"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, dezembro 06, 2007

Resistir Info - 18/11/07

Crise no seio do estado maior inter-armas dos Estados Unidos
A Casa Branca sacrificaria a 5ª Frota para justificar a destruição nuclear do Irão?

por Michael Salla [*]

Mapa do Irão. O plano de ataque ao Irão pelos Estados Unidos prevê sacrificar a Quinta Frota a fim de justificar uma réplica nuclear. Não se trata de um cenário hipotético, mas de uma opção discutida no seio do estado maior inter-armas estado-unidense. Segundo nossas informações, o almirante William Fallon fez saber que se uma tal ordem fosse dada, ele recusar-se-ia a segui-la e apresentaria a sua demissão, assim como aquela do conjunto do estado maior do Centcom. Por enquanto é a resistência dos oficiais superiores da Armada e do Exército que impediram os neoconservadores e a Força Aérea de lançar as operações.

A administração Bush oculta e ignora deliberadamente análises táctica iconoclastas (baseadas na teoria dos jogos) provenientes do Pentágono, as quais sugerem que um ataque conta as instalações nucleares ou militares do Irão conduzirá directamente à liquidação da Quinta Fronta da US Navy, atracada actualmente no Golfo Pérsico. O tenente-general Paul Van Riper simulou assim o papel do chefe de um Estado hipotético do Golfo Pérsico, num cenário desenvolvido no quadro do jogo estratégico 2002 Millenium Challenge, e a partida terminou com a destruição total da Quinta Frota [1] . Sua experimentação e suas conclusões acerca da vulnerabilidade desta frota num conflito armado assimétrico e das consequência de uma guerra eventual contra o Irão foram ignoradas. Os neoconservadores da administração Bush estão em vias de fazer uma promoção agressiva de operações armadas contra o Irão, que culminarão no ataque, por este país, da Quinta Frota da U.S. Navy por meio de mísseis de cruzeiro ar-mar refinados. Eles ignoram deliberadamente as experiências desenvolvidas por Van Riper no decorrer da simulação Millenium Challenge, e suas semelhanças perigosamente sugestivas com o actual contencioso nuclear com o Irão.

Capacidades do Yakhont. O Irão dispõe de uma quantidade de mísseis de cruzeiro perfeitamente suficiente para destruir grande parte, senão a totalidade, da Quinta Frota, que se encontra ao alcance dos lançadores de mísseis móveis iranianos – estrategicamente instalados ao longo da sua cadeia montanhosa que domina as costas do Golfo Pérsico. A administração Bush minimisa deliberadamente a vulnerabilidade da Quinta Fronta à tecnologia avançada do Irão em matéria de mísseis, os quais foram comprados à Rússia e à China no fim dos anos 1990. Os mais refinados destes mísseis iranianos são os "Sunburn" (queimadura de sol) e os "Yakhonts". Trata-se de mísseis contra os quais os vasos de guerra estado-unidenses não têm resposta eficaz, advertem todos os peritos militares. Ao provocar deliberadamente represálias iranianas contra uma intervenção armada americana, os neoconservadores preparam-se para sacrificar com pleno conhecimento de causa uma grande parte, senão a totalidade, da Quinta Frota. Isto arrisca-se a resultar num novo Pearl Harbor, o que criaria o ambiente político adequado tendo em vista uma guerra total contra o Irão e acções armadas estendendo-se ao conjunto da região do Golfo Pérsico.

A vulnerabilidade da Quinta Frota ao arsenal dos mísseis ar-mar iranianos

A Quinta Frota da US Navy tem o seu QG no Estado do Bahrein, no golfo. Este QG é responsável pela vigilância por meio de patrulhas do Golfo Pérsico, do Mar da Arábia, do Canal de Suez, assim como de certas partes do Oceano Índico. Actualmente, esta frota inclui uma flotilha de porta-aviões e dois porta-helicópteros. Sua dimensão atingiu um máximo de cinco porta-aviões e de seis porta-helicópteros durante a invasão do Iraque. A esquadra é dirigida pelo USS Enterprise (CVN-65), o primeiro porta-aviões a propulsão nuclear construído em 1961, o qual participou, dia 2 deste mês (Novembro de 2007), num exercício naval no Golfo Pérsico.

A base da Quinta Frota, no Bahrein, está a apenas 150 milhas marítimas [278 km] da costa iraniana, e ela própria estaria ao alcance de uma nova geração de mísseis ar-mar iranianos. Aliás, não importa qual embarcação da Navy, no terreno de operação confinado do Golfo Pérsico, teria dificuldades em manobrar e encontrar-se-ia a pouca distância da costa rochosa e em dentes de serra do Irão, ao longo de todo o Golfo Pérsico e até o Mar da Arábia.

O Irão começou a comprar tecnologia militar à Rússia pouco depois de esta retractar-se, em 2000, do Protocolo Gore- Chernomyrdin, o qual limitava as vendas de equipamento militar da Rússia ao Irão. Na sequência do que a Rússia pôs-se a vender ao Irão tecnologia militar susceptível de ser utilizada em não importa qual conflito com os Estados Unidos, nomeadamente sistemas de defesa anti-aérea e mísseis terra-mar, equipamentos nos quais a Rússia se havia especializado precisamente a fim de contra-balancear a esmagadora superioridade marítima dos Estados Unidos.

O míssil SS-N-22, dito "Sunburn", atinge a velocidade de mach 2,5, ou seja, 1500 milhas/hora [2414 km/h]. Ele utiliza tecnologia furtiva e seu alcance atinge as 130 milhas [209 km]. Transporta uma cabeça explosiva convencional de 750 libras [340 kg], capaz de destruir a maior parte das embarcações de guerra. Mais preocupante ainda é o SSN-X.26 de fabricação russa, dito "Yakhont". É um míssil de cruzeiro com um alcance de 185 milhas [298 km], que torna vulneráveis todas as embarcações da US Navy presentes no Golfo Pérsico. Mais grave: os Yakhonts foram ajustados especificamente para serem utilizados contra porta-aviões, e foram vendidos pela Rússia nos mercados internacionais de armamentos.

Tanto os mísseis Yakhont como os mísseis Sunburn são concebidos para esquivarem-se aos radares de vigilância Aegis, actualmente utilizados nas embarcações da US Navy, graças à sua tecnologia furtiva e às suas manobras de voo em altitude muito baixa, que seguem as asperezas do terreno. Na sua aproximação terminal, estes mísseis adoptam trajectórias esquivas que lhes permitem escapar aos tiros anti-mísseis terra-mar. Tão importante é a ameaça representada pelos Sunburn, pelos Yakhonts e outros mísseis desenvolvidos pela Rússia e por ela vendidos à China, ao Irão e a outros países, que o serviço de testagem de armas do Pentágono tomou a decisão, este ano, de cessar a produção de todos os novos tipos de porta-aviões enquanto uma defesa anti-míssil eficaz não tiver sido preparada.

Os jogos de estratégia Millenium Challenge

O "Millenium Challenge" foi o jogo de guerra mais importante já efectuada até agora. Este exercício implicou 13500 soldados, repartidos em mais de 17 regiões do globo. Os jogos estratégicos implicam uma utilização intensa das simulações informáticas, estendendo-se num período de três semanas, a um custo de 250 milhões de dólares. O Millenium Challenge punha em jogo uma guerra assimétrica entre as forças armadas americanas, sob o comando do general William Kernan, e um país não especificado do Golfo Pérsico. Segundo o general Kernan, estes jogos estratégicos "deviam servir para testar uma série de novos conceitos operacionais recentemente desenvolvidos pelo Pentágono". Tendo recorrido a um conjunto de ataques assimétricos, a estratégias utilizando navios civis maquilhados a fim de lançar ofensivas, aviões para ataques kamikazes, e mísseis de cruzeiro Silkworm, foi a quase totalidade da Quinta Frota que foi ao fundo. As simulações revelaram até que ponto estratégias assimétricas eram susceptíveis de tirar proveito da vulnerabilidade da Quinta Frota face a mísseis de cruzeiro terra-mar, em particular nas águas confinadas do Golfo Pérsico.

