de propaganda soviético tentou explorar a seu proveito a simpatia e o engajamento que os ideais socialistas autênticos inspiravam nas massas de trabalhadores.

LMD — Não é verdade que, segundo os princípios anarquistas, todas as formas de auto-organização acabaram por desmoronar?

Chomsky — Não há “princípios anarquistas” fixos, uma espécie de catecismo libertário ao qual se deva prestar juramento. O anarquismo, ao menos como o vejo, é um movimento do pensamento e da ação que busca identificar as estruturas de autoridade e dominação, exigindo que elas se justifiquem, e, se elas se mostram incapazes, como acontece freqüentemente, tenta superá-las.

Longe de ter “desmoronado”, o anarquismo, o pensamento libertário, vai muito bem. Ele é a fonte de muitos progressos reais. Formas de opressão e injustiça que mal eram reconhecidas, e muito menos combatidas, não são hoje mais admitidas. É uma conquista, um avanço para o conjunto dos seres humanos, não uma derrota.

[1] Herman, Edward e Chomsky, Noam: Manufacturing consent, Nova York, Pantheon, 2002.

[2] Expressão do ensaísta norte-americano Walter Lippman, que, a partir dos anos 1920, pondo em dúvida a capacidade do homem comum se determinar com sabedoria, propôs que as elites cultas “lapidassem” a informação antes que ela atingisse a massa.

[3] Tina: palavra formada com as iniciais da expressão inglesa “there is no alternative” (não há alternativa), utilizada por Margaret Thatcher para proclamar o caráter inelutável do capitalismo neoliberal.

Instituto Humanitas Unisinos - 25/09/07

Maquiavel: o “Old Nick” anda solto! Artigo de Dejalma Cremonese

Recebemos e publicamos o seguinte artigo do Dr. Dejalma Cremonese, cientista político.

Eis o artigo.

"O renascentista Nicolau Maquiavel (1469-1527) ganhou notoriedade na História e nas Ciências Sociais por ter escrito a obra O príncipe (O principal) (1513-1514). Considerado um dos primeiros cientistas políticos da modernidade, tratou a política de maneira diferenciada dos teóricos anteriores. Enquanto que Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Dante, ou mesmo os seus contemporâneos, Erasmo de Rotterdam e Thomas More imaginavam e idealizavam a política e, conjeturavam sobre como ela deveria ser (ou como gostariam que fosse), Maquiavel, seguidor de Tácito, Políbio, Tucídides e Tito Lívio, examinou a política com objetividade, tal qual ela é. A essência de sua obra pode, então, ser resumida na questão do poder: como conquistar, aumentar e, principalmente, recomendou estratégias para manter o poder político, pois, “conquistar o poder é fácil, difícil é mantê-lo”.

A história política pode ser dividida em duas partes, antes e depois de Maquiavel. Até então, a política estava ligada aos valores religiosos, teocentrismo (Deus era o centro), e a política propriamente dita seguia em segunda ordem e, por último, o indivíduo. Depois de Maquiavel, a ordem se inverte, a política torna-se o valor mais importante, juntamente com a valorização do indivíduo. Maquiavel não tratou de questões e valores espirituais. Talvez por esta razão o seu Príncipe tenha sido indexado, em 1559, pela Igreja Católica, na lista de obras proibidas (Índex). É do sentido pejorativo dado pela Igreja à obra de Maquiavel que surgiu o adjetivo maquiavélico, conhecido até nossos dias como aquele que tem um procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro. Em inglês, a frase “Old Nick” significa, literalmente, uma abreviação de “Velho Nicolau”, termo com o qual, na Inglaterra, desde a época elizabetana, a literatura passou a designar Maquiavel: como o próprio “Velho Diabo”.

