"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 08/02/08

'O poder global e a nova geopolítica das nações’. Entrevista com José Luis Fiori


José Luis Fiori, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) comenta em entrevista na Carta Maior, 06-02-2008, conceitos do seu livro O poder global e a nova geopolítica das nações (São Paulo: Boitempo, 2007). A entrevista foi realizada por Flávio Aguiar. Fiori fala ainda das idéias desenvolvidas no livro em uma série de artigos publicados no sítio da Carta Maior.

Eis a entrevista.

No seu livro “O poder global” a relação entre a acumulação do poder territorial - quase sempre através da guerra - e da riqueza capitalista é permanente e inevitável, e se transformou numa marca do “milagre europeu”, a partir do século XVI, mas com raízes que remontam ao século XII da era cristã. Mesmo o mais otimista dos seus leitores reconheceria que sempre “estamos em guerra”. Mas um leitor mais cético perguntaria: “sim, mas resta sabermos hoje no meio de que guerra estamos”? Mais exatamente, no meio de que guerra ou de que guerras estamos?

Segundo cálculo de alguns historiadores, o número das guerras cresceu sistematicamente através dos últimos séculos, e foi maior no século XX, do que em qualquer outro tempo. Entre 1400 e 1990, houve cerca de 1000 guerras no mundo, e elas seguem se multiplicando. Mas do meu ponto de vista, este não é o ponto essencial do argumento, quando se pensa na dinâmica do sistema mundial. Trata-se de uma realidade terrível, mas do ponto de vista do sistema criado pela expansão conquistadora do poder e do capital europeu, a Guerra cumpriu um papel decisivo. Na verdade, ela promoveu durante todo este tempo, uma espécie de “destruição integradora” de territórios e populações. Primeiro, na Europa, e depois, até o século XX, do resto do mundo.

Além disto, dentro deste sistema, a “preparação para a guerra” cumpre um outro papel, mais importante do que a própria guerra como fator dinamizador, a verdadeira mola mestra que moveu através do tempo o processo de competição e a acumulação do poder dos príncipes e dos estados nacionais que sempre competiram e lutaram pela expansão do seu poder, dentro e fora dos seus territórios “nacionais”, na busca contínua de um poder global que nunca lograram alcançar. Esta mesma competição também move a “ponta’ do progresso tecnológico e cumpre um papel decisivo na acumulação da riqueza das nações. Neste sentido, se pode dizer que o sistema mundial vive em meio à uma guerra contínua, e neste momento segue sendo movido, muito mais do que pela Guerra do Iraque, por exemplo, pela preparação para a guerra – conquistadora ou defensiva, não importa – por parte das grandes potencias, e dos principais estados nacionais do sistema..

Ao final do livro o sr. sugere que as presentes “sublevações” populares na América Latina têm a ver com a própria expansão do capitalismo norte-americano e seu presente “idílio combinatório” com a expansão chinesa. Dá para desenvolver mais essa idéia?

Na verdade, o que digo é que ocorreu na América do Sul, uma surpreendente convergência, no início do século XXI, entre dois processos autônomos, mas que vem tendo uma resultante virtuosa do ponto de vista das forças progressistas e de esquerda que lutam por maior igualdade social e autonomia nacional. Do ponto de vista interno do continente, a década neoliberal dos anos 90 não entregou o que prometeu e provocou uma reação popular e eleitoral que varreu os governos conservadores, através de eleições democráticas, em quase todos os países da América do Sul.

Em 2001, a maioria dos analistas previa uma desaceleração da economia mundial e neste caso, uma vez mais o que tocaria a estes novos governos progressistas ou de esquerda seriam obrigados uma vez mais – como quase sempre na história do século XX - a se desgastarem rapidamente administrando a crise deixada pelos governos anteriores. Mas depois de 2001, ao contrário de uma desaceleração econômica, o que se assistiu foi uma fortíssima aceleração da economia mundial, liderada pelo eixo sino-americano, promovendo uma retomada ou aumento do crescimento econômico em quase todo o mundo. Este tufão econômico atingiu também a América do Sul, no exato momento em que se dava sua “virada à esquerda”, o que permitiu alguns países como Argentina e Venezuela saírem de crises gravíssimas, mas ao mesmo tempo colocou um problema absolutamente inusitado na história da América do Sul e na agenda da esquerda mundial: o que e como fazer em condições de sucesso econômico capitalista?

Além disto, esta rapidíssima expansão da economia mundial, e em particular da econômica asiática, junto com a globalização do sistema inter-estatal, que se se acelera depois do fim da Guerra Fria, criaram uma situação mundial nova, gerando uma forte pressão competitiva - política e econômica – a nível de todo o sistema mundial, incluindo a América do Sul que está sendo obrigada a redesenhar completamente sua inserção política e econômica dentro do sistema mundial. Por isto já dissemos, num artigo recente, que do ponto de vista das “longas durações históricas” acabou definitivamente a “adolescência” geopolítica e geo-econômica da América do Sul.

O sr. diz que o Brasil e a África do Sul, ao contrário da China e da Índia, não são potências militares nem têm vocações hegemônicas por várias razões. É possível então desenhá-los como partes de uma “frente comum”, como freqüentemente se faz em relação à ordem ou desordem do comércio mundial?