Tomando uma decisão eminentemente discutível, o Pentágono escolheu, muito simplesmente, "repor a flutuar" a Quinta Frota a fim de prosseguir o exercício, que conduziu, no fim, à derrota do país fictício escolhido no Golfo Pérsico. O envio para o fundo da Quinta Frota foi um episódio infeliz rapidamente esquecido, e o exercício foi declarado um êxito para os "novos conceitos de conduta da guerra" adoptados pelo general Kernan. Isto levou o tenente-general Paul Van Riper, comandante do mítico Estado do Golfo, a qualificar os resultados oficiais deste exercício de "slogans vazios". No decorrer de uma entrevista televisiva realizada pouco após, o general Riper declarou: "os conceitos que estavam a ser testados pelo comando não se tendo revelado à altura, o comando pôs-se a reescrever o cenário do exercício ao seu modo, a fim de demonstrar a validade dos seus conceitos hipotéticos de partida. É nisto que incide essencialmente a minha queixa".

Mais graves foram as afirmações do general Riper quanto à eficiência da tecnologia de mísseis de cruzeiro reformados, os mísseis Silkworm, que haviam sido utilizados para afundar um porta-aviões e dois porta-helicópteros carregados de Marines, no total das dezasseis embarcações enviadas para o fundo. Quando foi pedido para confirmar as alegações de Riper, o general Kernar respondeu: "Oh, você sabe... não sei. Para ser franco consigo, não tive oportunidade de avaliar o que se passou. Mas é uma possibilidade... Quanto às especificidades deste tipo particular de míssil de cruzeiro... não posso realmente responder a esta pergunta. Deveremos retornar a ela ulteriormente".

Os jogos estratégicos Millenium Challenge demonstraram claramente a vulnerabilidade da 5ª Frota a ataques de mísseis Silkworm. Tratou-se de uma reposição em cena da experiência vivida em 1980 pelos britânicos durante a guerra das Malvinas (Falklands), na qual dois navios de guerra britânicos foram afundados por três mísseis Exocet. Tanto os mísseis de cruzeiro Exocet como os mísseis de cruzeiro Silkworm faziam parte de uma geração obsoleta de tecnologia de mísseis anti-navios, pois foram ultrapassados pelos mísseis Sunburn e Yakhont. Se o Millenium Challenge foi bem parametrizado a fim de corresponder a uma repetição tendo em vista uma guerra assimétrica com o Irão, a quase-totalidade da Quinta Fronta seria destruída. Não é espantoso, portanto, que o Millenium Challenge tenha sido no fim das contas modificado de modo a que este facto aborrecido fosse ocultado. Até o dia de hoje, a opinião pública tem muito pouca consciência da vulnerabilidade da Quinta Frota estacionada no Golfo Pérsico. Parece que a administração Bush preparou para os jogos estratégicos uma saída que promoveria a sua agenda neoconservadora no Médio Oriente.

A estratégia neoconservadora de ataque ao Irão

Os neocons têm em comum uma filosofia política a qual pretende que a dominação dos Estados Unidos sobre o sistema internacional, na sua qualidade de super-potência única, deva prolongar-se no século XXI e até uma data indeterminada. No princípio de 2006, os neocons que trabalhavam na administração Bush começaram a fazer uma promoção vigorosa de uma nova arma de guerra contra o Irão, devido à alegada ameaça que representaria o programa nuclear este país. O Irão repetiu constantemente que o seu desenvolvimento nuclear é perfeitamente legal e que respeita o Tratado da Não Proliferação Nuclear (TNP). Desde 2004, a administração Bush cita dados provenientes dos seus serviços de informação segundo os quais o Irão desenvolveria armas atómicas, e que em hipótese alguma isto lhe seria permitido.

A maior parte do desenvolvimento nuclear do Irão teria sido efectuado em fábricas subterrâneas construídas a uma profundidade de 70 pés [21,3 m] com estruturas de betão armado que as protegem de quaisquer ataques com armas convencionais conhecidas. Isto levou a administração Bush a pretender, no princípio de 2006, que deveria ser utilizadas armas nucleares tácticas a fim de eliminar as instalações nucleares iranianas [2] . Este facto provocou uma controvérsia inflamada entre neoconservadores de primeira categoria, como Dick Cheney e Donald Rumsfeld, e os chefes dos estados maiores conjuntos, que se opuseram categoricamente a esta eventualidade. O jornalista de investigação Seymour Hersh escreveu, em Maio de 2006, acerca desta oposição destes chefes dos estados maiores conjuntos.

Esforços subsequentes dos neoconservadores, visando justificar um ataque militar multinacional, foram seriamente prejudicados por um cepticismo amplamente difuso na opinião pública quanto à ameaça representada pelo programa nuclear iraniano, assim como pelo respeito, por parte do Irão, do Tratado de Não Proliferação, reafirmado por Mohamed El-Baradei, responsável pela Agência Internacional de Energia Atómica. Este cita avaliações mlitares estado-unidenses segundo as quais o Irão não estará em condições de produzir combustível nuclear suficientemente puro que possa ser utilizado em bombas nucleares antes de alguns anos. A administração Bush, frustrada por esta dupla oposição aos seus planos, em simultâneo no próprio interior da sua burocracia, nas suas forças armadas e na comunidade internacional, adoptou uma estratégia em três plataformas a fim de por o Irão "fora do jogo".

A primeira plataforma consiste em suscitar percepções, na opinião pública, de uma crise de segurança internacional, pondo em guarda contra uma Terceira Guerra Mundial, caso não se chegasse a por um fim ao programa nuclear do Irão. Durante uma conferência de imprensa, a 17 de Outubro de 2007, o presidente Bush declarou: "Se está interessado em evitar a Terceira Guerra Mundial, sem dúvida deveria estar interessado em impedi-los [os iranianos] de ter o conhecimento necessário para fabricar uma arma nuclear". A retórica assustadora de Bush foi seguida logo após pela do vice-presidente Cheney, em 23 de Outubro, quando advertiu num discurso que os EUA e seus aliados estavam "preparados para impor sérias consequências" sobre o Irão.

A segunda estratégia consiste num deslizamento, a ênfase sendo posta menos na necessidade de privar o Irão das suas instalações nucleares, e mais sobre o apoio deste país ao terrorismo. Dada a oposição, militar e política, muito ampla contra ataques às instalações nucleares iranianas, a administração Bush desde então apresenta o Irão como um apoiante do terrorismo no Iraque.

Esta mudança na estratégia foi fortemente corroborada por uma passagem da Emenda Kyle-Lieberman, no Senado, a 26 de Setembro de 2008, designou "o corpo dos Guardas da Revolução Iranianos como uma organização terrorista estrangeira". Isto iria permitir à administração Bush autorizar ataques contra as casernas do Guardas da Revolução no interior do território iraniano, com o pretexto de que eles apoiariam os grupos terroristas iraquianos que atacam as forças americanas.

A terceira estratégia – a mais perigosa – a que recorre a administração Bush consiste em acelerar uma missão encoberta que criaria o ambiente político necessário para uma guerra contra o Irão. Isto foi evidenciado aquando do infame incidente do B-52 "Bent Spear", onde foram descobertos cinco mísseis com ogivas nucleares em vias de serem encaminhados para o Médio Oriente, no quadro de um golpe sujo dos serviços secretos [3] . As ogivas nucleares tinham cargas que variavam de 5 a 150 quilotoneladas, e elas idealmente teriam podido servir para destruir as fábricas subterrâneas do Irão, ou a uma operação com falsa bandeira que seria atribuída ao Irão. Contudo, pessoal da US Air Force recusou-se a obedecer a ordens "ilegais" que vinham muito provavelmente da Casa Branca, evitando assim o que poderia ter implicado a explosão de uma ou de várias bomba(s) nuclear(es) na região do Golfo Pérsico.

