"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

terça-feira, junho 05, 2007

Le Monde Diplomatique Brasil - 16/01/07

A Índia em busca do poderio perdido

Como o segundo país mais populoso do planeta age para se transformar em potência mundial. O complicado xadrez das relações com EUA, China e Rússia. O drama: nos planos de poder, eliminar a pobreza e exclusão maciças não é prioridade

Martine Bulard

Inclinando suavemente a cabeça, como os indianos fazem enquanto falam, Amit Raynah, estudante de uma das mais prestigiosas universidades do país, a Universidade Jawaharlal Nehru (UJN), em Nova Délhi, é categórico: "Um elefante corre bem depressa". Dentre os estudantes reunidos em volta dele, nenhum contesta esta afirmação. Todos estão certos de que a Índia, em um prazo mais ou menos curto, vai voltar ao seu lugar no comércio mundial. A ponto de ultrapassar o dragão chinês? Sobre essa questão, os jovens estão mais divididos. Porém os sonhos de poder estão em todas as cabeças.

Houve um tempo, é verdade, em que a civilização hindu brilhava em toda a Ásia. Um tempo em que a Índia, quase em pé de igualdade com a China, ocupava o primeiro lugar mundial, respondendo por 22,6% da renda do planeta [1]. Era 1700. Um século mais tarde, em 1820, sua participação já se reduzia a 15,7%, duas vezes menos que sua poderosa vizinha — que acabou por segui-la na queda, a ponto de, em 1980, a Índia (com 3,4% da renda mundial) e a China (com 5%), ficarem marginalizadas. Desde então, esta última provou que um país pode dar de novo a partida. E Nova Délhi, que ficou para trás, quer recuperar o atraso o mais depressa possível.

Para alcançar este objetivo, a Índia decidiu tomar o trem norte-americano, mais por pragmatismo, que por ideologia [2]. No seu escritório de Nova Délhi, mobiliado à moda soviética dos anos 1960, Navtej Singh Sarna, porta-voz do ministério de Assuntos Exteriores, confirma isso com palavras estudadas: "Os Estados Unidos são a superpotência dominante, é lógico que estejamos inclinados a manter boas relações com eles". De certa forma, é uma simples normalização, depois de décadas de um não-alinhamento mal aceito por Washington e de uma vida diplomática sonolenta à sombra da URSS. Confirmando esta tese, o aumento do intercâmbio comercial indo-norte-americano, foi de 11% em 2005-2006, enquanto que o comércio com a Rússia, sua ex-parceira principal, marca passo.

Na verdade, a Índia quer muito mais. Fascinada pela rapidez com que avança sua irmã-inimiga chinesa, de economia aberta [3], não esconde sua vontade de utilizar essas novas amizades para obter vantagens sonantes e frementes e atrair os capitais que lhe faltam. O montante dos investimentos estrangeiros diretos (IED) recebidos pela China chegou a cerca de 72,4 bilhões de dólares no ano passado; a Índia recebeu apenas 6,6 bilhões. Esse volume é certamente subestimado, pois os movimentos de capitais não são todos registrados. E Nova Délhi ressalta o fato de que acolhe 40% dos IED nas tecnologias da informação destinadas aos países em desenvolvimento, enquanto a China só recebe 11%. Nem por isso a diferença é menos abissal.

Em busca de capitais, o governo de Manmohan Singh multiplica vantagens de todo o tipo, copiando as receitas chinesas (zonas econômincas especiais quase sem impostos, suspensão de proteções administrativas, redução de impostos alfandegários...). Com resultados. Além dos investimentos nos serviços de informática e na indústria automobilística (a Renault anunciou, em novembro de 2006, a criação de uma montadora), as grandes redes de distribuição (Wal-Mart, Tesco, Carrefour) trombetearam sua chegada. Azar se estes hipermercados, hoje ausentes, trazem o risco de matar o comércio local e modificar a paisagem, ainda a salvo da urbanização uniformizada ocidental. A "modernização" está em curso com os Estados Unidos à frente dos investidores, seguidos pelas Ilhas Maurício (paraíso fiscal), Grã-Bretanha, Japão e Coréia do Sul.

Armas nucleares, parte do projeto de potência mundial

Porém, mais ainda que ambições econômicas, são as preocupações políticas que animam as autoridades: a Índia quer ser reconhecida como uma superpotência asiática e mundial. Donde a importância do acordo nuclear com os Estados Unidos. Ratificado pelos democratas e republicanos no Congresso norte-americano, no fim de 2006, será efetivado no começo do ano, prontinho para a segunda visita de George W. Bush a Nova Délhi, em março de 2007. O embargo que atingia a Índia desde seus testes nucleares autônomos de 1998 foi suspenso, embora o país ainda não tenha assinado o Tratado de Não-Proliferação de nuclear (TNP) e recuse – em nome de sua independência – inspeções internacionais em mais de um terço de suas instalações (exigências impostas pelos Estados Unidos e os países ocidentais ao Paquistão, Coréia do Norte e Irã).