Do meu ponto de vista, a China e a Índia, depois dos anos 90, se projetaram dentro do sistema mundial como potências econômicas e militares, têm claras pretensões hegemônicas nas suas respectivas regiões, e ocupam hoje uma posição geopolítica global absolutamente assimétrica com relação ao Brasil e à África do Sul. Apesar disto, o Brasil, a África do Sul e a Índia - e mesmo a China, ainda que seja por pouco tempo mais – ainda ocupam a posição comum dos “países ascendentes”, que sempre reinvindicam mudanças nas regras de “gestão” do sistema mundial, e na sua distribuição hierárquica e desigual do poder e da riqueza. Por isto, neste momento, compartilham uma agenda reformista com relação ao Sistema das Nações Unidas, e à formação do seu Conselho de Segurança.

Da mesma forma como compartem posições multilaterais e liberalizantes, em matéria de comércio internacional, na Rodada de Doha, formando o G20, dentro da Organização Mundial do Comércio. Nestas questões políticas e econômicas, entretanto, pode-se prever um afastamento progressivo da China, que já vem atuando, em vários momentos, com a postura de quem comparte, e não de quem questiona a atual configuração de poder mundial. Daqui para frente, seu comportamento será cada vez mais o de uma Grande Potência, como todas as que fazem, ou fizeram, parte do “círculo dirigente” do sistema mundial. E por isto, é de se esperar uma maior convergência de posições entre a Índia, a África do Sul e o Brasil, do que com a China. Mas mesmo com relação à Índia, as convergências políticas deverão ser tópicas, porque o Brasil e a África do Sul devem se manter fiéis ao “idealismo pragmático” de suas atuais políticas externas. Nenhum dos dois demonstra vontade, nem dispõe das ferramentas de poder e dos desafios indispensáveis – no momento - ao exercício da realpolitik, própria das Grandes Potências.

O sr. olha para o futuro. O que o sr. vê?

Vejo um universo em expansão, que é o sistema mundial criado a partir da Europa, e do longo século XVI, de que fala o historiador francês Fernand Braudel. Com sua permanente preparação para as guerras e suas crises econômicas crônicas. Não vejo nenhuma “crise terminal” nem do sistema mundial, nem do poder americano que seguirá competindo pelo poder global, a despeito da ilusão unilateralista da década de 90. Neste sentido, o que estamos assistindo e seguiremos assistindo é a continuação do movimento expansivo de um sistema que sempre foi liderado pela competição e que precisa da própria competição entre as potencias para seguir se expandindo. Não acredito em hegemonias benevolentes que durem, nem em pazes perpétuas, nem muito menos numa economia mundial equilibrada. Guerras e crises não significam o fim de um sistema que se expande em grande medida, movido pelas próprias guerras e crises.

Nós ainda vivemos e seguiremos vivendo dentro de um universo formado por um conjunto de unidades territoriais, monetárias e econômicas, hierarquizadas e competitivas, que são a base material do “sistema político e econômico mundial” que sempre foi, a um só tempo, nacional e internacional. Dentro deste “sistema mundial moderno”, as relações entre o poder político e econômico foram sempre muito estreitas, e nunca houve paz duradoura ou equilíbrio econômico estável. Pelo contrário, não só as guerras e as crises econômicas se reproduzem e expandem através da história, como além disto, parecem cumprir um papel mais importante do que as “hegemonias internacionais”, na ordenação hierárquica do próprio sistema.

Neste novo patamar expansivo deste universo, como eu disse no Prefácio do livro Poder Global “está cada vez mais claro que o centro nevrálgico da nova competição geopolítica mundial envolverá pelo menos duas potências – Estados Unidos e China – que são cada vez mais complementares do ponto de vista econômico e financeiro, e que hoje já são indispensáveis para o funcionamento expansivo da economia mundial. Além disto, o novo eixo da geopolítica mundial, deve envolver cada vez mais, três estados “continentais” - os Estados Unidos, a Rússia e a China – que detém em conjunto, cerca de um quarto da superfície territorial do mundo, e mais de um terço da população global. Neste momento, existem várias hipóteses sobre o fim do “sistema mundial moderno”, mas o mais provável é que antes deste apocalipse, o sistema mundial ainda viva pelo menos mais uma longa rodada, de ajustes, conquistas e guerras, como na velha geopolítica inaugurada pela Paz de Westphalia. Parece que ainda não soou a hora final do “sistema mundial moderno”, apesar de que suas transformações estruturais em curso possam estar criando uma situação de complicada “saturação sistêmica”.

Instituto Humanitas Unisinos - 08/02/08

Milhares de camponeses mexicanos protestam contra Acordo de Livre Comércio

Milhares de camponeses a pé, em tratores, em caminhões e com reboques que carregavam vacas e cavalos tomaram, no dia 31 de janeiro, o centro da capital do México, numa mobilização multitudinária para protestar contra o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) assinado por México, Estados Unidos e Canadá, e contra o fim da proteção tarifária aos produtos do setor agropecuário desde 1º de janeiro passado. As informações são do El País, 01-02-2008, e foram traduzidas pelo Cepat.

Os manifestantes confluíram à capital mexicana procedentes de diversos Estados, convocados por sindicatos e organizações agrárias sob a consigna “Sem milho não há país”.

Os manifestantes exigem a renegociação do capítulo agrícola do Nafta. O tratado foi assinado em dezembro de 1992 e entrou em vigor de maneira progressiva em janeiro de 1994. A entrada sem taxas de importação de produtos provenientes dos Estados Unidos, como arroz, milho, aveia, gengibre, açafrão e trigo, e a importação de carne, provocaram o protesto dos produtores mexicanos, que reclamam salvaguardas comerciais.