As consequências de um ataque contra o Irão

Pretendendo intimidar o Irão, a administração Bush manobrou permanentemente duas formações de porta-aviões no Golfo Pérsico. A amplitude e o calendário de eventuais ataques contra as instalações nucleares ou/e militares do Irão determinariam a rapidez e a amplitude de uma retaliação iraniana. A retaliação iraniana previsivelmente terá como consequência uma escalada militar culminando no recurso, pelo Irão, aos seus mísseis de cruzeiro anti-navios contra a Quinta Frota dos Estados Unidos, e o encerramento do Estreito de Ormuz a toda a navegação. A capacidade do Irão de esconder e lançar mísseis de cruzeiro a partir das suas posições nas montanhas, ao longo do Golfo Pérsico, tornará vulneráveis as embarcações da Quinta Frota que ali manobram. Esta ficaria presa na armadilha, e incapaz de partir para mares mais seguros. Os jogos de guerra do Millenium Challenge, em 2002, assistiram aos afundamento da quase totalidade desta frota. Se um ataque contra o Irão devesse acontecer antes do fim deste ano (2007), ele implicaria a destruição do USS Enterprise e a morte dos 5000 homens que servem neste navio. Quanto às perdas ulteriores em termos de cruzadores de apoio e de outras forças navais pertencentes à Quinta Frota no Golfo Pérsico, elas seriam catastróficas. Um ataque por mísseis de cruzeiro iranianos reeditaria as perdas registadas em Pearl Harbor, onde o envio para o fundo de cinco navios, a destruição de 188 aviões e a morte de 2333 soldados americanos implicou muito rapidamente a declaração de uma guerra total contra o Japão pelo Congresso dos Estados Unidos.

A declaração de uma guerra total contra o Irão pelo Congresso dos EUA implicaria uma campanha de bombardeamentos intensos e uma eventual invasão armada, a fim de provocar uma mudança de regime político no Irão. A mobilização seria decretada nos Estados Unidos a fim de obter o pessoal necessário para uma invasão do Irão, e sustentar as tropas americanas no Iraque e no Afeganistão, que seriam imediatamente submetidas a uma pressão acrescida.

As tensões experimentariam rapidamente uma escalada com as outras grandes potências, como a Rússia e a China, que forneceram ao Irão sistemas de armas refinados susceptíveis de serem utilizados contra os postos avançados militares americanos. O encerramento do Estreito de Ormuz a toda a navegação e o estado de guerra máximo nos Estados Unidos implicaria um afundamento da economia mundial e um aumento da erosão das liberdades civis nos Estados Unidos, empenhados desde então numa guerra total.

Conclusões

O cenário que acabámos de descrever é altamente plausível, dadas as capacidades militares do Irão em matéria de mísseis de cruzeiro anti-navios, e da vulnerabilidade da US Navy face a estes mísseis, no caso de ela passar à acção no Golfo Pérsico. A administração Bush escondeu à opinião pública estado-unidense a gravidade da vulnerabilidade de Quinta Fronta, bem como a maneira como ela se arrisca a ficar presa na armadilha e ser destruída, no caso de um conflito de grande amplitude com o Irão. Isto ficou particularmente bem evidenciado pela decisão controversa de minimizar os resultados reais dos jogos estratégicos de simulação Milleniu Wargames, e pelas opiniões contrárias expressas pelo tenente-general Van Riper acerca das lições a retirar. Tais opiniões culminaram na assinatura, pelo general Van Riper, de uma petição de generais americanos na reforma apelando à demissão de Donald Rumsfeld.

Os neoconservadores da administração Bush têm perfeita consciência da vulnerabilidade da Quinta Frota e contudo, em várias ocasiões, tentaram afectar até três flotilhas de porta-aviões no Golfo Pérsico, que não faria senão aumentar as perdas estado-unidenses em caso de guerra contra o Irão, seja qual for o tipo. Contudo, a administração Bush continuou a avançar nos seus projectos de ataque nuclear, convencional ou/e subreptício, contra o Irão, que não faria senão precipitar o cenário espantoso acima descrito.

Uma conclusão razoável a tirar disto é que os neoconservadores da administração Bush estão prontos a sacrificar o grosso – até mesmo a totalidade – da Quinta Frota dos EUA ao provocar militarmente o Irão a puxar do seu arsenal de mísseis anti-navios, a fim de justificar uma "guerra total" contra o Irão, e impor uma mudança de regime a este país. Pode-se evitar este novo Pearl Harbor exigindo responsabilidades aos oficiais da administração Bush prontos a sacrificar a Quinta Frota no altar da sua agenda neoconservadora.


Notas
[1] "La grande simulation de la guerre en Irak. Apocalypse Tomorrow ", Réseau Voltaire, 26 septembre 2002.
[2] "L'Iran doit se tenir prêt à contrer une attaque nucléaire", par Général Leonid Ivashov, Réseau Voltaire, 16 février 2007.
[3] "L'affaire du B52 de la base de Minot. La mise en place de bombes nucléaires états-uniennes contre l'Iran?", par Larry Johnson, Horizons et débats, 17 septembre 2007.

  • Ver também: Iran Builds New Longer-Range Missile .


  • [*] Investigador em política internacional, resolução de conflitos, política externa dos EUA e no novo campo da "exopolítica". É autor/editor de cinco livros e possui postos académicos na School of International Service, no Center for Global Peace, American University, Washington DC (1996-2004); no Department of Political Science, Australian National University, Canberra, Australia (1994-96); e na Elliott School of International Affairs, George Washington University, Washington D.C., (2002). Tem um Ph.D em Governo da Universidade de Queensland, Australia, e um M.A. em Filosofia da Universidade de Melbourne, Australia. Efectuou investigação e trabalho de campo em conflitos étnicos em Timor Leste, Kosovo, Macedonia, e Sri Lanka, e organizou iniciativas de paz envolvendo participantes nestes conflitos.


    A versão em francês encontra-se em http://www.voltairenet.org/article153012.html

    Resistir Info - 26/11/07

    Um ou outro ou ambos?

    por Jim Kunstler

    O grande debate entre aqueles que velam junto ao leito da Economia Moribunda é se o desastre que observamos à nossa volta será resolvido através de um crash ou de uma ruína financeira em câmara lenta. Parece-me que em todas as camadas do sistema estamos sujeitos a ambos os desenlaces – em papel comerciável, legitimidade institucional, solvência individual, actividade produtiva, emprego real, comportamento do "consumidor" e recursos energéticos. Algumas coisas estão em vias de crash, tal como já escrevi.

    O dólar está a perder cerca de um centavo a cada três semanas contra outras divisas. Um centavo não parece muito, mas se mantiver aquele ritmo por mais um ano a "divisa de reserva" do mundo tornar-se-á o papel higiénico de reserva do planeta. Os preços do petróleo estão prontos para entrar no reino dos três dígitos e o efeito psicológico disto pode ser chocante junto a 200 milhões de infelizes motoristas. O valor das casas de papelão e vinyl não há dúvida que está a afundar. Naturalmente, os números do governo quanto ao índice de preços no consumidor e ao emprego são em geral descartáveis por falta de credibilidade. Mas qualquer pessoa que ultimamente tenha comprado um saco de cebolas e um frasco de geleia sabe que os preços caminham para cima nos corredores dos supermercados, e tantos migrantes ilegais mexicanos foram empregados no boom habitacional do Sunbelt [1] que a sua ausência após o desastre não ficará registada em qualquer gráfico.

    É difícil descrever o que constitui a parte principal do que está em andamento nos mercados financeiros mundiais pela simples razão de que tudo foi deliberadamente concebido para ser abstruso e contingente de modo a que os correctores (traders) ficassem demasiado intimidados e não perguntassem o que aquilo representava – e a cada vez mais terrífica suspeição é de que grande parte sejam papéis sem valor. Com isto refiro-me ao espectáculo de aberrações globais de derivativos, "jogos" confeccionados sobre hipotéticas "posições", credit default swaps, arbitragens em "diferenciais" imaginados, equações elegantes, hedges, promessas, algoritmos executados por robots, e contas "fora dos livros" registadas nas Ilhas Cayman. Provavelmente todas estas aberrações, de uma forma ou de outra, são apenas ludíbrios uma vez que não dependem de actividade produtiva.

    Num nível mais fundamental, estes "investimentos" mutantes eram derivados de um comércio muito tangível em empréstimos e hipotecas feitas com bocados de carne e sangue, mas mesmo estas são apenas a última numa longa espiral de "bolhas" em série, ou frenesins de mercado baseados em expectativas irreais. E isto conduz ao próprio âmago real de escolhas deficientes, irresponsabilidade fiscal e fiduciária, políticas deliberadamente enganosas, malfeitorias criminosas e abandono generalizado de padrões de comportamento aceitável por parte de pessoas com autoridade. Um bocado de observadores atribui isto ao espírito Gordon Gecko – a descoberta na década de 1980 de que "a cobiça é boa", o que significava difundir o espírito primitivo de que a vida é trágica.

