José Luis Fiori, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) comenta em entrevista na Carta Maior, 06-02-2008, conceitos do seu livro O poder global e a nova geopolítica das nações (São Paulo: Boitempo, 2007). A entrevista foi realizada por Flávio Aguiar. Fiori fala ainda das idéias desenvolvidas no livro em uma série de artigos publicados no sítio da Carta Maior.
Eis a entrevista.
No seu livro “O poder global” a relação entre a acumulação do poder territorial - quase sempre através da guerra - e da riqueza capitalista é permanente e inevitável, e se transformou numa marca do “milagre europeu”, a partir do século XVI, mas com raízes que remontam ao século XII da era cristã. Mesmo o mais otimista dos seus leitores reconheceria que sempre “estamos em guerra”. Mas um leitor mais cético perguntaria: “sim, mas resta sabermos hoje no meio de que guerra estamos”? Mais exatamente, no meio de que guerra ou de que guerras estamos?
Segundo cálculo de alguns historiadores, o número das guerras cresceu sistematicamente através dos últimos séculos, e foi maior no século XX, do que em qualquer outro tempo. Entre 1400 e 1990, houve cerca de 1000 guerras no mundo, e elas seguem se multiplicando. Mas do meu ponto de vista, este não é o ponto essencial do argumento, quando se pensa na dinâmica do sistema mundial. Trata-se de uma realidade terrível, mas do ponto de vista do sistema criado pela expansão conquistadora do poder e do capital europeu, a Guerra cumpriu um papel decisivo. Na verdade, ela promoveu durante todo este tempo, uma espécie de “destruição integradora” de territórios e populações. Primeiro, na Europa, e depois, até o século XX, do resto do mundo.
Além disto, dentro deste sistema, a “preparação para a guerra” cumpre um outro papel, mais importante do que a própria guerra como fator dinamizador, a verdadeira mola mestra que moveu através do tempo o processo de competição e a acumulação do poder dos príncipes e dos estados nacionais que sempre competiram e lutaram pela expansão do seu poder, dentro e fora dos seus territórios “nacionais”, na busca contínua de um poder global que nunca lograram alcançar. Esta mesma competição também move a “ponta’ do progresso tecnológico e cumpre um papel decisivo na acumulação da riqueza das nações. Neste sentido, se pode dizer que o sistema mundial vive em meio à uma guerra contínua, e neste momento segue sendo movido, muito mais do que pela Guerra do Iraque, por exemplo, pela preparação para a guerra – conquistadora ou defensiva, não importa – por parte das grandes potencias, e dos principais estados nacionais do sistema..
Ao final do livro o sr. sugere que as presentes “sublevações” populares na América Latina têm a ver com a própria expansão do capitalismo norte-americano e seu presente “idílio combinatório” com a expansão chinesa. Dá para desenvolver mais essa idéia?
Na verdade, o que digo é que ocorreu na América do Sul, uma surpreendente convergência, no início do século XXI, entre dois processos autônomos, mas que vem tendo uma resultante virtuosa do ponto de vista das forças progressistas e de esquerda que lutam por maior igualdade social e autonomia nacional. Do ponto de vista interno do continente, a década neoliberal dos anos 90 não entregou o que prometeu e provocou uma reação popular e eleitoral que varreu os governos conservadores, através de eleições democráticas, em quase todos os países da América do Sul.
Em 2001, a maioria dos analistas previa uma desaceleração da economia mundial e neste caso, uma vez mais o que tocaria a estes novos governos progressistas ou de esquerda seriam obrigados uma vez mais – como quase sempre na história do século XX - a se desgastarem rapidamente administrando a crise deixada pelos governos anteriores. Mas depois de 2001, ao contrário de uma desaceleração econômica, o que se assistiu foi uma fortíssima aceleração da economia mundial, liderada pelo eixo sino-americano, promovendo uma retomada ou aumento do crescimento econômico em quase todo o mundo. Este tufão econômico atingiu também a América do Sul, no exato momento em que se dava sua “virada à esquerda”, o que permitiu alguns países como Argentina e Venezuela saírem de crises gravíssimas, mas ao mesmo tempo colocou um problema absolutamente inusitado na história da América do Sul e na agenda da esquerda mundial: o que e como fazer em condições de sucesso econômico capitalista?
Além disto, esta rapidíssima expansão da economia mundial, e em particular da econômica asiática, junto com a globalização do sistema inter-estatal, que se se acelera depois do fim da Guerra Fria, criaram uma situação mundial nova, gerando uma forte pressão competitiva - política e econômica – a nível de todo o sistema mundial, incluindo a América do Sul que está sendo obrigada a redesenhar completamente sua inserção política e econômica dentro do sistema mundial. Por isto já dissemos, num artigo recente, que do ponto de vista das “longas durações históricas” acabou definitivamente a “adolescência” geopolítica e geo-econômica da América do Sul.