A entrada no México a tarifa zero de grandes quantidades de milho, produto básico na dieta dos setores populares, representa um duro golpe para o setor agrário. Diante dos riscos que o Nafta entranhava para o México no capítulo agrário, o Governo federal prometeu medidas de apoio ao campo e reiterou os grandes benefícios acarretados pelo Nafta com os Estados Unidos. Mas as promessas não se cumpriram.

Os alimentos são cada dia mais caros, a produção é insuficiente e o abastecimento dos setores mais pobres está em risco diante da volatilidade dos mercados internacionais. O campo mexicano vive uma situação de abandono e seus habitantes não têm opção melhor que a emigração ilegal para o país vizinho do Norte. Este círculo vicioso despovoou extensas regiões do país.

Esta gigantesca manifestação só surpreendeu o governo - adianta reportagem do jornal argentino Página/12, 01-02-2008 -, que sistematicamente se negou a renegociar o capítulo do Nafta que, a partir de 1º de janeiro deste ano, eliminou totalmente as barreiras tarifárias para as importações de milho, feijão, leite e açúcar. Afinal de contas, os Estados Unidos e o Canadá não estão dispostos a fazê-lo, argumenta o governo mexicano.

O certo é que quatro governos consecutivos desperdiçaram 14 anos para fazer algo que garantisse a competitividade dos produtores mexicanos e os protegesse das práticas desleais norte-americanas. Em vez disso, terminaram por desmantelar o pouco de rentabilidade que restava ao campo. Sete anos dos últimos dois governos priistas, sete dos primeiros dois governos panistas. Responsabilidade plenamente compartilhada. Não há o que fazer e o sabem. Por isso, a administração de Felipe Calderón optou pela retórica e sua reação se limitou a vangloriar-se das vantagens do Nafta que, segundo ele, significou maiores exportações agrícolas, “cinco vezes mais que em 1994”, segundo Calderón.

Mas a realidade desmente a todos: entre 1995 e 2007, a superfície semeada no país acarretou uma diminuição de 12,6%; a superfície colhida caiu 10%; o rendimento por hectare aumentou 28%; a produção dos principais cultivos de grãos e oleaginosas cresceu 25,3% e a importação, 114%, enquanto que a exportação diminuiu 31%. Em 1995, 87,3% do consumo aparente de milho no México foi coberto com produção nacional; em 2007, essa proporção caiu para 75%. Nos demais grãos é igual ou pior no mesmo período: aumento de 238% na importação de feijão, 120% de arroz, 217% de trigo, e assim por diante com a soja, sorgo, cevada e semente de algodão.

Os Estados Unidos noticiaram que durante o último ano fiscal (outubro de 2006 a setembro de 2007), o México importou deste país 1886 milhões de dólares de grãos forrageiros (fundamentalmente milho e um pouco de sorgo), o que representou 65% a mais que no ano anterior e 93% acima de 2003. Em 2006, 10,7 milhões de toneladas importadas dos Estados Unidos cobriram 33% do consumo nacional.

E agora que não há barreiras, nos Estados Unidos não desaparecem as barreiras não tarifárias e medidas antidumping, além dos fortes subsídios já existentes para seus produtores e um elaborado sistema de apoios financeiros da banca comercial para a exportação. Diante disso, o governo de Calderón balbucia e o secretário da Agricultura – cuja renúncia também é exigida pelos partidos políticos de oposição – apenas promete alguns subsídios para alimentos de animais e ajuda para alguns produtores, porque, segundo ele, os efeitos negativos do Nafta sobre o milho e o trigo serão compensados pelos preços maiores no mercado internacional diante da maior demanda norte-americana por etanol.

Segundo os manifestantes, o Nafta foi responsável pela emigração para os Estados Unidos de pelo menos cinco milhões de mexicanos e por altíssimos níveis de pobreza para 75% da população.

Instituto Humanitas Unisinos - 08/02/08

O aquecimento do planeta produz crescente ‘desertificação’ dos oceanos

Em dez anos, os “desertos” oceânicos ganharam 6,6 milhões de km2. O dado faz parte de um estudo que utilizou imagens de satélite para realizar um mapeamento atualizado da progressão dos “desertos” marítimos. A desertificação dos oceanos terá um impacto sobre os recursos pesqueiros, mas também sobre a capacidade dos oceanos de absorver o dióxido de carbono (CO2), observa o estudo.

Segue na íntegra matéria de Stéphane Foucart publicada no Le Monde, 05-02-2008. A tradução é do Cepat.

Em terra firme, os desertos podem ser vistos a olho nu. No mar, o problema é completamente outro: faz-se necessário ter a ajuda de um satélite capaz de ver a “cor” do oceano. Utilizando imagens do SeaWiFS (Sea-viewing Wide Field-of-view Sensor), em órbita desde 1997, os oceanógrafos coordenados por Jeffrey Polovina (National Oceanic and Atmospheric Administration, NOAA) mapearam os grandes desertos oceânicos e, sobretudo, chegaram a determinar a evolução nos últimos dez anos.

Seus trabalhos, que irão aparecer na revista Geophysical Research Letters (FRL), mostram uma progressão rápida das zonas biologicamente menos ativas. Desde 1998, esses “desertos” ganharam cerca de 6,6 milhões de km2, ou seja, doze vezes a superfície da França metropolitana. Sob a influência da mudança climática em curso, a expansão das zonas estéreis do oceano está prevista em teoria. Mas a cadência observada é “consideravelmente superior às previsões dos modelos recentes”, escrevem os pesquisadores.