    Seja como for, o comércio em entidades de investimento mutantes parece estar a entrar agora em colapso, quando a sua inutilidade em termos de mercado (em contraposição àquela em termos teóricos) se torna manifesta. Os maiores possuidores deste lixo estão a perder a capacidade de esconder as suas perdas, mas agora reina a suspeita de que as perdas são muito maiores do que os maciços múltiplos milhares de milhões relatados até então pelos tipos da Merrill Lynch, Citicorp e outros. Suponho que o que temos estado a ver ultimamente é uma tentativa desesperada de manter as coisas juntas apenas o tempo suficiente para sacar aqueles cheques dos bónus de Natal de modo a que, quando a carta de despedimento finalmente chegar em 2008, pelo menos alguns Big Boyz passearão para longe com bastante dinheiro para comprar uma hacienda no Uruguai e pagar os salários de meia dúzia de estúpidos seguranças privados a fim de guardá-la.

    Mas devo dizer, com o risco de mais uma vez parecer extremo, que a doença estrutural e sistémica no âmago das finanças é agora tão severa que é difícil imaginar que atravessemos o mês de Dezembro sem algum grande trauma nos mercados. De facto, chego a prever uma queda de um milhar (ou mais) de pontos no Dow nesta semana após o Dia da Acção de Graças [2] . A riqueza real "fora daqui" está a evaporar-se como um gelado caído sobre o chão do quinto círculo do inferno. Está a sair para fora do sistema quer os Big Boyz ou quaisquer outros gostem ou não, e a sua ausência manifestar-se-á por si própria.

    Com o risco de soar ainda mais extremo, eu dificilmente acreditaria em quaisquer relatos de que os gastos "dos consumidores" após o Dia da Acção de Graças cumprirão as esperanças e vontades dos funcionários económicos. O meu pressentimento é que os americanos médios estão tão atolados em dívidas que já não sabem o que fazer. Talvez muitos deles talvez estejam desejosos de dar o último passo para a insolvência fatal a fim de colocar um écran em plasma para a TV debaixo da árvore de Natal e parecerem heróis diante das suas famílias. Se isto acontecer, apenas implicaria num maior banho de sangue nos incumprimentos de cartões de crédito que em Fevereiro de Março assolaram o sistema, o que só estenderia a carnificina dos instrumentos de dívida colaterizados também à cadeia alimentar.

    Este assunto tem provavelmente um longo caminho a percorrer, mesmo quando o "comboio" das perdas se choca com o obstáculo imóvel da realidade e os "vagões" das consequências descarrilam. A ruína do comboio em andamento lento poderia varrer do seu caminho um bocado de coisas familiares – bancos, companhias, empresas patrocinadas pelo governo, indústrias inteiras, economias inteiras, países e mais, incluindo as perspectivas para a existência civilizada, se dificuldades severas levarem à guerra, o que muitas vezes acontece.

    Em certa medida, a velocidade e severidade do desastre do comboio financeiro ocorrerá numa relação mutuamente reforçadora com aquilo que acontece nos mercados de petróleo. A elevação no preço do óleo é apenas o sintoma mais suave da crescente instabilidade do sistema que determina a distribuição do recurso mais crítico do mundo. Mesmo em face da "destruição da procura", mudanças estranhas estão a verificar-se no modo como os produtores de petróleo fazem negócios. O declínio nas taxas de exportação e o novo espírito do "nacionalismo petrolífero" ocupará agora o centro do palco, mesmo se a economia dos EUA seja capturada. Este fenómeno representará um novo ciclo nos assuntos mundiais: a competição global pelos recursos remanescentes de combustíveis fósseis.

    Mais cedo do que tarde, surgirá o sintoma seguinte: pontos de escassez pelos EUA e comportamento de manada. Será isto finalmente o que acordará o público americano do seu longo sonambulismo (foi Matthew Simons que utilizou a expressão pela primeira vez, a propósito) – quando se formarem filas nos postos de gasolina e os temperamentos aquecerem e as pistolas forem sacadas dos porta-luvas.

    Nos mercados financeiros e nas economias do países, não se trata de um caso de isto ou aquilo. Trata-se de um caso de isto e aquilo.


    [1] Região sul e sudoeste dos EUA
    [2] Feriado americano, na quarta quinta-feira do mês de Novembro.

    Le Monde Diplomatique Brasil - Nov 07

    Apocalipse (Consumista) Now

    Só no ano de 2007, a população mundial aumentará em 66 milhões de pessoas; 23.282 espécies serão extintas; 11 milhões de hectares, desmatados; 31 milhões de carros e 72 milhões de computadores produzidos e 26 trilhões de barris de petróleo extraídos

    Manoel Neto, Flávio Shirahige

    Acorda de manhã. Esfrega os olhos. Toma um banho quente. Olha o relógio e vê que está atrasado para o trabalho. Coloca o pão na torradeira e pega o carro para viajar os 15 quilômetros até o trabalho. Trabalha no ar condicionado, aproveita o horário do almoço para trocar de celular e volta para casa às 6 da tarde, pensando em todos os eletrodomésticos que comprou para a casa nova e os que ainda falta comprar. Televisão, computador, geladeira, freezer, microondas, som, dvd, tevê a cabo, george foreman grill, fogão elétrico... Reconheceu-se nessa descrição? Agora imagine que mais de 1,7 bilhão de pessoas também são capazes de se reconhecer, e a quantidade de mercadorias que elas podem possuir. E mais: esse número tende a crescer assustadoramente, à medida que mais e mais pessoas são incorporadas no mercado consumidor de massas.

    No cotidiano, não estamos muito preocupados com os impactos do nosso estilo de vida no planeta. É difícil imaginar que os 45 litros de gasolina que colocamos periodicamente no nosso carro poderão deflagrar uma crise, perante os mais de 5 bilhões de barris de petróleo do campo de Tupi anunciados pela Petrobrás na semana passada. Ou que os 459 kWh consumidos pelos variados eletrodomésticos que cada pessoa no Brasil tem poderão gerar um apagão, diante dos 96,6 milhões de kWh que as usinas hidro e termoelétricas do país são capazes de produzir.

    Porém, quando consideramos conjuntamente cada ação do dia-a-dia dos milhões de habitantes no mundo, o impacto é assustador: só no ano de 2007, a população mundial aumentou em 66 milhões de pessoas; 23.282 espécies foram extintas; 11 milhões de hectares foram desmatados; 31 milhões de carros e 72 milhões de computadores produzidos e 26 trilhões de barris de petróleo extraídos.

    Diante desse quadro, há as muitas alternativas ecologicamente corretas que estão surgindo, mas que infelizmente têm pouco resultado prático. De nada adianta substituir um produto poluente por um menos poluente, se a geração de energia continuar suja, por exemplo. Na verdade é difícil acreditar que seja possível resolver o problema ambiental apenas substituindo bens de consumo ecologicamente insustentável por um consumismo ambientalmente correto.

    Um mundo desigual também no consumo de energia

    Segundo a Agência Internacional de Energia, a produção de energia primária (como, por exemplo, os combustíveis fosseis, hidroeletricidade, energia nuclear, solar) no mundo foi, em 2005, de 133,37 milhões de GigaWatts hora (GWh), um valor por habitante de 20.735 kWh. Desse total, apenas 11% foi destinado ao consumo final como eletricidade — o que representa um consumo per capita de 2.596 kWh. Ao comparar os dados dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) com a China, cada habitante chinês consome 21,5% da eletricidade gasta nos países que integram aquela organização (1.802 kWh consumidos por habitante na China contra 8.365 kWh nos países da OCDE). Se confrontarmos com o 13.640 kWh per capita dos EUA, esse percentual cai para 13,21%!