A Índia poderá agora importar materiais especiais para produzir energia nuclear, num momento em que suas necessidades energéticas estão explodindo. Mas isso não é o essencial, como explica um dos dipllomatas indianos mais em evidência, Shashi Tharoor, secretário-geral adjunto da ONU (e candidato derrotado à sucessão de Kofi Annan): "Mais importante que o abastecimento energético, o que conta nesse acordo é o reconhecimento total da Índia como potência nuclear. Os Estados Unidos e as potências nucleares reconhecem a exceção indiana." Porque está claro que "a Índia não é um país como os outros", segundo uma fórmula hoje muito recorrente.

Em 1947, esta singularidade fazia da Índia uma "potência moral", que brilhava entre os países do "Terceiro Mundo" em processo de descolonização e investia na política de não-alinhamento. Hoje, Nova Délhi assume ares de "potência militar" amparada pelos americanos. Alguns indianos concluíram, com essa reviravolta, que o país corria o risco de cair na "armadilha do alinhamento", o que lhes valeu uma resposta enérgica do primeiro-ministro Manmohan Singh. Ele lamentou "a falta de avaliação justa do que é preciso alterar em nossas relações como o mundo" – especialmente, por parte dos dirigentes políticos [indianos]: "Muitas vezes adotamos uma postura política baseada no passado".

Se o acordo nuclear com Washington deixa à Índia a possibilidade de "desenvolver seus próprios programas de produção de material físsil", como aliás lamentam alguns senadores norte-americanos [4], não deixa de exigir contrapartidas políticas. O governo Bush já fez saber que se oporia ao projeto do gasoduto com o Irã, que garantiria uma parte não desprezível das necessidades energéticas nacionais e teria um alcance diplomático importante, levando a Índia a negociar com seu inimigo principal, o Paquistão, por onde a obra também passaria. "Seria um forte atrativo para a manutenção da estabilbidade entre a Índia e o Paquistão" [5], nota Edward Luce, ex-colaborador da equipe de Bill Clinton, hoje em dia comentarista do Financial Times. Por hora, Singh usa, para manter-ser vago, o pretexto de exigências de preço excessivamente elevadas, por parte do Irã. É difícil que consiga sustentar esta posição por muito tempo.

O complicado xadrez das relações com a China

Mas a Índia deve ainda compor-se com sua poderosa vizinha, a China. Irão estes dois gigantes que emergem construir um entendimento regional para pesar no comércio asiático e planetário? Ou guerrearão pelo primeiro lugar na Ásia? Esta última hipótese parece mais plausível. Mas o jogo ainda não foi feito. De fato, a partida não se joga a dois, mas a três (com os Estados Unidos) ou mesmo quatro (com o Japão).

Se os norte-americanos resolveram correr o risco de amenizar as regras do Tratado de Não-Proliferação nuclear, é para impulsionar a Índia como contrapeso à China, cuja ascensão econômica, militar e também diplomática ameaça a hegemonia de Washington na região. A ponto de alguns de seus sustentáculos tradicionais parecerem mais frágeis — como a Coréia do Sul, que se recusou-se a entrar em choque com a Coréia do Norte. Por ora, o governo Bush encontra um ouvido atento do lado indiano, que desconfia da vizinha.

Entretanto, o primeiro-ministro chinês Wen Jiabao argumentava, com um formidável sentido da história, em visita a Nova Délhi em abril de 2005: "Durante os últimos 2200 anos – ou, digamos, durante 99,9% desse tempo – estabelecemos cooperações de amizade entre nossos dois países" [6]. Este 0,1% da contabilidade chinesa tem como nome... a guerra de 1962 [7], que continua viva na mente dos indianos. A derrota, inesperada, anunciou o fim da era Nehru, e hoje permanece com uma ferida.

Contudo, como no início das relações sino-indianas, que segundo o economista Amartya Sen, começaram "com o comércio – e não com o budismo" [8] foi pela economia e o intercâmbio comercial que os dois países reataram laços. Pouco significativo até 2000 (3 bilhões de dólares), o comércio chegou a 22 bilhões de dólares em 2006. A China, que vende mais do que compra, e quer aproveitar as sinergias entre as duas economias para superar mais rapidamente seu atraso tecnológico, milita pela assinatura de um acordo de livre-comércio, constantemente rechaçado. Com um produto interno bruto (PIB) três vezes menor, a Índia teme que os produtos chineses cheguem com toda a força. E procura acima de tudo consolidar sua indústria, envelhecida e relativamente débil: está consciente de que a especialização em televendas, serviços terceirizados para as empresas anglo-saxônicas do mundo inteiro ou informática não bastam para sustentar o desenvolvimento nacional. Nem por isso deixou de assinar treze acordos de cooperação (em finanças, agricultura, informática, energia...), durante a viagem do presidente chinês Hu Jintao, de 20 a 23 de novembro de 2006.