O objetivo de Maquiavel era a unificação da Itália. Para isso, precisava de uma liderança política (príncipe) destemida, engenhosa, habilidosa e forte (virtu) mesmo que, para alcançar este fim, fosse necessário empregar certos meios pouco lícitos (pois os fins justificam os meios). O príncipe (liderança política) situa-se para além do bem e do mal. Em nome do poder, tudo se justifica: cupidez, rapacidade (avidez de lucro), fraude, dolo, roubo, libertinagem, deboche, velhacaria, perfídia, traição, dissimulação. Tudo é permitido desde que se alcance o resultado desejado; por isso, todos os meios são considerados honestos.

Neste sentido, acredita-se que os “ensinamentos” de Maquiavel e seu Príncipe foram assimilados e postos em prática por uma boa parte das nossas lideranças políticas atuais. Muitos o têm como livro de “cabeceira”, um manual de sobrevivência na política. Infelizmente trocou-se a ética pelo ardil, a astúcia e o cinismo. O mau exemplo do Senado brasileiro absolvendo o presidente da Casa, Renan Calheiros, acusado de diversas irregularidades (tráfico de influência, enriquecimento ilícito, favorecimento a empresas) e, o esforço empreendido pelo partido do governo para salvá-lo, leva-nos a crer, infelizmente, que as práticas do “velho diabo” têm encontrado guarida no coração e mentes de muitos... Sim, ele anda solto pelas bandas do “planalto” até as mais recônditas “planícies”, estamos bem arrumados..."

Instituto Humanitas Unisinos - 25/09/07

A guerra terceirizada. Quem responde pelos excessos?


A acusação lançada pelo Governo iraquiano contra a empresa Blackwater de ter executado seis cidadão inocentes, chamou a atenção para a privatização dos serviços de apoio à guerra. A reportagem é do jornal português O Público, 24-07-2007.

No Iraque estão mais de 160.000 funcionários de empresas privadas que fazem da guerra o seu trabalho. São em número possivelmente maior do que os soldados norte-americanos. E a quem presta contas estes civis que fazem a guerra outsourcing? Atuam na verdade num vazio legal, que lhes garante a impunidade - mesmo quando acusados de atos que os levariam um militar a um tribunal como acontece com os comandos da Blackwater, que nesta semana freqüentaram as manchetes.

A maioria desses 160.000 trabalhadores das 177 empresas presentes no Iraque exercem funções de apoio ao exército (limpeza e refeições, por exemplo), ou de reconstrução de infra-estrutura (a Bechtel, à qual esteve ligado o vice-Presidente Dick Cheney, tem contratos para refazer esgotos e sistemas elétricos, por exemplo).

A imprensa americana afirma que entre 20.000 e 50.000 desses trabalhadores - os números são incertos, porque Washington os mantém em segredo - é que serão especialistas em segurança, como a Blackwater, que trabalha para o Departamento de Estado.

A Blackwater tem cerca de 1000 comandos no Iraque, que garantem a segurança do pessoal diplomático dos EUA. E foi no cumprimento dessa missão que o Governo iraquiano os acusa de terem morto 11 civis na semana passada - incluindo uma mulher e o bebê que levava no colo.

O relatório do inquérito sobre o incidente feito pelo Ministério do Interior iraquiano está pronto, e o Governo de Nuri al-Maliki gostaria de submeter os suspeitos à justiça iraquiana. Mas isso é pouco provável, reconheceu um porta-voz do Executivo à Reuters, porque isso criaria "um vazio de segurança" em Bagdad.

Falta ainda o relatório da investigação que o Departamento de Estado está fazendo sobre o incidente, e também o de uma comissão conjunta, de iraquianos e americanos. Com tanto relatório, apurar-se-á a verdade? "Investigações separadas é um primeiro passo na direção errada", afirma o editorial do jornal Los Angeles Times. "Se as investigações produzirem dois cenários, a justiça dará lugar à política, deixando muitas dúvidas na opinião pública iraquiana e norte-americana”.