    Quando verificamos os dados de emissões, os resultados não são menos impactantes: no ano de 2005, o mundo emitiu 27,136 bilhões de toneladas de CO2, oriundas da queima de combustíveis durante o processo de geração de energia. Ou seja, cada pessoa no mundo foi responsável, em média, pela emissão 4,22 toneladas de CO2 para a atmosfera naquele ano, sendo que o valor por habitante em um país da OCDE é de 11 toneladas e dos EUA, 19,6 toneladas

    Esses dados nos levam a uma simples reflexão: e se cada pessoa no mundo consumisse energia como nos países da OCDE? O calculo é simples: precisaríamos de 53,8 milhões de GWh de eletricidade ou 30,487 bilhões de toneladas de óleo equivalente de energia primária. Só em petróleo, seriam necessários 99 bilhões barris por ano. Em termos de emissão, teríamos 70,88 bilhões de toneladas de CO2 sendo despejadas na atmosfera por ano. Agora imagine se consumíssemos seguindo os 13.640 kWh do padrão do American Way of Life? O planeta agüentaria?

    Estudos indicam que um consumo médio de 4.000 a 6.000 kWh seria capaz de proporcionar um alto índice de IDH, típico dos países mais desenvolvidos. Porém, mesmo que desejássemos estender o padrão de vida desenvolvido ao resto do mundo – no fundo, o verdadeiro sonho de quase todos – ainda assim é difícil não concordar que simplesmente o planeta não suportará. Sem mencionar os impactos econômicos em termos de preços de matérias-primas e derivados.

    A questão é complexa e não se trata apenas de desperdício, nem que este possa ser atribuído apenas aos norte-americanos. O fato mesmo é que o modo de vida ocidental baseado numa imensa coleção de mercadorias disponíveis para o consumo — como sinônimo de bem-estar, progresso e sucesso — é socialmente e ambientalmente trágico. Eis porque é cada vez mais premente pensar a questão ecológica tendo como horizonte uma outra sociedade, para além da mercadoria e do consumo.

    Le Monde Diplomatique Brasil - Nov 07

    A nova tentação da eugenia

    As afirmações racistas dos cientistas James Watson e Charles Murray deveriam disparar um sinal de alerta. Em sociedades hierarquizadas, é cômodo enxergar na suposta "fraqueza" do oprimido a causa da desigualdade. No Brasil, isso sempre foi o primeiro passo para ampliar a discriminação e exclusão

    Alexandre Machado Rosa

    O geneticista norte-americano James Watson, considerado pai da biologia molecular e quem desvendou a dupla hélice do DNA, afirmou recentemente, sem bases científicas, o mito racista de que os povos da África são menos inteligentes em comparação aos do hemisfério Norte. Sua declaração foi recebida com duras críticas pela maioria da intelectualidade internacional, o que o obrigou a escrever um artigo de retratação. Entretanto, suas desculpas tiveram caráter apenas formal, pois no mesmo artigo ele afirma: “Eu sempre defendi que nós devemos basear nossa visão do mundo no nosso conhecimento, nos fatos, e não naquilo que gostaríamos que fosse”.

    Dias depois, Charles Murray, cientista político norte-americano e autor do livro The Bell Curve (A Curva do Sino, Free Press, 1994), saiu na defesa das idéias de Watson. No seu livro, afirma que testes de QI (quoficiente de inteligência) apontavam que há diferenças entre raças, com brancos saindo-se em média melhor do que negros. Além de ressaltar a precariedade do testes de QI, que tentam quantificar a subjetividade da inteligência, não podemos considerar as teses de Watson e Murray como novas. Esta insistente defesa de diferenças entre a raça humana, tem reaparecido com certa rotina, tanto no debate científico quando na política

    Durante a campanha eleitoral deste ano na Suíça, a UDC (União Democrática do Centro, partido da direita nacionalista), utilizou em campanha um cartaz que representa uma ovelha negra sendo expulsa por ovelhas brancas. Transmitiu deliberadamente uma mensagem racista, num país que sempre reivindicou a defesa dos direitos humanos.

    No Brasil, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, reavivou velhas feridas históricas, ao declarar que é favorável ao aborto como forma de controle da violência e que as mulheres grávidas das favelas são “fabricas de marginais”. Por lançar declarações polêmicas e se referir às teses do livro Freakonomics, que segue a velha fórmula da antropologia criminal de Cesare Lombroso (1835-1909), Cabral pisou em terreno perigoso e colocou em risco seu histórico democrático. De quebra, fez coro com as declarações e ações racistas pelo mundo.

    Da crença nas habilidades "raciais" à tentativa de tornar o Brasil europeu

    A tentativa de explicar e classificar as diferenças entre culturas e povos foi uma tendência marcante do cientificismo e do positivismo no século 19. Primo de Charles Darwin e descobridor das impressões digitais humanas, o antropologista Francis Galton (1822 – 1911) cunhou o termo ideologia eugênica, em seu livro intitulado Inquires into human faculty, de 1883. Lecionou na universidade de Londres, realizou muitos estudos em conjunto com seu primo sobre antropologia, QI humano, doenças físicas e mentais possivelmente herdadas.

    Como descreve de forma brilhante Nancy Leys Stepan, em The Hour of Eugenics, a ação dos eugenistas na América Latina parte da aplicação e difusão dos conceitos de Galton afirmava que as habilidades naturais dos homens são derivadas por herança. O raciocínio eugênico argumenta que para obter "boas" raças de cachorro ou cavalos basta realizar uma seleção permanente de espécimes que possuem, por exemplo, um peculiar poder para correr. As características serão mantidas por gerações. Portanto, se mulheres de boa raça se casarem com homens de boa raça, poderemos obter boas raças em gerações seqüenciais. (Stepan, 1991)

    No Brasil a eugenia teve grande importância no pensamento hegemônico que fundou as bases do Estado moderno no final do século 19 e durante a primeira metade do século 20. Em certa medida, o movimento higienista e sanitarista, que teve Osvaldo Cruz (1872-1917) como um de seus principais defensores, foi incorporado oficialmente ao Estado em 1903. Nomeado pelo presidente Rodrigues Alves para a direção do serviço de saúde pública do Rio de Janeiro, seu pensamento e ordens deram suporte para o surgimento, em 1917, do pensamento eugênico no Brasil, por meio do médico Renato Kehl.

    O higienismo de Osvaldo Cruz foi ideologicamente incorporado pela eugenia de Kehl, incorpando e consolidando as teses racistas na superestrutura do Estado brasileiro, reforçando a brutal exclusão econômica promovida contra a população negra, mestiça e indígena em favor de um clareamento do fenótipo brasileiro e a conseqüente aproximação do ideal republicano europeu.

    Como se a favela, "criadouro de pobres e de vícios" fosse a causa de nossos males sociais

    A visão criminalizante usada por Sérgio Cabral para defender a legalização do aborto como forma de prevenir a criminalidade e a violência, promove uma confusão dentro do debate sobre o próprio aborto, que deve ser tratado no campo da saúde pública e como problema da sociedade brasileira.

    Outro personagem brasileiro que acaba fazendo eco numa proporção menor, é o médico Drauzio Varella. No dia 14.04.2007, publicou, na Folha de S.Paulo um artigo intitulado Tal qual avestruzes, no qual resgata uma resolução da World Scientific Academies, de 1993, que afirma: “A humanidade se aproxima de uma crise. Durante o tempo de duração da vida de nossos filhos, nosso objetivo deve ser o de atingir crescimento populacional igual a zero”.

    Em um dos artigos, intitulado Os filhos deste solo, ele aponta uma visão determinista, condena a pobreza à não reprodução e evoca conceitos elaborados por Malthus, como a teoria da taxa de reposição - quando afirma que Para manter constante a população de um país, cada casal deveria ter dois filhos. Um para substituir a mãe quando ela morrer, e outro para substituir o pai. É a chamada "taxa de reposição".

    O paradigma malthusiano [1] apresentou um bode expiatório - o crescimento ilimitado da população - para explicar a fome, as guerras e os vícios. Varella segue a mesma receita. Usa os gráficos de crescimento populacional brasileiro que apontam uma taxa média de filhos por família de 6,3 em 1950, contra 2,3 em 2000 (IBGE, 2000). Ele questiona a média e os dados dizendo: “No Brasil, há 40 anos, cada família tinha, em média, seis filhos. Hoje, as estatísticas mostram que estamos muito próximos do equilíbrio populacional, com pouco mais de dois filhos por mulher. Mas as estatísticas refletem a média, e as médias podem ser traiçoeiras...”.