Na pauta com Pequim, energia e forças armadas

A distensão ensaiada poderia também desenvolver-se no campo da energia, onde a demanda está explodindo. Por ora, a concorrência para apoderar-se do abastecimento domina amplamente, e Pequim está muito à frente, principalmente na África. Ocorre que no fim de 2005, a China National Petroleum Corporation (CNPC) e a Oil and Natural Gas Corporation (ONGC) indiana entraram em acordo para investir na exploração de reservas de petróleo sírias. No mesmo ano, os ministros do petróleo dos dois países quiseram criar uma espécie de cartel de compradores para influenciar nos preços – uma tentativa, que nunca se concretizou, pois o ministro indiano Mani Shakar Aiyer foi derrubado nesse meio tempo. Entretanto, o comunicado comum que marcou a última visita de Hu Jintao esclarece que é preciso "encorajar a colaboração entre as empresas dos dois países, o que inclui a prospecção e a exploração em comum de recursos energéticos de um terceiro país" [9]. A declaração faz sentido quando se sabe que os Estados Unidos protestaram vivamente junto ao governo indiano depois dos investimentos na Síria.

Este comunicado sino-indiano insiste também na necessidade de "promover a cooperação no campo da energia nuclear, respeitando os compromissos internacionais de cada um". Os termos são vagos – ao contrário do acordo que o presidente chinês assinaria alguns dias mais tarde com o Paquistão. Mas é a primeira vez que tal referência à cooperação nuclear existe em um documento oficial [10]. No fundo, Pequim procura contrapor-se ao acordo indo-norte-americano, tentando evitar que Nova Délhi se torne o interlocutor privilegiado de Washington.

Estes avanços permanecem, no entanto, contidos. Os contenciosos fronteiriços, ainda existem (no nordeste da Índia, uma parte do Arunachal Pradesh reivindicado por Pequim; a noroeste o Aksai Chin, reclamado pela Índia). A Comissão encarregada de resolvê-los não avança para valer. A China admitiu, é certo, que o Sikkim, antigo reinado budista transformado em província indiana desde 1975, era parte integrante da federação indiana. Por seu lado – e o alcance estratégico é bem maior – a Índia reconheceu, desde 2003, a soberania da China sobre o Tibete, enquanto o Dalai Lama e de 100 mil a 120 mil refugiados ainda vivam no seu território. Em julho de 2006, a garganta himalaia de Nathu La foi aberta, dando de novo um pouco de vida à célebre rota da seda, fechada desde 1962. Estamos longe da atividade do começo do século 20, quando três quartos da troca de mercadorias entre os dois países passava por essa estrada, mas podemos achar que os militares vão progressivamente ceder lugar aos comerciantes.

Entretanto, a desconfiança indiana continua, com o medo de um cerco da potência chinesa. No norte, o Paquistão gozou por muito tempo de um apoio incondicional de Pequim no conflito com Nova Délhi na questão da Caxemira [11]. O financiamento da construção de um porto em águas profundas, em Gwadar (Baluquistão paquistanês), reforça eses temores. Como o financiamento dos equipamentos navais na Birmânia, no sudeste. Pequim diz querer unicamente um acesso ao mar que proteja as rotas marítimas de suas importações. Nova Délhi não acredita: multiplica as manobras militares e navais com as forças norte-americanas, inclusive nos confins da fronteira chinesa, ou no Oceano Índico até o estreito de Málaga, linha de passagem de navios petroleiros. Também são realizadas manobras com o Japão, que está forjando uma nova concepção, mais ofensiva, de seu exército [12].

Surpresa: um possível "triângulo China-Índia-Rússia"

A Índia quer mostrar seus músculos. Entre as elites, a maioria, abertamente pró-norte-americana, aceita que o país cumpra o papel de plataforma contra a China, desejado pelo governo Bush. Mas uma parte do empresariado mostra-se mais reticente. "Não é a Índia contra a China que vamos ver, mas a China junto com a Índia" [13], declarou recentemente Syamam Gupta, diretor da Tata Sons, um dos grandes industriais indianos. A posição encontra eco entre os dirigentes políticos. O ex-primeiro-ministro Jairam Ramesh, membro do Partido do Congresso, no poder, publicou um livro de muita repercussão com um título emblemático: Making Sense of Chindia ["Dando sentido à Chíndia"].

Ninguém propõe, naturalmente, construir relações sino-indianas contra os Estados Unidos. E ninguém pode esquecer que os dirigentes chineses agem com pouca margem com os norte-americanos, com quem têm relações econômicas muito vastas. Entretanto, dar um conteúdo real à declaração de intenção sino-indiana "de explorar uma nova arquitetura para uma colaboração mais estreita na Ásia" torna-se urgente em uma região onde as despesas militares explodiram nos últimos anos, envolvendo a China (2º lugar mundial), Japão (4º) e Índia (8º)... Como diz Siddarth Varadarajan, célebre comentarista do The Hindu: "A Ásia é importante demais para ser dirigida por uma única potência; nem a China, nem a Índia, nem o Japão podem pensar em dirigir a região sozinhos ou em aliança com uma potência externa". Como muitos intelectuais progressistas, Varadarajam preconiza uma presença indiana mais ativa nas organizações regionais.

Um dos pontos de apoio da diplomacia indiana de outrora parece ter desaparecido: a Rússia. As declarações comuns são discretas, as relações bilaterais pouco espetaculares. No entanto, o comércio, que havia desmoronado no início dos anos 1990, recuperou-se, singularmente, no campo militar. Segundo a pesquisadora Anuradha M. Chenoy, professora emérita no departamento de Estudos Internacionais da universidade UJN, "a Índia é o único país que tem um programa de cooperação técnica e militar com a Rússia", movimentando um comércio que atingiu 6,5 bilhões de dólares em 2005. A Rússia continua sendo o principal vendedor de armas na Índia, sendo o segundo Israel, com o qual o antigo governo nacionalista indiano estabeleceu relações diplomáticas estreitas [14].