No mar como sobre as terras imersas, o deserto é um espaço privado de vegetais fotossintéticos. Os pesquisadores mapearam as zonas em que a quantidade de clorofila – portanto, de micro-algas – é muito baixa. A superfície dessas zonas aumenta em quatro bacias: Atlântico norte e sul, Pacífico norte e sul. O Atlântico norte é o mais afetado com um crescimento médio de seus desertos de 8,3% por ano. O Oceano Índico parece relativamente poupado.

Como se explica esse fenômeno? Os pesquisadores chegaram a isso relacionando a temperatura das águas da superfície. Quanto mais aumenta, menor é a atividade fotossintética: quando os leitos superiores do oceano – aqueles que se beneficiam da luz do sol – são mais quentes, elas tendem menos a se misturar com as águas profundas, que são frias.

Ora, essa mistura é necessária para o crescimento do plâncton vegetal porque são as águas profundas que, levadas pelas correntes marinhas, levam à superfície os nutrientes indispensáveis para o crescimento do fitoplâncton. Outros fenômenos também podem ser invocados, como o afrouxamento das correntes marinhas, dado ao afluxo de água doce nas latitudes médias e altas.

As principais explicações levam à mudança climática em curso. “É ainda impossível afirmar que a tendência que observamos nos últimos dez anos se deve integralmente ao aquecimento climático, nem que ela vai continuar no futuro”, precisa Mélanie Abécassis (Universidade do Havaí, Honolulu), co-autora desses trabalhos. Os modelos que simulam o aquecimento global prevêem uma expansão dos desertos oceânicos “dez a vinte vezes menos rápido que aqueles mostrados pelas observações”, acrescenta.

Duas conclusões são, pois, possíveis: ou os modelos subestimam consideravelmente os efeitos da mudança climática sobre a biologia marinha; ou uma parte do fenômeno provém de outros fatores. É possível que a recente expansão seja, ao menos em parte, causada por ciclos decenais ainda não descritos pelos cientistas. Entretanto, um índice justifica uma solução ligada principalmente ao aquecimento. “As bacias sujeitas a um empobrecimento de suas águas são todos os quatro submetidos a pressões (isto é, a restrições externas) diferentes, portanto parecem seguir a mesma tendência”, observa Mélanie Abécassis.

Resolver a questão tem certa importância: a desertificação dos oceanos terá um impacto sobre os recursos haliêuticos, mas também sobre a capacidade dos oceanos de absorver o dióxido de carbono (CO2). Ao continuarem, as micro-algas captam quantidades consideráveis de CO2 atmosférico.

Seu rápido declínio poderia, portanto, levar os climatologistas a reverem para cima suas previsões de aumento da temperatura média para o fim do século.

Instituto Humanitas Unisinos - 08/02/08

Cientistas se questionam sobre o interesse ecológico dos agrocombustíveis

A contribuição dos agrocombustíveis para estancar o aquecimento global pode não ser tão grande quanto se propagandeia mundo afora. Essa é uma das conclusões do Seminário sobre “Agrocombustíveis e desenvolvimento sustentável”, realizado nos dias 28 e 29 de janeiro, em Grenobla, na França. Em alguns casos pode ser trocar seis por meia dúzia. Pior, os impactos ambientais e sociais não são nada desprezíveis.

Diante dos limites, “o melhor meio é de fato diminuir o consumo de energia”, resumiu Patrick Criqui, da Universidade de Grenoble, e um dos participantes do Seminário. Segue a íntegra de matéria de Hervé Kempf publicada no Le Monde, 02-02-2008. A tradução é do Cepat.

Como foi possível se comprometer tão rapidamente com a produção de agrocombustíveis? Esta é a pergunta que se fizeram, um pouco confusos, cerca de 50 pesquisadores e especialistas que participaram de um seminário sobre “Agrocombustíveis e desenvolvimento sustentável”, organizado em Grenoble pelo serviço de pesquisa do Ministério da Ecologia, nos dias 28 e 29 de janeiro.

Em 2003, os principais países ocidentais comprometeram-se com a elaboração de ambiciosos planos de desenvolvimento dos agrocombustíveis. Desde então, sucederam-se estudos que, no essencial, desmentiram o interesse ambiental. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a ONU, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) e a Câmara dos Comuns britânica produziram relatórios críticos, assim como numerosos artigos científicos.

“Os estudos de balanço energético dos trâmites apresentam enormes diferenças”, sublinhou Jean-Christophe Bureau, do Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica (INRA). Vai-se assim de um ganho de onze unidades de energia produzidas para um consumo na cadeia de produção de agrocombustíveis, a uma perda de seis unidades! “A análise global desses estudos”, prosseguiu Bureau, “leva à conclusão de que o custo da tonelada de dejetos de CO2 poupada (pela substituição de hidrocarburantes de origem fóssil) é bem superior ao que é recomendado”. Atinge 330 euros para o etanol de origem vegetal, quando o preço de referência na França é de 25 euros.

O impacto ambiental do desenvolvimento projetado dos agrocombustíveis é notável. Na Europa, se faria pela cultura dos pousios. “Ora, numerosas espécies de plantas ou de pássaros já estão em situação precária. As medidas de proteção beneficiaram em muito os pousios”, indica Serge Muller, da Universidade de Metz. “O desenvolvimento dos agrocombustíveis é incompatível com o empenho internacional que levou a França a propor o estancamento da erosão da biodiversidade em 2010”.