Até porque a justiça, no quadro atual, seria difícil. Continua em vigor a Ordem 17, herdada do tempo em que o Iraque era um território ocupado, sob administração norte-americana, pelo embaixador Paul Bremer. Garante imunidade aos trabalhadores das empresas contratadas em outsourcing por atos cometidos no Iraque. Não estão submetidos à justiça militar, como o exército. O Parlamento iraquiano poderia revogar esta lei, mas não o fez até agora.

A posição do Governo iraquiano por causa da Blackwater está sendo interpretada pelos analistas como uma tentativa de mostrar aos cidadãos quem manda de fato no país. E a Blackwater é uma empresa de segurança particularmente detestada - até pelas outras firmas, que a acusam de arrogância.

Não é a primeira vez que a Blackwater se vê em apuros no Iraque. No Natal passado, um comando da empresa matou um segurança do vice-Presidente Adel Abdul Mahdi. Foi mandado de volta aos EUA, sem que se saiba que tenha sido julgado. E eram da Blackwater os quatro homens mortos e exibidos numa ponte em Falluja, em 2004, um evento brutal que marcou a viragem para a guerra sangrenta de emboscada.

As ações dos comandos da Blackwater indispõem os iraquianos contra a presença americana e acabam por criar problemas ao exército dos EUA. Há iniciativas legislativas no Congresso para que estas forças sejam submetidas à justiça militar, mas, até agora, não avançaram. Será desta que a guerra privatizada entrará numa nova fase, para "conquistar os corações e os espíritos dos iraquianos"?

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Instituto Humanitas Unisinos - 25/09/07

Fiscalização do trabalho escravo é suspensa


A Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego suspendeu por tempo indeterminado as ações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, criado em 1995 para combater o trabalho escravo no país. A decisão foi comunicada ao ministro Carlos Lupi por meio de memorando encaminhado pela secretária Ruth Vilela, responsável pelas ações e sob o argumento de que haveria “interferências políticas”. A notícia é do sítio Agência Brasil, 24-09-2007.

No documento, Vilela explica que a decisão foi tomada após "recente desqualificação" feita pela Comissão Temporária Externa do Senado sobre a existência de trabalho escravo apurada pelo ministério em uma fazenda da empresa Pará Pastoril Agrícola (Pagrisa), situada no município de Ulianópolis, no Pará. No texto, a secretária também menciona "a insegurança que se projetou sobre as ações desenvolvidas pelo ministério" com o objetivo de erradicar o trabalho escravo no Brasil.

Durante a fiscalização na fazenda da Pagrisa, realizada no início de julho, foram encontrados 1.108 trabalhadores em situação análoga à escravidão no local. A comissão externa a que se refere a secretária foi instalada em 4 de setembro, por requerimento do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), para investigar as denúncias de trabalho escravo contra a empresa. Na última quinta-feira (21) uma comitiva de senadores esteve na fazenda, chefiados pelo presidente da comissão, Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE), e pela relatora, Kátia Abreu (DEM-TO).

No documento encaminhado ao ministro, Vilela critica a interferência dos senadores. Segundo ela, a suspensão das ações do grupo móvel se justifica pela necessidade de assegurar aos auditores-fiscais do trabalho um mínimo de segurança e condições de trabalho para o correto exercício de suas atribuições, "livres da ingerência de fatores estranhos à ação administrativa".

À época da ação, a BR Distribuidora, empresa subsidiária da Petrobras, anunciou a suspensão da compra de álcool combustível da empresa Pagrisa, do grupo Pará Pastoril Agrícola S. A. A assessoria de Jarbas Vasconcelos destaca, por meio de nota, que a visita à fazenda da Pagrisa teve o objetivo de averiguar denúncias "de que excessos foram cometidos na operação fiscalizadora". Mas ressalta que, "de maneira alguma", o trabalho da comissão reduz a importância da atuação do grupo móvel, "essencial para coibir e reprimir abusos contra as normas da Organização Internacional do Trabalho.