A procura de petróleo e gás constitui também um poderoso estímulo à cooperação. O ex-ministro do petróleo, Mani Shankar Aiyer, declarava em outubro de 2004: "Ao longo da primeira metade do século da independência da Índia, a Rússia garantiu nossa integridade territorial; na segunda metade, ela vai garantir nossa segurança energética" [15]. Sem dúvida não é o ponto de vista oficial, mas a companhia ONCG participa da exploração das jazidas petrolíferas de Sarhalin I e II. A Rússia comprometeu-se também em fornecer 60 toneladas de urânio. A energia constitui uma de suas armas para tornar-se de novo um dos pólos que contam na vida política mundial. "A superpotência militar tornou-se superpotência petroleira sob Putin, cuja missão é manter a Rússia como uma potência que deve ser respeitada, se não for temida", assegura Yu Bin, do International Relations Center [16].

É possível ver desenhar-se um "triângulo Índia-China-Rússia" na vez e lugar do "triângulo China–Índia–Estados Unidos" ("triângulo CIA", segundo a expressão de seus oponentes)? Não se chegou aí. Contudo, Nova Délhi decidiu participar, a título de observador (assim como o Paquistão e o Irã) da Organização de Cooperação de Xangai (OCS). Esta abrange as repúblicas da Ásia Central (Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão), além da China e da Rússia. Estas últimas procuram dar-lhe um poder diplomático mais forte, diante do aumento da influência norte-americana na região.

Exclusão maciça: o grande calcanhar-de-Aquiles

Por ora, a Índia não parece capaz de tomar inicativas estratégicas espetaculares, como explica muito bem o escritor Sunil Rhilnani: "Fomos seduzidos pela idéia de que logo nos tornaríamos um convidado permanente na festa perpétua das grandes potências, que deveríamos sacudir a poeira e usar roupas novas para o banquete [17]."

Na verdade, uma parte de sua energia está mobilizada para resolver os problemas em suas fronteiras. Embora sem pressa em estabelecer relações igualitárias com seus vizinhos, ela contribuiu para levantar a Associação para uma Cooperação Regional da Ásia do Sul (Acras ou Saarc - South Asian Association for Regional Cooperation) reunindo sob a mesma bandeira Bangladesh, Butão, Maldivas, Nepal, Paquistão e Sri Lanka. Mas a cooperação econômica continuou marginal (menos de 10% do comércio) e a organizção sobrevive, sem conseguir superar os conflitos.

Naturalmente, as relações tensas entre a Índia e o Paquistão contribuem para essa anomia. Ainda mais porque se arrastam as conversações iniciadas em 2004 sobre a Caxemira, dividida em duas, com Azad Caxemira (Caxemira livre) ao norte, controlada pelo Paquistão e ao sul Jammu-et-Caxemira, sob controle indiano. A fronteira foi aberta em cinco pontos, o comércio recuperou-se ligeiramente. Interrompido após um atentado em Mumbai, em 11 de julho de 2006, que provocou cem mortos e cuja responsabilidade foi atribuída pela Índia aos serviços secretos paquistaneses, ele recomeçou no final de outubro. Pela primeira vez, o preseidente paquistanês Pervez Musharraf anunciou, em 5 de dezembro último, que o Paquistão estava disposto a renunciar à Caxemira, se a Índia também o fizesse. A proposição foi acolhida "com interesse" pelo primeiro-ministro indiano. Nos dois lados da Caxemira, continua a predominar a prudência.

Sem ser conflituosas, as relações com os outros vizinhos mais próximos não estão, contudo, normalizadas — ainda que o acordo no Nepal, entre as forças governamentais e os movimentos maoístas, no começo de novembro, permita esperar novas relações. As incertezas em Bangladesh, o caos que reina no Sri Lanka não deixam de ter conseqüências internas. Estima-se em 20 mil o número de refugiados bengaleses do outro lado da fronteira e cerca de 10 mil tamuls se amontoam nos campos do Estado do Tamil Nadu. Muitos vivem em penúria total, dando lugar aos movimentos mais violentos e desencadeando as mais terríveis ações policiais.

A miséria alimenta o movimento dos naxalistas (maoístas), singularmente em Bengala Oeste, em Orissa e um pouco mais ao norte, no Estado do Bihar, na fronteira com o Nepal, onde as reivindicações independentistas ganham amplitude. "É nosso maior problema de segurança", declarou Singh. As fronteiras certamente são porosas. Mas o primeiro-ministro esquece as causas sociais dessas rupturas, especialmente a destruição causada pela "modernização" do campo. Em 2005, mais de 10 mil camponeses se suicidaram, no mais das vezes bebendo pesticidas, porque não podiam enfrentar suas dívidas. A Índia é exportadora de cereais, mas a desnutrição atinge a metade das crianças. Quatro indianos em dez não sabem ler nem escrever (um em dez na China). A Índia está em 126º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (a China está em 81º).