    Em seu livro Cidade Febril, Sidney Chalhoub resume a visão da elite no auge do higienismo no Brasil "(...)os pobres passaram a representar perigo de contágio no sentido literal mesmo. Os intelectuais médicos grassavam nesta época como miasmas na putrefação, ou como economistas em tempo de inflação: analisavam a “realidade”, faziam seus diagnósticos, prescreviam a cura, e estavam sempre inabalavelmente convencidos de que os hábitos de moradia dos pobres eram nocivos à sociedade, e isto porque as habitações coletivas seriam focos de irradiação de epidemias, além de, naturalmente, terrenos férteis para a propagação de vícios de todos os tipos(...)".

    Incorporados à administração estatal, os preconceito perduram até os dias de hoje

    Quando se trata de formular políticas públicas de saúde, a favela é onde, supostamente, há um descontrole demográfico, apesar de as estatísticas oficiais negarem. “A Favela Jardim Edith, em São Paulo, é cheia de crianças. Construídas quase na rua, as casas de madeira e papelão ocupam toda a calçada de uma das avenidas mais movimentadas da cidade.” [2]

    Inspirados pelos ideais da medicina social, como aponta Michel Foucalt, e o papel da intelecualidade na formação da superestrura do Estado, como sugere Gramsci, os médicos foram incorporados à administração estatal e auxiliaram na legitimação científica e moral das ações. Como intelectuais e detentores dos conhecimentos das ciências naturais, não poderiam ser contestados em plena era da razão e da ciência. O que se seguiu foram ações que modificaram profundamente, além da paisagem urbana, também as relações do Estado com a população da nova sociedade em formação.

    No Brasil, as desigualdades sociais e o racismo possuem um ponto de partida semelhante. Isso possibilita uma investigação a partir da construção dos pressupostos eugenistas e higienistas que colocaram os negros e seus descententes em uma escala de inferioridade social. Para conduzir tal processo, o papel do pensamento biologizado difundido pelos intelectuais, principalmente os médicos, é sentido até os dias atuais.



    [1] Thomas Malthus trabalhou sob as “leis” da inevitabilidade biológica de uma superpopulação humana e afirma que a economia do século 19 não daria conta de prover os meios necessários para alimentar todos.

    [2] Ver em http://drauziovarella.ig.com.br

    Le Monde Diplomatique Brasil - Nov 07

    Os bilhões que nos tomaram

    Como a Desvinculação de Receitas da União (DRU) desvia todos os anos bilhões de reais da Saúde, Educação e Previdência e os transfere para os mercados financeiros. Radiografia de um mecanismo que a mídia interesseiramente esconde

    Evilásio Salvador

    O debate sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 50), que trata da prorrogação da CPMF, inclui um assunto que não tem merecido a devida atenção da imprensa. O mesmo instrumento legislativo que prorroga a CMPF também estende, até o final de 2011, a Desvinculação das Receitas da União (DRU). Ela permite que 20% da arrecadação tributária da União sejam alocados sem levar em conta os artigos da Constituição e as leis que vinculam receitas públicas a determinadas despesas, fundos ou órgãos. Na prática, os recursos são transferidos das políticas sociais para realização do superávit primário — destinado ao pagamento de juros e amortização da dívida.

    A vinculação de recursos para as políticas sociais é uma importante conquista da Constituição de 1988. A década de 1980 foi marcada pela luta contra a ditadura e pelas reivindicações e pressões dos trabalhadores e movimentos sociais. A convocação de uma Assembléia Constituinte, eleita em 1986, permitiu que diversas demandas de expansão dos direitos sociais e políticos fossem incorporadas à Carta Magna. Para que fossem efetivados na prática, surgiu a idéia da vinculação de receitas.

    Era uma forma de enfrentar a tradição fiscal perversa do Brasil, onde a aplicação dos recursos do orçamento público sempre priorizou a acumulação do capital, submetendo as políticas sociais à lógica econômica. No período da industrialização (1937-1980), por exemplo, os recursos do fundo previdenciário foram canalizados para investimentos nas empresas estatais e na construção da infra-estrutura no país. Vincular recursos significava, portanto, impedir esta prática, assegurando que parte da receita fosse obrigatoriamente destinada à área social e permitisse universalizar direitos importantes, como os ligados à Saúde e Educação.

    Os fundos sociais foram criados neste processo. Além disso, tinham um papel democratizador. [1] Buscou-se um modelo em que os recursos reservados para executar certas políticas fossem administrados por conselhos de composição paritária. Neles, representantes governamentais e não-governamentais somam-se para acompanhar e fiscalizar políticas públicas.

    Por terem recursos originados na cobrança de taxas ou contribuições especialmente criadas para alimentá-los, estes fundos são formados por fluxos financeiros como lucros, receitas brutas, faturamentos, folhas de pagamentos. Têm em comum uma relativa estabilidade na captação de recursos, deixando de depender de escolhas arbitrárias por parte do governo de plantão.

    Criada por recomendação do FMI, desvinculação pode completar 17 anos, se prorrogada pela PEC 50

    A desvinculação desses recursos, com a utilização de instrumentos como a DRU, caminha na direção oposta à das conquistas sociais da Constituição. Tudo começou nos peparativos para a adoção do Plano Real, no início dos anos 1990. A política fiscal foi, como se sabe, parte determinante das decisões macroeconômicas que deram sustentação ao Plano. Seguiu-se à risca as recomendações dos organismos multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI). Uma das estratégias utilizadas foi a criação de mecanismos de desvinculação orçamentária. O objetivo era realocar recursos dos fundos públicos para livre aplicação pelos condutores das políticas econômicas.

    Em 1993, os economistas formuladores do Plano Real, defendem, a pretexto de garantir o equilíbrio das contas públicas, a criação de um “Fundo Social de Emergência (FSE)”. Tal fundo acabou sendo instituído por meio da Emenda Constitucional de Revisão 01, de 1994, que permitiu desvincular 20% dos recursos arrecadados dos tributos, independentemente do seu destino orçamentário.

    A desvinculação prosseguiu, nos exercícios financeiros de 1994 e 1995, por meio do Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) [2]. Logo a seguir, veio a Desvinculação das Receitas da União (DRU) [3]. Instituída pela Emenda Constitucional 27, ela determinou a desvinculação de 20% da arrecadação de impostos e contribuições sociais até o final de 2003.

    Dando seqüência à mesma política fiscal do governo anterior, sob alegação de que a “economia brasileira ainda requeria cuidados”, a equipe econômica do primeiro mandato do presidente Lula seguiu a mesma trilha. A Emenda Constitucional 42 (reforma tributária) determinou a prorrogação da DRU até 2007. O que o Congresso discute hoje é estender mais uma vez este período, agora até 2011. Seriam, portanto, dezessete anos de descumprimento do que determina a sentido geral da Constituição.

    Alimentar o capital rentista, como recomendam os dogmas do capitalismo contemporâneo

    Na América Latina, os fundos "sociais" de emergência seguem recomendações do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Destinam-se a ações meramente emergenciais, temporárias, de combate à pobreza e para financiar os projetos e programas, públicos ou não-governamentais, destinados aos pobres “estruturais” e aos “novos pobres” afetados pelo ajuste econômico neoliberal. [4] A experiência brasileira mostrou, contudo, que o FSE não tinha nada de “social” e muito menos de “emergência”, pois o fundo e seus sucessores (FEF e DRU) assumem a função estratégica de desviar recursos da área social para o interior do orçamento fiscal à disposição do ministério da Fazenda para o equilíbrio das contas públicas, contribuindo para a “estabilidade econômica”, assegurando a “bolsa mercado” dos rentistas no Brasil.

    No capitalismo contemporâneo os juros da dívida pública pagos com recursos públicos, beneficiam os chamados “investidores institucionais”, um conceito que engloba fundos de pensão, fundos coletivos de aplicação, sociedades de seguros e bancos que administram sociedades de investimentos. O capital que se multiplica por meio de juros está localizado no centro das relações econômicas e sociais da atualidade. [5]

    No Brasil, segundo dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), os juros da dívida pública significaram a transferência de R$ 151,1 bilhões para o setor financeiro da economia. Estima-se que 80% destes juros sejam destinados a 20 mil famílias de rentistas [6], que vivem dos recursos do orçamento público brasileiro. Enquanto isso, os benefícios pagos no âmbito da seguridade social — incluindo o pagamento de aposentadoria, pensões e benefícios da assistência social — responderam por 20,2% do orçamento de 2006 (R$ 161,7 bilhões). Porém, destinam-se a um universo centenas de vezes maior, beneficiando 25 milhões de pessoas.