O sr. diz que o Brasil e a África do Sul, ao contrário da China e da Índia, não são potências militares nem têm vocações hegemônicas por várias razões. É possível então desenhá-los como partes de uma “frente comum”, como freqüentemente se faz em relação à ordem ou desordem do comércio mundial?
Do meu ponto de vista, a China e a Índia, depois dos anos 90, se projetaram dentro do sistema mundial como potências econômicas e militares, têm claras pretensões hegemônicas nas suas respectivas regiões, e ocupam hoje uma posição geopolítica global absolutamente assimétrica com relação ao Brasil e à África do Sul. Apesar disto, o Brasil, a África do Sul e a Índia - e mesmo a China, ainda que seja por pouco tempo mais – ainda ocupam a posição comum dos “países ascendentes”, que sempre reinvindicam mudanças nas regras de “gestão” do sistema mundial, e na sua distribuição hierárquica e desigual do poder e da riqueza. Por isto, neste momento, compartilham uma agenda reformista com relação ao Sistema das Nações Unidas, e à formação do seu Conselho de Segurança.
Da mesma forma como compartem posições multilaterais e liberalizantes, em matéria de comércio internacional, na Rodada de Doha, formando o G20, dentro da Organização Mundial do Comércio. Nestas questões políticas e econômicas, entretanto, pode-se prever um afastamento progressivo da China, que já vem atuando, em vários momentos, com a postura de quem comparte, e não de quem questiona a atual configuração de poder mundial. Daqui para frente, seu comportamento será cada vez mais o de uma Grande Potência, como todas as que fazem, ou fizeram, parte do “círculo dirigente” do sistema mundial. E por isto, é de se esperar uma maior convergência de posições entre a Índia, a África do Sul e o Brasil, do que com a China. Mas mesmo com relação à Índia, as convergências políticas deverão ser tópicas, porque o Brasil e a África do Sul devem se manter fiéis ao “idealismo pragmático” de suas atuais políticas externas. Nenhum dos dois demonstra vontade, nem dispõe das ferramentas de poder e dos desafios indispensáveis – no momento - ao exercício da realpolitik, própria das Grandes Potências.
O sr. olha para o futuro. O que o sr. vê?
Vejo um universo em expansão, que é o sistema mundial criado a partir da Europa, e do longo século XVI, de que fala o historiador francês Fernand Braudel. Com sua permanente preparação para as guerras e suas crises econômicas crônicas. Não vejo nenhuma “crise terminal” nem do sistema mundial, nem do poder americano que seguirá competindo pelo poder global, a despeito da ilusão unilateralista da década de 90. Neste sentido, o que estamos assistindo e seguiremos assistindo é a continuação do movimento expansivo de um sistema que sempre foi liderado pela competição e que precisa da própria competição entre as potencias para seguir se expandindo. Não acredito em hegemonias benevolentes que durem, nem em pazes perpétuas, nem muito menos numa economia mundial equilibrada. Guerras e crises não significam o fim de um sistema que se expande em grande medida, movido pelas próprias guerras e crises.
Nós ainda vivemos e seguiremos vivendo dentro de um universo formado por um conjunto de unidades territoriais, monetárias e econômicas, hierarquizadas e competitivas, que são a base material do “sistema político e econômico mundial” que sempre foi, a um só tempo, nacional e internacional. Dentro deste “sistema mundial moderno”, as relações entre o poder político e econômico foram sempre muito estreitas, e nunca houve paz duradoura ou equilíbrio econômico estável. Pelo contrário, não só as guerras e as crises econômicas se reproduzem e expandem através da história, como além disto, parecem cumprir um papel mais importante do que as “hegemonias internacionais”, na ordenação hierárquica do próprio sistema.
Neste novo patamar expansivo deste universo, como eu disse no Prefácio do livro Poder Global “está cada vez mais claro que o centro nevrálgico da nova competição geopolítica mundial envolverá pelo menos duas potências – Estados Unidos e China – que são cada vez mais complementares do ponto de vista econômico e financeiro, e que hoje já são indispensáveis para o funcionamento expansivo da economia mundial. Além disto, o novo eixo da geopolítica mundial, deve envolver cada vez mais, três estados “continentais” - os Estados Unidos, a Rússia e a China – que detém em conjunto, cerca de um quarto da superfície territorial do mundo, e mais de um terço da população global. Neste momento, existem várias hipóteses sobre o fim do “sistema mundial moderno”, mas o mais provável é que antes deste apocalipse, o sistema mundial ainda viva pelo menos mais uma longa rodada, de ajustes, conquistas e guerras, como na velha geopolítica inaugurada pela Paz de Westphalia. Parece que ainda não soou a hora final do “sistema mundial moderno”, apesar de que suas transformações estruturais em curso possam estar criando uma situação de complicada “saturação sistêmica”.