Se o governo tomou algumas medidas, muitas vezes desviadas por causa da corrupção maciça, nem o governo, nem as elites, parecem tocados por este fosso entre a maioria da população e os 60 a 70 milhões de indianos (entre 5% a 6% da população) que conquistaram um nível de vida comparável aos padrões europeus. O diplomata Shashi Tharoor é um dos poucos a dizer: "É preciso cuidar da outra Índia (...) devemos investir no "hardware" [estradas, portos e aeroportos, de fato em estado lamentável], mas também no "software", isto é, nos seres humanos, e dar-lhes aquilo que precisam. É uma questão de civilidade... " A exclusão maciçaa é o calcanhar-de-Aquiles de um país tido como "a mior democracia do mundo".

Tradução: Elisabete de Almeida
betty_blues_@hotmail.com

[1] Angus Maddison, "L’Economie chinoise, une perspective historique", Etudes de l’OCDE, Paris, 1998.

[2] Ler Christophe Jaffrelot, "Washington aposta na Índia", Le Monde Diplomatique-Brasil, setembro de 2006.

[3] A Índia representa 1% do comércio mundial; a China, 6%.

[4] Dafna Linzer, "India nuclear report never done", The Wall Street Journal, Nova Iorque, 16 de novembro de 2006.

[5] Edward Luce, In Spite of the Gods, Little, Brown, Londres, 2006.

[6] Declarações relatadas por Jairam Ramesh, Making sense of Chindia, India Research Press, Nova Délhi, 2005.

[7] Entre outubro e novembro de 1962, e China e a Índia, já em desacordo sobre o Tibet, confrontaram-se na fronteira do Himalaia.

[8] Amartya Sen, "Passage to China", New York Review of Books, volume 51, n° 19, 2 de dezembro de 2004.

[9] "Joint déclaration by the Republic of India and the People’s Republic of China", Nova Délhi, 21 de novembro de 2006.

[10] Ler Siddharth Varadarajan, "New Delhi, Beijing talk nuclear for the first time", The Hindu, Nova Délhi, 22 de novembro de 2006.

[11] Ler Jean-Luc Racine, "A via estreita do Paquistão", Le Monde Diplomatique-Brasil, junho de 2004.

[12] Ler Emilie Guyonnet, "As novas ambições do Japão", Le Monde Diplomatique-Brasil, abril de 2006.

[13] Associated Press, 22 de novembro de 2006.

[14] O objetivo era encontrar um fornecedor de armas, depois do desmoronamento soviético, mas também afirmar uma aproximação ideológica com forte conotação anti-muçulmana. Ler Nicolas Blarel, Inde et Israël: le rapprochement stratégique, L’Harmattan, Paris, 2006.

[15] Declarações relatadas por Anuradha M. Chenoy, "India and Russia: allies in the international political system" em um número do India’s Foreign Policy, a ser publicado em 2007.

[16] "Central Asia between competition and coopération", Foreign Policy in Focus, Washington, 4 de dezembo de 2006.

[17] "The mirror asking", Outlook, Nova Délhi, 21 agosto de 2006.

segunda-feira, junho 04, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 04/06/07

Aldeia Krukutu. Isolados sim, desconectados nunca

“A internet nos ajuda a ficar mais isolados.” A frase pode parecer um tanto contraditória, já que, pela rede mundial, dá para ter contato com o planeta inteiro com poucos cliques no mouse. Mas, para o líder comunitário e escritor da aldeia indígena Krukutu, da tribo guarani, Olívio Jekupé, justamente por permitir resolver tudo a distância, a web “faz o bem” ao afastar os índios da “cultura branca”. A reportagem é do jornal O Estado de S. Paulo, 4-06-2007.

“Ir à cidade é prejudicial, principalmente às crianças. Não é bom ter contato com o povo lá fora. Temos de manter nossa tradição”, diz Jekupé. “Além disso, se formos enviar uma carta, e não um e-mail, por exemplo, temos de ir ao Correio. E o mais próximo fica a 30 quilômetros.”

Não, não estamos falando de uma aldeia nos confins da Amazônia. Os krukutus moram em plena cidade de São Paulo, mas bem afastados. Ficam na região de Parelheiros, a 55 quilômetros do centro. Para chegar lá, só por uma longa e apertada estradinha de terra, no meio de uma área de proteção ambiental.

Mas todo esse isolamento não quer dizer que eles estejam longe da tecnologia. Os habitantes da aldeiazinha, que tem 210 moradores em uma área de 70 hectares, possuem internet, celular, TV, DVD e até videogame.

“A tecnologia não atingiu só os brancos”, diz o vice-cacique, Sebastião Armandes, de 44 anos. “E isso não significa abandonar nossa cultura. Damos orientações, principalmente aos jovens, de que é importante manter as tradições passadas de geração para geração.”

Prova disso é a forma como os índios usam a web. Na praça principal, um prédio feito de madeira rústica e com telhado de palha abriga o Centro de Educação e Cultura Indígena (Ceci), onde há um telecentro. No local, mantido pela Prefeitura e inaugurado em 2004, há oito PCs , onde os usuários - na maioria, jovens - se comunicam por e-mail e MSN. Detalhe: na língua tupi-guarani.