Resultados surpreendentes apareceram. Assim, em razão de uma má combustão, alguns agrocombustíveis poderão levar a um aumento das emissões de poluentes atmosféricos, como o protóxido de azoto. Igualmente, pelo fato de que a colza absorve mal o adubo azotado, seu desenvolvimento em cultura energética corre o risco de provocar um aumento da poluição da água.

Quanto aos agrocombustíveis nos países tropicais, se apresentarem rendimentos energéticos bem melhores (especialmente a cana-de-açúcar), seu desenvolvimento se produz em parte pelo desmatamento. A concorrência com as culturas alimentares pode também ser prejudicial para os mais pobres, ao jogar os preços dos alimentos para cima. Ao contrário, quando bem feita, a utilização da biomassa poderia fornecer empregos para os camponeses do Sul, que estão substancialmente em falta, sublinhou o economista Ignacy Sachs.

De fato, o desenvolvimento dos agrocombustíveis foi amplamente motivado pela vontade de sustentar os produtores de cereais, mal das pernas nos dois lados do Atlântico devido à diminuição das subvenções. “Quando, em 2003, foi tomada na França de lançar o plano”, disse Claude Roy, coordenador interministerial para a biomassa, “não medimos todos os impactos sobre os mercados agrícolas e sobre a biodiversidade. Mas essas moléculas também são úteis para a química: a verdade lógica é ir ao encontro da química verde”.

Conclui-se que, no que diz respeito à prevenção da mudança climática, os agrocombustíveis parecem ser de interesse limitado. “O melhor meio é de fato diminuir o consumo de energia”, resumiu Patrick Criqui, da Universidade de Grenoble. Uma outra conclusão do seminário foi a fragilidade dos instrumentos de avaliação ambiental, social e econômica, que leva os políticos a tomarem decisões mal informadas.

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 07/02/08

Fábrica de calçados de Franca demite 485 trabalhadores


O carnaval não foi animado para 485 pessoas de Franca, na região de Ribeirão Preto, demitidas na sexta-feira pela indústria calçadista Agabê. Com mais de 60 anos de existência, a empresa, responsável por cerca de 60% da produção de sapatos da italiana Hugo Boss, praticamente encerrou suas atividades na cidade paulista, mantendo apenas 80 pessoas devido a impedimentos legais trabalhistas (que também serão dispensadas no momento oportuno). A notícia é portal da Revista Exame, 06-02-2008.

Segundo a Assessoria de Imprensa da Agabê, a empresa, que mantém cerca de mil funcionários na unidade de Aracati (CE), mudará o modelo de gestão, adotando o "licenciamento" de seus produtos, que serão feitos por fábricas pequenas de Franca, mediante contratos ainda em fase de negociação.

A Agabê já teve cerca de 3 mil funcionários diretos em 2004, quando produzia 10 mil pares de sapatos por dia. Ultimamente, produzia 800 pares por dia em três unidades (já desativadas) em Franca. Mas, nos dois últimos anos, a empresa operou no prejuízo, afetada nas exportações pela queda do dólar. A Assessoria de Imprensa não confirmou o valor da dívida da Agabê. Em Aracati, os 1 mil funcionários produzem 3,5 mil sapatos/dia.

Instituto Humanitas Unisinos - 07/02/08

Trabalho e suicídio


O número de suicídios associados à pressão no trabalho cresce em todo o mundo. Os impactos humanos das metamorfoses que a economia globalizada vem operando nos ambientes de trabalho e na gestão de pessoal são evidentes, afirma Mário César Ferreira, professor do Instituto de Psicologia da UnB (Universidade de Brasília) e pós-doutorando na Universidade de Paris 1 (Sorbonne) em artigo na Folha de S.Paulo, 07-02-2008.

Eis o artigo.

Na França, o ano de 2007 foi marcado pelo crescimento de suicídios de trabalhadores qualificados. Logo no primeiro semestre, em 22 de abril, o jornal Le Monde estampava: "PSA Peugeot-Citröen confrontada com um caso de suicídio". Um operário, 51, enforcou-se no local de trabalho na unidade de Mulhouse. O corpo foi descoberto quando, após o almoço, os colegas inquietaram-se com sua ausência. Todos os indícios da causa do suicídio confluíram para uma forte insatisfação com o tratamento recebido das chefias. As notícias da imprensa apontaram cinco casos na PSA Peugeot-Citröen, quatro na central nuclear de Chinon, três na Renault, um na IBM e um na megarrede de restaurantes Sodexho.

A falta ou a insuficiência de registros de casos de suicídios na França, sobretudo de suas causas, dificultam enormemente o seu controle epidemiológico e, em conseqüência, a geração de políticas públicas preventivas. Isso não é diferente no Brasil. De qualquer modo, os dados divulgados pela mídia, ainda que imprecisos, são preocupantes, dramáticos. Estima-se em torno de 400 os casos de suicídios por ano na terra de Victor Hugo. Até o momento, apenas 18 casos foram reconhecidos oficialmente pela Seguridade Social francesa como acidente de trabalho.

No Japão, a dificuldade de controle epidemiológico é semelhante. Nesse país, onde cerca de 25% dos trabalhadores têm uma jornada de 60h semanais, os casos de suicídios ("karochi") são considerados como doença ocupacional e são estimados em torno de mil por ano.