    Dezenas de bilhões retirados da Previdência, Saúde, Assistência Social e Educação

    A Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) cresceu quase cinco vezes em valores correntes, no período de 1994 a 2002. Em termos reais, praticamente triplicou. A soma de juros incidentes sobre a DLSP na última década equivale a um PIB médio no período. Para fazer frente a tamanha transferência de riqueza para os aplicadores em títulos públicos — principalmente o capital financeiro —, o governo teve de comprometer parcela considerável dos recursos que arrecada, deixando de realizar os gastos necessários nas políticas sociais. A partir de 1999, por força dos acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Brasil comprometeu-se a produzir elevados superávits primários na execução dos orçamentos anuais.

    As políticas sociais mais prejudicadas pelo mecanismo da DRU são as da Seguridade Social e da Educação. Vejamos alguns números. Após determinação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2005, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) passou a explicitar o montante de recursos desvinculados da Seguridade Social. Em 2005, foram desvinculados R$ 32 bilhões da Seguridade Social — portanto, das políticas de Saúde, Previdência e Assistência Social. Em 2006, os dados divulgados pela STN indicam que as receitas desviadas da Seguridade Social, por meio da DRU, alcançaram de R$ 33,8 bilhões. Portanto, em apenas dois anos foram retirados R$ 65,8 bilhões. Esses recursos entraram nos cofres públicos para serem aplicados nas políticas de Assistência Social, Previdência e Saúde, mas foram canalizados para o orçamento fiscal, principalmente a composição do superávit primário. Até setembro de 2007, já foram desviados das políticas da seguridade social, por meio da DRU, R$ 29 bilhões.

    Na Educação estima-se que os mecanismos de desvinculação de recursos (FSE, FEF e DRU) retiraram, em 12 anos e em valores corrigidos pela inflação, R$ 72 bilhões. [7] Apenas no período de vigência da DRU (2000 a 2007), R$ 45,8 bilhões deixaram de ser aplicados na Educação. Somente neste ano, o ministério da Educação (MEC) deixou de contar com R$ 7,1 bilhões. O mecanismo é muito simples: a Constituição determina que 18% dos recursos arrecadados em impostos federais sejam aplicados em Educação, mas esse valor é calculado após a retirada dos recursos da DRU. Por conseqüência, ao invés dos 18% previstos na Carta Magna são aplicados somente 13% na educação.

    Por meio da DRU, portanto, ocorre uma perversa alquimia, [8] que transforma os recursos destinados às políticas sociais em dinheiro usado para compor o superávit primário e, por conseqüência, pagar juros da dívida pública.

    Encerrar a DRU para recompor políticas sociais e assegurar transparência nas contas públicas

    Com aprovação da DRU, a partir de 2000, também não é mais possível à sociedade civil organizada, aos pesquisadores, enfim à população em geral, visualizar explicitamente os recursos que são desvinculados no orçamento. A DRU não está vinculada a nenhum fundo, ainda que somente contábil, como era o FEF. Essa regra impossibilita distinguir, na execução orçamentária, qual parcela de recursos é originária de impostos gerais, e qual é referente à desvinculação de recursos, já que ambas agora compõem a mesma fonte de Recursos Ordinários. Essa situação fere os princípios orçamentários da discriminação e da clareza. [9]

    Historicamente, os recursos fiscais no Brasil foram usados para subsidiar e financiar a acumulação de capital, enquanto os recursos contributivos, cobrados na folha de salários, financiavam o social. Ao contrário dos países que financiam seus Estados de Bem-Estar Social com recursos fiscais — em geral, impostos diretos —, o Brasil permanece com arrecadação tributária centrada em tributos indiretos, significando que os mais pobres pagam proporcionalmente mais tributos em relação à sua renda do que os mais ricos. Além disso, no passado houve a destinação de recursos dos fundos previdenciários para investimentos produtivos, priorizando o fomento de setores de infra-estrutura por meio de crédito subsidiado e, em geral, na contramão de assegurar solvência ao sistema do sistema previdenciário e da garantia dos interesses dos trabalhadores contribuintes.

    O Brasil não pode permanecer preso as amarras do ajuste fiscal-financeiro permanente. A subordinação do social ao econômico sempre foi a regra no país, e a estratégia de ajustamento dos gastos governamentais, a partir dos anos 1990, tem sido muito mais favorável aos rentistas e à financeirização da riqueza. Isso acontece em prejuízo da produção, do emprego e da renda nacional. Tudo isso torna urgente a garantia de recursos para as políticas sociais, assegurando as vinculações diretas entre o financiamento previsto na Constituição e sua aplicação nos gastos sociais. Nesta perspectivas a DRU não deveria ser renovada. Seu fim seria um bom começo para acabar com a enorme de transferência de renda que está em curso no Brasil, dos mais pobres, dos trabalhadores e dos setores produtivos em favor dos rentistas.


    [1] ROCHA, Paulo. Concepções dos fundos e seus impactos nas políticas sociais. In: MAGALHÃES JÚNIOR, José. TEIXEIRA, Ana Claudia (Org.). Fundos públicos e políticas sociais. São Paulo: Instituto Pólis, 2004 (publicações Pólis, 45) Anais do seminário “Fundos Públicos e Políticas Sociais”, Agosto de 2002, p. 85-92.

    [2] Emendas Constitucionais 10 e 17

    [3] A DRU apresenta algumas modificações em relação ao FSE, pois ela não afeta a base de cálculo das transferências a Estados, Distrito Federal e Municípios, nem a das aplicações em programa de financiamento ao setor produtivo das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Também não estão sujeitas à DRU: as contribuições sociais do empregador incidente sobre a folha de salários; as contribuições dos trabalhadores e dos demais segurados da previdência Social; a parte da CPMF destinada ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza; e a arrecadação do salário-educação.

    [4] Conforme SOARES, Laura. Ajuste neoliberal e desajuste social na América Latina. Petropólis: Vozes, 2001.

    [5] CHESNAIS, François. O capital portador de juros: acumulação, internacionalização, efeitos econômicos e políticos. In: CHESNAIS, François (org.). A finança mundializada. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p. 35-68.

    [6] Ver nesse sentido: POCHMANN, Marcio et al (Orgs). Os ricos no Brasil. São Paulo: Cortez, 2004.

    [7] De acordo com IWASSO, Simone. CAFARDO, Renata. O Estado de São Paulo, 1 de outubro de 2007.

    [8] BOSCHETTI, Ivanete. SALVADOR, Evilásio. Orçamento da seguridade social e política econômica: perversa alquimia. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, v. 87, 2006, p. 25-57

    [9] De acordo com PISCITELLI, Roberto et al. Contabilidade pública. 7ª edição. São Paulo: Atlas, 2002.p. 46-47: “O princípio da discriminação (...) preconiza a identificação de cada rubrica de receita e despesa, de modo que não figurem de forma englobada (...)”. E o princípio da clareza significa o óbvio. É a evidenciação da Contabilidade. “Por este princípio, dever-se-ia priorizar o interesse dos usuários das informações, sobretudo porque se está tratando de finanças públicas”.

    Agência Amazônia de Notícias - 04/12/07

    Americanos venderão água da Amazônia



    Água da região será vendida nos EUA em 2008; Brasil é alvo da hidropirataria na foz do rio Amazonas.

    RAY CUNHA
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    BRASÍLIA – A revista Veja desta semana traz uma pauta inquietante. No boxe O apelo exótico da selva, página 106, vinculado à matéria A guerra contra a água mineral, a revista afirma: a água mineral Equa é retirada do solo da Amazônia e será distribuída nos EUA a partir de abril de 2008. A Equa “é extraída de uma fonte no coração da Floresta Amazônica brasileira. Sua história começa com o americano Jeff Moat, que trabalhou durante quinze anos em Manaus, onde tinha uma firma de exportação de pescados. Dois anos atrás, de volta ao Brasil, ele teve a idéia de analisar amostras das águas amazônicas”, descreve o jornalista Paulo Neiva.

    agua_1.jpg
    Água da Amazônia está sendo levada para o exterior /SÉRGIO VALE

    “As análises feitas em laboratórios americanos da fonte da Equa mostram que essa é a água mineral mais pura do mundo”, atesta Jeff Moat.