CHAT EM TUPI

“Não falo bem o português”, diz o morador Karaí de Oliveira, de 23 anos. “E costumo conversar pela internet com amigos de outras aldeias e parentes distantes. Por isso, acho mais fácil escrever em tupi mesmo.”

Essa facilidade de contato com outros índios, inclusive, está permitindo que os krukutus se comuniquem com outras aldeias do País todo. Segundo o coordenador-geral do Ceci, Marcos Tupã, de 37 anos, esse estreitamento na relação indígena ajuda na luta por direitos.

“Ainda são poucas as tribos com internet”, diz. “Mas, como as aldeias são em lugares afastados, a web permite conversar, por e-mail, com lideranças políticas sobre saúde, educação...”

Outro benefício que a rede trouxe foi o maior acesso à informação. O estudante Ivanildo da Silva, de 21 anos, por exemplo, usa a web em trabalhos escolares. “É muito mais fácil.”

Já a estudante Fátima Silva, de 16 anos, vê na web uma porta para o mundo. “Adoro pesquisar sobre animais, plantas e astronomia. Se não fosse a internet, nunca teria acesso. Nossa cultura não tem esse tipo de informação. E já sei bastante coisa. Por exemplo, você sabia que as estrelinhas do céu são planetas?”, pergunta ao repórter.

Há ainda quem, literalmente,tenha ganho o mundo com a internet. O escritor Olívio Jekupé, de 41 anos, foi parar na Itália por causa da rede mundial. “Uma editora de lá leu sobre mim na web e me convidou para publicar um livro”, diz ele, que acaba de voltar da Europa, onde lançou o livro Índio Grazie. “Tudo foi feito pela internet: mandei os textos, conversei com eles via Skype...”

Outra forma de comunicação digital que se dissemina na aldeia é o telefone celular. No local, há só dois telefones fixos: um no Ceci e outro, um orelhão, na administração dos krukutus, uma casa de concreto.

Por causa disso, a professora Francisca da Silva, de 26 anos, tem o seu celular. “O meu marido também. Quando levo meus filhos para o hospital, por exemplo, falo com ele rapidamente. E ele me liga também.”

O telefone de Francisca é até bem moderninho. Toca música e tudo. Por isso, ela sai andando pela aldeia com fones no ouvido. “Gosto de forró, das bandas Bonde do Forró e Calypso. Baixo da web e coloco no celular.”

O artesão Tupã de Oliveira, de 21 anos, é outro que não larga o celular. “Vou ao shopping na cidade para comprar roupas”, diz ele, que vestia bermuda, camiseta e boné de surfe. “Minha mãe se preocupa comigo e me liga quando saio da aldeia.”

Seja no telecentro ou nos dois consoles de videogame da aldeia, nas horas vagas, o que a garotada mais gosta é de ficar em tiroteios, corridas e lutas virtuais. No telecentro, Edson da Silva, de 14 anos, por exemplo, joga Street Fighter. Maurílio dos Santos, de 14 anos, futebol. E Mônica Vitorino, de 14 anos, se acaba no Super Mario.

Mas há quem prefira o console. O morador Nilson da Silva, de 27 anos, comprou há um mês um Playstation usado por R$ 400 para os irmãos e primos. Agora, sua casa, de madeira e com chão de terra, fica lotada de moleques, que passam o dia com os joysticks nas mãos.

O estudante Gilmar Rodrigues, de 13 anos, é um deles. “Adoro Street Fighter”, diz. “Antes, ia em uma lan house da cidade. Para chegar até lá, andava 30 minutos de bicicleta.”

O dono do console, Silva, nem se incomoda de não poder jogar, já que o videogame está sempre ocupado. “Deixa os meninos”, diz. “É a modernidade, o que os jovens gostam hoje. E os índios estão acompanhando isso. É bom. E pensar que antes usávamos velas de cera para iluminação porque nem energia elétrica tínhamos...”

Instituto Humanitas Unisinos - 04/06/07

Brasil quer que G-8 vincule etanol a clima

O Brasil e as principais nações industrializadas podem mostrar diferentes abordagens sobre o etanol, na reunião do G-8 esta semana na Alemanha. A reportagem é de Assis Moreira e publicada pelo jornal Valor, 4-06-2007.

O interesse do Brasil é vincular mais o etanol ao combate a mudanças climáticas e não só à eficiência energética. O país defenderá maior utilização de biocombustíveis como uma das principais alternativas para limitar emissões de efeito-estufa e para diversificar a matriz energética mundial, informou o negociador brasileiro, o embaixador Everton Vargas.

No G-8, no entanto, a tendência é ver o etanol preferencialmente no contexto da eficiência energética no setor de transportes, segundo uma fonte alemã. Num esboço de comunicado que ainda estava em negociação, o G-8 promete evitar "possível efeito negativo no desenvolvimento do biocombustível", particularmente nos países em desenvolvimento, "afim de prevenir concorrência entre diferentes formas de uso da terra, e promover padrões de sustentabilidade no cultivo de biomassa".