A natureza multicausal do suicídio é consensual. Entretanto, o nexo com o trabalho como fator desencadeador permanece uma querela. O reconhecimento dos casos de suicídios na França como acidente de trabalho inaugura uma situação nova. Foi irrefutável a diversidade de evidências constatada pelas sindicâncias - comissões tripartites governo, empresários e trabalhadores - sobre as especificidades do trabalho vivenciado geradoras dos atos de suicídio.

Dois fatos se destacam nas provas arroladas: suicídios ocorridos nos locais de trabalho e cartas/bilhetes deixados para a família e amigos. Nesse último caso, a dramaticidade do relatado é comovente: "Eu não sou forte! A pressão no trabalho é demais"; "Estou esgotado. Meu estado físico e psicológico se deteriora a cada dia".

Tais fatos reaquecem o debate sobre os impactos humanos das metamorfoses que a economia globalizada vem operando nos ambientes de trabalho e na gestão de pessoal. Desde a Revolução Industrial, a precariedade e a inadequabilidade das condições de trabalho são uma espécie de "barril de pólvora". Os acidentes de trabalho e de trajeto permanecem crescendo. As doenças ocupacionais continuam matando lentamente, silenciosamente.

Os casos de "burnout" - síndrome de esgotamento físico/psicológico - multiplicam-se. Na França, estima-se em torno de 330 mil doenças relacionadas com o estresse laboral, custando cerca de 900 milhões de euros por ano para os cofres públicos.

Diferentemente de consultorias que transformam o desgaste dos trabalhadores em "stress business" e lucram com atividades do tipo "ofurô corporativo", é imperioso repensar os caminhos que tem tomado a reestruturação produtiva. Ela opera uma transição de paradigma produtivo ancorado, essencialmente, em uma "modernização" gerencial conservadora, que combina distintos ingredientes: o aumento da responsabilidade das tarefas, a aceleração do ritmo de trabalho e a radicalização do controle por meio das novas tecnologias.

O resultado é uma intensificação insuportável do trabalho. Esse enfoque de gestão parece estar transformando o trabalho no seu avesso: outrora modo de ganhar a vida, hoje, mais do que antes, modo de encontrar a morte.

Se trabalhar é "fazer algo", encontramos aqui um elo com a poesia, cuja etimologia no grego ("poíesis") significa "criação, fabricação, confecção". Não é exagero afirmar: somos o que somos em virtude do trabalho coletivo de cada dia e, sobretudo, por aquele realizado pelas gerações passadas. O trabalho social de hoje cria as bases materiais e espirituais para a existência das gerações futuras. Ele é ferramenta estratégica para viabilizar o tão propalado binômio "desenvolvimento sustentável e empresa socialmente responsável". No cotidiano das organizações é, portanto, vital cuidar muito bem dessa nobre atividade para que ela se transforme em sinônimo de vida.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 06/02/08

A decadência da Fox News. Uma lição para a Veja?


A Fox News, a outrora temida cadeia de televisão que redefiniu não só o jornalismo, mas a própria política norte-americana está em franco descenso. A Fox News chegou a desbancar a CNN no negócio de notícias via TV a cabo e sempre foi identificada com a ultra-direita norte-americana, agora a rede perde audiência após um crescente boicote. A análise é de Idelber Avelar, professor titular de literatura latino-americanas e teoria literária em Tulane University (EUA). O artigo foi publicado em seu blog, 05-02-2008.

Eis o artigo.

Há uma história nesta campanha eleitoral americana que eu ainda não vi discutida no Brasil - e que os fãs da revista Veja deveriam acompanhar com atenção. É o declínio paulatino da relevância e da audiência da Fox News, a outrora temida cadeia de televisão que redefiniu não só o jornalismo, mas a própria política norte-americana.

A Fox conseguiu o que em 1996 parecia impossível: desbancar a CNN no negócio de notícias via TV a cabo, enquanto realizava a proeza de transformar o extremismo de ultra-direita em suposto centro do espectro político, com um slogan que era o troféu óleo de peroba do século: fair and balanced. Funcionou durante muito tempo e foi decisivo para o roubo de uma eleição presidencial americana (2000) e para o resultado da seguinte (2004). Parece não estar funcionando mais.

A partir de um chamado ao boicote liderado pelo site Fox Attacks e por vários blogueiros e ativistas progressistas, os candidatos democratas tomaram a difícil – mas, viu-se depois, acertada – decisão de ignorar o canal e não aceitar debater lá. Tratá-la como o que ela é, um canal de manipulação e doutrinação extremistas, não um veículo de notícias. Este ano, foi tudo morro abaixo para a Fox. O candidato queridinho da Fox, Rudy Giuliani, amargou uma humilhação atrás da outra nas primárias, perdendo até para o azarão Ron Paul. Teve que abandonar a corrida antes de ser esmagado dentro do seu próprio estado de Nova York, apesar de todos os esforços do canal.

A estrela da Fox, o histriônico Bill O'Reilly, chegou a trocar empurrões com agentes do serviço secreto para tentar se aproximar de Barack Obama, humilhação impensável dois anos atrás. Depois da Fox excluir do seu debate o candidato anti-guerra Ron Paul, mesmo depois de Paul ter conseguido 10% dos votos em Iowa (quase o dobro do queridinho Guiliani), o todo-poderoso âncora da Fox, Sean Hannity, foi perseguido pelos seguidores de Paul aos gritos de Fox News sucks!.