    A Equa chegará ao mercado americano em abril do ano que vem, ao custo de US$ 8 a embalagem de 750 mililitros. O lançamento no Brasil está previsto para maio de 2009.

    Pergunta-se: essa água será engarrafada no Brasil? Como sairá do país para ser vendida nos Estados Unidos? O Brasil está vendendo ou dando essa água? A água é produto da Humanidade ou do país onde é extraída? Águas de rios internacionais pertencem a quem? Para construir hidrelétricas no rio Madeira o governo brasileiro não precisaria pedir permissão à Bolívia?

    Se água é um bem da Humanidade, por que a ONU (Organização das Nações Unidas) não cria um mercado internacional de água, para suprir países do Quarto Mundo, onde a população morre bebendo água suja, quando há? Por que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está providenciando água para os grandes agricultores na bacia do rio São Francisco, com a transposição do rio, enquanto a população pobre do Nordeste morre à míngua por falta de água potável?

    Publiquei, este ano, na minha coluna na Agência Amazônia um artigo provocativo, “Já é tempo de a Amazônia exportar água”, apenas para advertir para a denúncia do oceanógrafo Frederico Brandini ao site Amazônia.Org no dia 7 de julho de 2004. Na mesma data o jornal Gazeta do Povo, de Curitiba (PR), publicou matéria intitulada Navios roubam água do rio Amazonas.

    agua_4.jpgSegundo a matéria, após descarregar óleo cru nos portos da Amazônia, petroleiros do Oriente Médio abastecem seus tanques com até 250 milhões de litros de água, cada um, sem pagar qual centavo ao Brasil. Água é ouro no Oriente e na Europa (no Oriente, mais de 20 países sofrem crise gravíssima de água). Assim, a charmosa Perrier pode ser água do Amazonas. Na Arábia Saudita, a dessalinização custa US$ 1,5 por metro cúbico. A retirada da turbidez da água do Amazonas fica em torno de 0,30 cents de dólar. Um negócio extremamente lucrativo.

    A imprensa começou a chamar esse roubo de hidropirataria. Mas a falta de uma denúncia formal sobre o caso impede a Agência Nacional de Águas (Ana). A diretoria da Ana, responsável pela fiscalização dos recursos hídricos, sabe da hidropirataria. Até a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) conhece o assunto. Um relatório secreto da maçonaria também denuncia o roubo da água da Amazônia, que ocorre na foz do rio Amazonas, na altura do Amapá.

    A defesa das águas brasileiras está na Constituição Federal, no Artigo 20, que trata dos bens da União. Em seu Inciso III , a legislação determina que rios e quaisquer correntes de água no território nacional, inclusive o espaço do mar territorial, pertencem à União. Isso é complementado pela Lei 9.433/1997, que trata da Política Nacional de Recursos Hídricos, em seu Artigo I , Inciso II, que estabelece ser a água recurso limitado, dotado de valor econômico, e determina que o poder público seja responsável pela licença para uso dos recursos hídricos, “como derivação ou captação de parcela de água”.

    A ingerência estrangeira nos recursos naturais da Amazônia tem aumentado significativamente nos últimos anos. Seja por ação de empresas multinacionais, pesquisadores estrangeiros autônomos ou pelas missões religiosas internacionais. Mesmo com o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) ainda não foi possível conter os contrabandos e a interferência externa dentro da região.

    agua_2.jpgA hidropirataria

    A captação de água seria feita por petroleiros no rio Amazonas. A foz do rio, o maior do mundo, tem 320 quilômetros de extensão, na costa do Amapá, despejando no Oceano Atlântico pelo menos 200 mil metros cúbicos de água por segundo. Na foz, a profundidade média é em torno de 50 metros, o que suporta o trânsito de grandes cargueiros. O contrabando é facilitado pela ausência de fiscalização na área. Um navio petroleiro armazenaria o equivalente a meio dia de água utilizada pela cidade de Manaus, de 1,5 milhão de habitantes.

    Essa água, apesar de conter uma gama residual imensa e a maior parte de origem mineral, pode ser facilmente tratada. Para empresas engarrafadoras, tanto da Europa como do Oriente Médio, trabalhar com essa água, mesmo no estado bruto, representa uma grande economia. O custo por litro tratado é muito inferior aos processos de dessalinizar águas subterrâneas ou oceânicas, além de livrar-se do pagamento das altas taxas de utilização das águas dos rios europeus.

    As águas salinizadas estão presentes no subsolo de vários países do Oriente Médio, como Arábia Saudita, Kuwait e Israel. Eles, praticamente, só dispõem dessa fonte para seus abastecimentos. O procedimento de retirada do sal é feito por osmose reversa, extremamente caro. Na dessalinização são gastos US$ 1,50 por metro cúbico e US$ 0,30 no mesmo volume de água doce tratada.

    O avanço sobre as reservas hídricas do maior complexo ambiental do mundo, segundo os especialistas, pode ser o começo de um processo desastroso para a Amazônia. E isso surge num momento crítico, cujos esforços estão concentrados em reduzir a destruição da flora e da fauna.

    agua_3.jpgA Amazônia é considerada a grande reserva do planeta para os próximos mil anos. Pelo menos 12% da água doce de superfície, não congelada, se encontram no território amazônico. Dois terços do planeta são ocupados por oceanos, mares e rios. Porém somente 3% desse volume são de água doce. Um índice baixo, que se torna ainda menor se for excluído o percentual encontrado em estado sólido, como nas geleiras polares e nos cumes das grandes cordilheiras. Água doce em estado líquido representa menos de 1% do total disponível na Terra.

    Sob esse aspecto, a Amazônia se transforma em local estratégico. Mas a importância desse reduto natural poderá ser, num futuro próximo, sinônimo de riscos à soberania dos territórios panamazônicos. O que significa dizer que o Brasil seria alvo prioritário numa eventual tentativa de se internacionalizar esses recursos, como já ocorre no caso das patentes de produtos derivados de espécies amazônicas.

    Entre 1970 e 1995, a quantidade de água disponível para cada habitante do mundo caiu 37% em todo o mundo; atualmente, cerca de 1,4 bilhão de pessoas não têm acesso a água limpa. Segundo a Water World Vision, somente o rio Amazonas e o Congo podem ser qualificados como limpos.

    Guerra pela água

    Doutrina que vem se estabelecendo em círculos de debates internacionais sobre a existência de bens comuns - como água doce e florestas - a serem gerenciados pelas potências internacionais pode ser o embrião de futuras ingerências estrangeiras na Amazônia, avalia o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. Ele entende que o governo deveria criar o Ministério da Amazônia, com sede em Manaus. “É na medida em que o estado soberano administra os recursos naturais da Região Amazônica que toda e qualquer ameaça se reduz na mesma proporção” – analisa Guimarães.

    As Forças Armadas estão à míngua. "Nós consideramos que as nossas forças são apropriadas para a defesa da Amazônia num confronto regional.

    Com relação a uma ameaça de potência superior, vamos ter que adotar uma tática, uma estratégia que o Exército está treinando muito bem, que se chama estratégia da resistência", afirmou o almirante-de-esquadra Miguel Ângelo Davena. "Eu creio que seja do conhecimento de todos os brasileiros que as nossas forças estão carentes de reaparelhamento".

    Relatório de 2004, encomendado pelo Pentágono à Global Bussines Network, empresa especializada em tendências de negócios, baseada na Califórnia, e revelado pela jornalista Memélia Moreira aponta que o rio Amazonas será palco de guerra muito em breve por conta do acesso à água. Denúncias publicadas por esta agência dão conta que pesquisadores adentram na Amazônia brasileira pela Colômbia para coletar amostras de água dos rios Negro, Solimões, Juruá e outros. Eles também levam essências, fungos e outros microorganismos da Amazônia para estudá-los em laboratórios dos EUA e Europa.