Nesse esboço de comunicado o G-8, sem a participação dos emergentes convidados, destaca que hoje existem 600 milhões de veículos no mundo, e que esse número deve dobrar até 2020. Assim, os países do G-8 se comprometeriam em melhorar em 20% a eficiência energética nos transportes até 2020 em comparação a 2005.

Para isso, precisam aumentar a parte de combustíveis alternativos, de forma que estes representem 15% do consumo total dentro de 13 anos. Mas a Alemanha não desejava que fosse feita menção específica ao etanol porque a indústria automobilística do país não demonstra entusiasmo pelo produto. Os EUA e a própria União Européia, por sua vez, continuam mantendo alta tarifas na entrada do produto.

A presidência alemã terá também uma declaração conjunta com o G-5, que reúne Brasil, China, Índia, México e África do Sul. O texto terá alto nível de generalidades em uma página e meia.

O Brasil insiste ainda no vínculo entre clima e desenvolvimento, aponta o chefe da Sub-secretária-Geral Política do Itamaraty, Everton Vargas, que atua como "sherpa", ou representante pessoal do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a preparação ao G-8. O termo "sherpa" é uma referência aos carregadores do Himalaia que ajudam os alpinistas a chegar ao topo das montanhas.

"Temos que limitar emissões sem sacrificar o desenvolvimento e sem sacrificar a competitividade do país. E para isso, precisamos de tecnologias de cooperação tecnológica", afirmou. Ou seja, o Brasil está disposto a trabalhar na redução de emissões, mas levando em conta as assimetrias internacionais.

O professor Roberto Schaeffer, especialista brasileiro que participou de estudo encomendado pela Alemanha destinado ao G-8, nota que o Brasil, ao chamar a atenção para o etanol, pode demonstrar que já estaria fazendo a sua parte reduzindo emissões voluntariamente, pela substituição de gasolina pelo álcool. Além disso, o país mantém a pressão contra barreiras protecionistas que penalizam a exportação do produto para os EUA e Europa.

Na área de eficiência energética, Schaeffer considera que alguns setores industriais no Brasil poderiam assumir voluntariamente compromissos, na medida em que competem internacionalmente, como o siderúrgico. Ao contrário da visão do governo, o analista considera que a eficiência energética é cada vez menos questão de transferência de tecnologia e mais de vontade política.

Instituto Humanitas Unisinos - 04/06/07

Fabricantes de calçados transferem fábricas para a China, Índia e Argentina

Se a cotação do dólar continuar dificultando as exportações dos calçados brasileiros, as etiquetas Made in Brazil, que figuram nas solas de sapatos vendidos em lojas de departamentos mundo afora, serão coisa do passado. Para sobreviver ao câmbio e não perder espaço no mercado internacional, indústrias nacionais estão deixando o País para fabricar no exterior. A reportagem é de Adriana Carranca e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 4-06-2007.

A lista das que estão de saída ou já transferiram-se para outro País, pelo menos em parte, é grande: Azaléia, Paquetá, Paramont, São Paulo Alpargatas, West Coast, Vulcabrás, só para citar algumas. A emigração da produção nacional já atinge fornecedores do setor. 'As que não foram para o exterior trabalham com margens de lucro apertadíssimas ou até prejuízo nas exportações, para não perder mercado, na esperança de melhorar a situação', diz o professor de comércio exterior Ênio Klein, consultor da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados).

A Formas Kunz, maior exportadora brasileira de fôrmas para calçados, fundada em Nova Hamburgo (RS), em 1927, conclui mil metros quadrados de uma nova fábrica em Chennai, sul da Índia, com investimentos de U$ 2,5 milhões. As operações devem ser iniciadas em julho, com 50 funcionários e produção diária de mil pares - um quarto do que a empresa produz no Brasil e quase o dobro das exportações. Até o final do ano, as instalações serão ampliadas para 4 mil metros quadrados.

No Brasil, a Kunz já fechou duas fábricas, dispensando 150 funcionários. 'Sofremos com a valorização do real. Foi o que nos fez procurar o mercado indiano', diz Eduardo Ivan Petry, do departamento comercial da Kunz. A fábrica na Índia produzirá para mercados próximos como China, Paquistão, Afeganistão e norte da África. Também atenderá à crescente demanda no mercado interno.

A Índia já é o segundo maior produtor de calçados do mundo, com 2 bilhões de pares produzidos em 2006, pouco mais de 10% para exportação. Perde apenas para a China, que chegou a 10 bilhões de pares no ano passado, 70% com destino a outros países. O Brasil vem em seguida, mas, em números, está distante dos concorrentes, com 725 milhões de pares, sendo 189 milhões para o exterior - menos de 3% do dragão chinês. 'A China desafia os modelos de negócios tradicionais e os mercados mundiais', diz Klein.

Desde outubro, a Azaléia abastece 25% do seu mercado externo com calçados produzidos por fábricas terceirizadas na China. Foi o primeiro país a atrair empresas calçadistas brasileiras, nos anos 1990, quando desembarcou por lá a Paramont, que hoje produz 25 milhões de pares por ano em mais de 30 fábricas terceirizadas na região de Cantão, sudoeste do país, que concentra 80% da produção de calçados chineses.