Para piorar a situação, o ex-executivo da Fox, Dan Cooper, vem publicando trechos do livro em que conta toda a lama por trás do projeto do canal de notícias liderado por Robert Ailes, um sujeito capaz de ameaçar uma criança de três anos cujo único crime é ser filha de um jornalista que fez um retrato crítico do seu amado radialista de ultra-direta Rush Limbaugh.

O que os Democratas entenderam, finalmente, é que em alguns terrenos não vale a pena lutar. O resultado do jogo já está dado de antemão, como sabem os que já presenciaram os massacres manipulados que são as “entrevistas” da Fox com qualquer um que não compartilhe o extremismo bélico do canal. Que isso sirva de lição para os que acham válido conversar com determinados veículos, ao invés de seguir o exemplo dos incontáveis brasileiros que já tivemos o gostinho de um dia dizer ao telefone: Você é da Veja? Desculpe, com a Veja eu não falo.

Nas primárias de New Hampshire em 2004, mesmo sem qualquer oposição a Bush, a Fox teve 200.000 telespectadores a mais que a CNN na noite da primária democrata. Em 2008, com um campo de candidatos competitivos entre os Republicanos, a CNN teve 250.000 a mais. Dos dez debates mais assistidos desta campanha, cinco foram na CNN, só dois na Fox. O debate democrata da Carolina do Sul, transmitido pela CNN, bateu o recorde: foi o mais assistido da história das primárias americanas.

O canal de negócios da corporação Fox, o Fox Business Network, que estreava com o intuito de fazer com a CNBC o que a Fox News fizera com a CNN, não consegue mais que ínfimos 6.300 telespectadores, ou 0,05% do mercado, bem longe dos 265.000 da CNBC. A lição me parece clara: Fox subiu com Bush e está caindo com ele.

Instituto Humanitas Unisinos - 06/02/08

Estados Unidos compraram presos

Os Estados Unidos compraram suspeitos de terrorismo no Afeganistão e no Paquistão, segundo a ONG britânica Reprieve. Os detidos foram transladados a Guantánamo em vôos fretados pela CIA via Portugal. A reportagem é de Miguel Mora e Ana Carbajosa e foi publicada no El País, 01-02-2008. A tradução é do Cepat.

"Morro aqui diariamente, mental e fisicamente. Isso acontece com todos. Fomos esquecidos, trancafiados no meio do oceano durante anos", disse Shaker Aamer, que morou durante muito tempo no Reino Unido, e que está preso em Guantánamo desde fevereiro de 2002. Segundo a ONG de advogados britânicos Reprieve, que representa 33 presos de Guantánamo, Aamer foi seqüestrado no Paquistão e vendido às forças dos Estados Unidos por cinco mil dólares, antes de voar, no dia 13 de fevereiro de 2002, do Incirlik (Turquia) até a ilha de Cuba via Portugal num avião da CIA.

"Enquanto nos levavam andando de cócoras de um avião a outro, um dos guardas me bateu nos grilletes [de três peças, nos pés, mãos e cadeira] e os ferros das pernas se cravaram profundamente em meus tornozelos", relata outro preso, Said Farhi.

O documento da ONG de advogados, publicado esta semana, deu nome e sobrenome a 728 dos 744 suspeitos de terrorismo que foram transportados pelos Estados Unidos para Guantánamo. Todos eles passaram por "jurisdição portuguesa", ou seja, ou pisaram solo nacional (nove o fizeram, todos nos Açores) ou cruzaram o espaço aéreo, segundo as pesquisas da Reprieve. Para chegar a esta conclusão cruzaram as listas de vôos da Aviação Civil lusa, os testemunhos de alguns de seus clientes e documentos desclassificados pelos Estados Unidos dos quais se deduz o dia em que cada um dos réus, com um número de matrícula, desembarcou na base de Guantánamo.

Concluem que Portugal - e também a Espanha - teriam tido um papel muito mais relevante nos vôos da CIA do que os seus Governos reconheceram.

Essas 48 viagens para "a ilha da morte", como a chama um dos presos entrevistados pela Reprieve, começaram no dia 11 de janeiro de 2002 - com um vôo procedente de Morón da Fronteira - e se mantiveram ao longo de três Governos até março de 2006.

A eurodeputada socialista portuguesa Ana Gomes foi atacada e vilipendiada, inclusive por membros de seu próprio partido e do Governo, quando exigiu ao seu país, há meses, que prestasse informações sobre os vôos da CIA. Ontem, Gomes mostrava sua satisfação pelas descobertas dos advogados britânicos, mas disse não estar surpresa porque foi ela mesma a que obteve - por canais ilegais - os registros dos vôos militares, depois que o Governo os negara.

O Executivo qualifica as acusações da Reprieve como "uma interpretação leviana de dados já conhecidos". Manfred Nowak, comissionado da ONU para casos de tortura acredita que seria exagerado pensar que Portugal "ajudou" a CIA, mas admite que, em 2005 e 2006, todo o mundo suspeitava de operações da agência: "Nos casos em que não se agiu para impedir a passagem dos vôos por seu espaço aéreo ou aterrissar em seu território, há uma violação ativa dos direitos humanos".