Na nota, a assessoria afirma que cabe à comissão analisar todos os fatos com isenção e se posicionar apenas ao final das averiguações, "confirmando ou não eventuais excessos".

Instituto Humanitas Unisinos - 24/09/07

Pobreza cairá menos, dizem especialistas

Os brasileiros estão menos pobres, mas a redução da desigualdade está sob risco. A reportagem é de Pedro Soares e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 23-09-2007.

Dois dos mais dedicados pesquisadores sobre a miséria e a indigência nacionais fazem dois alertas. "Não sei se o crescimento sustentável da economia vai esbarrar na oferta de mão-de-obra qualificada. Acho que isso vai fazer a desigualdade voltar a subir. Neste ano, a desigualdade já está caindo menos. Estou assustada com o déficit de formação e de qualificação dos jovens. E o mercado de trabalho exclui quem tem menos de oito anos de estudo", afirma Sônia Rocha, economista do Iets (Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade), formada pela PUC-RJ com mestrado pela Bucknell University (EUA) e doutorado pela Universidade de Paris 1.

"O Brasil nunca teve coragem de assumir uma linha oficial de pobreza. Os EUA fizeram isso em 1963. A Índia fez. A Irlanda fez. E o Brasil, nunca", analisa Marcelo Neri, professor da Escola de Pós-Graduação em Economia e diretor do Centro de Políticas Sociais do Instituto Brasileiro de Economia, ambos ligados à Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ).

Quantos pobres existem no país? São 49 milhões? Ou 36,2 milhões? O número muda de acordo com o conceito usado para definir quem é pobre, miserável ou indigente.

Segundo os dados de Rocha, em 2006 a pobreza atingia 26,9% da população brasileira, o mais baixo índice desde 1987.

Em 2005, a proporção de pobres ficou em 30,5%. Em 1995, primeiro ano completo do Real, chegava a 33,2%.

Em números absolutos, houve queda de 10,6% no contingente de pobres no país - de 54,884 milhões de pessoas em 2005 para 49,043 milhões em 2006. Ou seja, em um ano 5,841 milhões de brasileiros se afastaram da linha da pobreza.

Neri divulgou que de 2005 para 2006 o total de miseráveis no país caiu em 5,880 milhões de pessoas. Em 2005, eram 22,8%. Neri calcula que 36,154 milhões vivam em condições miseráveis no país.

Metodologias distintas explicam as diferenças, especialmente os valores atribuídos às linhas de pobreza.

METODOLOGIA

SÔNIA ROCHA - Metodologicamente são coisas muito parecidas. Têm a mesma origem. A idéia de usar as linhas de pobreza como parâmetro é o mesmo procedimento. Trabalho com linhas para áreas rurais, urbanas e metropolitanas. Trabalho com uma linha de pobreza que considera todos os consumos, e outra de indigência, que é um patamar mais baixo, que corresponderia ao custo de comer de uma cesta alimentar.

MARCELO NERI - Em primeiro lugar, nossa linha tem base na POF [Pesquisa de Orçamentos Familiares] de 1996. A linha de pobreza transforma em unidades monetárias as necessidades, sejam elas calóricas ou alimentares. Corresponde a R$ 125 a preços de São Paulo e a R$ 118 na média do Brasil [é mais baixa do que a de Rocha, R$ 266 para São Paulo] e foi feita com base em necessidades alimentares. Trabalhamos também com a linha de US$ 1 per capita, da ONU, para medir extrema pobreza. Nossa linha de indigência [R$ 125] é considerada alta [por isso, contabiliza menos miseráveis]. Não existe um valor absoluto correto. É uma questão de opção metodológica.

POBREZA

ROCHA - Seja usando a minha metodologia ou a do Neri, a pobreza caiu em 2006. A queda foi muito robusta. Acho que não foi definida uma linha porque isso politicamente é perigoso. Quem está no poder se sente pouco à vontade em ter um parâmetro inequívoco. É muito mais fácil lidar e usar as divergências a seu favor. Assim, a gente sabe para onde se está andando. Deve haver uma linha oficial sim, que permita estabelecer metas de redução de pobreza e de indigência.