É lá que o advogado Juliano Seidl, 31 anos, desembarca em outubro com um grupo de empresários do Vale do Sinos a região produtora de calçados do Rio Grande do Sul. 'Desde que voltei da China, muitas empresas me procuraram interessadas em negócios no país', diz Seidl, que trabalhou por dois anos em Donguan, província da Cantão. Não teve dificuldades de se adaptar na cidade, que tem uma colônia com 2.500 gaúchos e 20 companhias brasileiras.

China e Índia estão nos planos da West Coast, que estuda transferir parte de sua produção de exportação - 30% dos 2,4 milhões de pares fabricados anualmente - para a Ásia ou América Latina. Executivos acabam de voltar de uma visita aos gigantes asiáticos e avaliam a melhor opção para escoar a produção com destino a 65 países. Guatemala e Argentina estão sendo considerados. Além de melhor câmbio, a Argentina tem carga tributária de 21% do PIB contra quase 40% no Brasil e é um importante mercado para a West Coast. Para lá já foram a Vulcabrás, que se associou à Alpargatas Argentina , e a Paquetá, que está investindo U$ 65 milhões na produção dos tênis Adidas e Diadora em Chivilcoy, província de Buenos Aires.

'Nossa rentabilidade caiu muito. Queremos ter um plano B para não morrer', diz o gerente de marketing da West Coast, Sérgio Baccaro. A empresa chegou a exportar 40% da produção. Com a queda do dólar, foi a 12%, hoje recuperados para 30% à custa de operar no vermelho em mercados onde a empresa não quer perder participação. 'Desde que decidimos intensificar as exportações, há seis anos, investimos na rede de distribuição e marca. Meus anúncios figuram na Playboy da Sérvia e da Venezuela, na Caras da Argentina, em revistas do Egito e Arábia Saudita e na MTV da Finlândia. Não podemos jogar esse investimento fora', diz.

Prejuízos foram compensados, em parte, com maior lucro no mercado interno, onde os sapatos custam R$ 79 contra menos de R$ 50 para exportação. A empresa também cortou custos. A fábrica em Ivoti chegou a ter 800 funcionários, hoje tem 350. 'Estamos insistindo em manter negócios no Brasil, mas é cada vez mais difícil.'

Instituto Humanitas Unisinos -

‘Eu, burguês, me tornei um black bloc e explico porque o pacifismo não adianta’

“Somente com a violência nós nos faremos escutar. O protesto pacífico não leva a nenhum lugar”. Jan, 18 anos, é filho da próspera boa burguesia de Hamburgo. Está em conflito com o pai, “também ele um capitalista que pensa somente no dinheiro. Por isso sai de casa”. No uniforme-outfit do black bloc que usa em cada manifestação – casaco preto com um capuz sobre a cabeça e o lenço preto que esconde o rosto – ele mete medo. Mas quando ele tira o lenço e o capuz, aparece um tranqüilo jovem loiro de uma boa família do norte da Europa. O sorriso calmo, a expressão reflexiva, os cabelos bem penteados. Ao jornalista Bruno Schrep da revista Der Spiegel, ele narra o seu mundo. A reportagem é do jornal La Repubblica, 4-06-2007.

“É necessário radicalizar o protesto. Isso é justo e invevitável”, afirma Jan, que ainda freqüentao Gymnasium, uma escola superior de elite para os mais inteligentes, lá na rica Hamburgo. Ele se deixou fotografar somente de costas e encapuzado. Segundo ele, somente com a violência se atrai a atenção do público.

Mas, segundo ele, “a violência não é um fim em si mesma”. “O Krawall, a desordem de rua, deve ter um sentido. Como quando se bloqueia as ruas para impedir uma demonstração neo-nazista”.

Jan fala de um mundo alienado, com uma idéia distorcida do direito e da justiça.

Ele se interessa pela política. Quando tinha 15 anos começou a se perguntar sobre o que fazer contra os neonazistas da Npd. E logo lhe veio a resposta clara: o culpado é o capitalismo à americana. E para combatê-lo não bastam demonstrações pacíficas. “Sem protestos violentos, o capitalismo mundial se difundirá e se reforçará ainda com mais velocidade”. Veja como age a Coca-Cola na Índia, cita o jovem: os trabalhadores são pagos com salários de fome e a escassa água potável é usada para produzir a Coca-Cola.

Jan não é um subproletário, não é um desempregado sem esperança, não é um perdedor da globalização. Ele cresceu como um alemão rico tendo todas os privilégios. Segundo ele, o pai, rico capitalista, lhe aconselhou que se inscrevesse num partido e lutasse lá para mudar a situação. Ele está saindo de casa. Pretende pagar por sua conta um instituto técnico e trabalhar artesanalmente para se sustentar. O seu plano de carreira é este.

“Sei, diz ao jornalista, que corro o perigo de ser preso, de ser incriminado, de sofrer processos penais. Sei muito bem que estou jogando o meu futuro, a vida. Mas renunciar aos protestos com os outros encapuzados do black bloc, disso não se fala. “Kommt nicht in Frage”, afirma o jovem. Ou seja, a tentação de deixar a militância é uma questão que não se coloca para nada, nem por um momento.