NERI - Defendo há muitos anos que é necessário eleger uma linha oficial de pobreza. O Brasil nunca teve coragem de assumir isso. Os EUA fizeram isso em 1963. A Índia fez. A Irlanda fez. E o Brasil, nunca. É uma questão básica. Isso gera uma convergência no debate [sobre pobreza] muito grande. Mas qualquer linha que se escolha a pobreza caiu. E a queda foi bastante robusta.

MÍNIMO/PREVIDÊNCIA

ROCHA - Na sua origem, o salário mínimo era diferenciado [por região]. E foi uma confusão. Nos anos 80, foi unificado. Foi muito bom porque eliminou um estímulo muito grande à migração. O mínimo é aceito ou não, dependendo das condições locais do mercado de trabalho -quando ele é alto, não é aceito, e a informalidade aumenta. Nos últimos anos, ele foi aceito, o que mostra que estava defasado. Acho que o aumento do mínimo desde a segunda metade da década de 90 (mais de 100%) foi aceito. A informalidade não cresceu e ajudou a reduzir a pobreza. Sou contra a vinculação do mínimo à Previdência até porque é um tiro no pé. Quem ganha um salário mínimo não vai contribuir com 10% ou 20% [para o INSS], se for autônomo, sabendo que terá direito a um mínimo [na aposentadoria por idade]. É um desestímulo [à contribuição].

NERI - Defendo a criação de pisos regionais de salário, como o [governador José] Serra está fazendo em São Paulo. Não defendo o mínimo unificado. Os Estados devem fixar seu salário. O mínimo não é mais um instrumento de redução de desigualdade. O efeito do mínimo sobre a pobreza em áreas metropolitanas foi embora, não existe mais. A grande redução da pobreza e da desigualdade foi em 2004. O mínimo é a base de renda da Previdência e consome 12% do PIB. Sou contra o mínimo [atrelado aos benefícios] porque a gente já optou nos anos 90 pelos idosos em detrimento das crianças. Temos de dar tratamento igual ao idoso e à criança.

BOLSA FAMÍLIA

ROCHA - Não sei se o crescimento sustentável da economia vai esbarrar na oferta de mão-de-obra qualificada [ou seja, pressionar o mercado e fazer subir os salários mais altos]. Acho que isso vai fazer a desigualdade voltar a subir. Neste ano, a desigualdade já está caindo menos. Estou assustada com o déficit de formação e de qualificação dos jovens. E o mercado de trabalho exclui quem tem menos de oito anos de estudo.

NERI - O Brasil não consegue mudar a política social. São adicionadas só coisas novas, não mudam as coisas velhas que não funcionam mais. Já que não há dinheiro para fazer tudo, temos de fazer escolhas. Nos últimos anos o Brasil tem feito opções corretas, porque instituiu um novo regime de políticas sociais. A desigualdade está caindo também por conta dos programas sociais.

LULA X FHC

ROCHA - Fiquei alarmada. Não dava para [o Lula] errar daquele tamanho [no lançamento do Fome Zero]. Depois, o Bolsa Família deu certo e se mostrou bem focalizado. Outro ponto foi o Primeiro Emprego. Todos apontamos os erros. Já o FHC, que sempre conviveu com um cenário mais adverso, fez bons programas na área de saúde.

NERI - O Lula, talvez por ter dado continuidade à política econômica do FHC, quis reinventar a roda na área social. Por isso, lançou o Fome Zero, que não deu certo. Depois de nove meses, fez o Bolsa Família, do qual sou entusiasta. O Lula é o pai dos programas sociais mais modernos. O FHC é o avô. O Lula foi mais ousado. Já o FHC, até pelas crises que enfrentou, agia com mais cautela.