Um histórico de revelações

Março de 2005 - O Diario de Mallorca informa sobre a utilização do aeroporto de Palma para vôos da CIA. Maio de 2005 - O The New York Times detalha o uso de vôos privados pela CIA. Dezembro de 2005 - A secretaria de Estado Condoleezza Rice defende diante dos ministros europeus o programa de detenções. Junho de 2006 - O Conselho da Europa acusa a Polônia e a Romênia de abrigar cárceres secretos. Setembro de 2006 - Bush admite a existência de cárceres secretos. A Itália abre o primeiro processo contra a CIA na Europa. Novembro de 2006 - O Parlamento Europeu conta 1.245 vôos da CIA.

Instituto Humanitas Unisinos - 06/02/08

Capim invasor já ocupa 20% dos campos do RS

O famoso céu azul do Rio Grande do Sul, desde os anos 1950, é testemunha da chegada acidental do capim annoni (Eragrostis plana) aos pampas. Sem inimigos naturais, a planta rapidamente conquistou terreno e tornou-se um dos maiores problemas ambientais do país nos anos 1970. E, hoje, o mesmo status é mantido, porque 20% dos campos sulinos estão forrados com ela. A reportagem é de Eduardo Geraque e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 06-02-2008.

Preocupados, os cientistas da ONG Instituto Hórus resolveram calcular o prejuízo econômico que esse processo causa aos pecuaristas gaúchos. A conta dá a dimensão do tamanho do estrago: só em 2005, a produção de gado no extremo sul do Brasil sofreu uma perda de US$ 3,4 milhões, com um acumulado entre 1995 e 2005 de US$ 29 milhões.

E se nada mais radical fosse feito para coibir a invasão? Esta foi uma das perguntas imaginadas pelos autores do estudo.

"Em 1979, esse capim já ocupava uma área de 20 mil hectares. Em 2007, a área invadida é de 2 milhões de hectares" afirma a pesquisadora Sílvia Ziller, especialista em espécies invasoras e uma das autoras do estudo que avalia o impacto econômico do capim annoni no Rio Grande do Sul.

Segundo a engenheira florestal, as projeções recém-concluídas mostram que o problema só tende a aumentar. Em 2015, quase 4,5 milhões de hectares deverão estar forrados com o capim. "O prejuízo acumulado até lá poderá chegar aos US$ 600 milhões."

As contas são baseadas no prejuízo por hectare. Enquanto o produtor perde US$ 38,91 na área em que existe a invasão, ele ganha US$ 17,15 quando, no seu pasto, quem está presente é a espécie nativa.

"Com essa área de ocupação -o capim chegou inclusive, via estradas, até o sul da Bahia- é impossível fazer um controle mecânico", diz Ziller.

Controle biológico

Segundo ela, o esforço para barrar a proliferação do capim invasor no Brasil deveria contar com um reforço extra, no caso, do país de onde a planta foi trazida nos anos 1950, pelo pecuarista Ernesto Annoni.

"Os sul-africanos desenvolveram técnicas de controle biológico eficientes e relativamente baratas", diz Ziller, lembrando que a Embrapa também desenvolve pesquisas para tentar equacionar o problema.

No caso das técnicas africanas, que usam predadores naturais da planta, como insetos, para tentar brecar as futuras invasões, elas custam, segundo a pesquisadora brasileira, mais ou menos 1% do prejuízo que o capim annoni causa.

Falso positivo

De acordo com Ziller, o caso da planta invasora gaúcha é apenas um entre vários que existem no Brasil. Mas, como ele é exemplar, é sempre bom ter consciência de como um simples acidente pode causar problemas por várias gerações.

"As primeiras sementes da planta vieram sem querer espalhadas no meio de outra espécie, que era muito usada na época para forrar o pasto."

Mais daí, ao chegar aqui, os pecuaristas perceberam que o capim annoni deixava o pasto verde, inclusive no inverno.

"Mas isso ocorria em um espaço curto de tempo. Além disso, o [capim] annoni tem muita fibra, o gado não consegue fazer digestão direito e a planta passa a não ser mais palatável", diz Ziller. Mesmo isso sendo descoberto logo, os fazendeiros já haviam importado sementes da África. E descartaram o material de qualquer forma.

"Essa planta produz muitas sementes, que são transportadas de várias formas, pelo próprio gado ou nos pneus das máquinas. É muito fácil de a invasão ocorrer mesmo.

Instituto Humanitas Unisinos - 06/02/08

Antonio Vieira. Palavra eterna

Um Antônio Vieira total. Sem a palavra padre - diplomata, profeta, historiador, missionário, pregador, literato - como um nome reducionista e ávido para classificar o autor de uma obra a um só tempo seminal e eterna. A compreensão do quebra-cabeça representado por Vieira, sem que nenhuma peça seja desprezada, é o desafio dos especialistas brasileiros que se debruçam sobre o “imperador da língua portuguesa” - definição de Fernando Pessoa -, 400 anos depois do nascimento do autor de Sermões, comemorados nesta Quarta-Feira de Cinzas. “A obra de Antônio Vieira traduz a arte discursiva no esforço de apreender, para além das circunstâncias de época, o significado máximo do tempo”, diz Marcus Alexandre Motta, autor de Antônio Vieira - Infalível Naufrágio. A reportagem é de Francisco Quinteiro Pires e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 03-02-2008.

Ele ensinou que nada da realidade terrena, criada por Deus, pode ser ignorado, porque tudo tem uma razão de ser, basta compreender o texto escrito pelas coisas do mundo. Essa postura é um desafio ao meio intelectual brasileiro, que ainda faz a separação estanque de disciplinas e estuda os objetos a partir da perspectiva fragmentária, uma arraigada influência do positivismo, como lembra o professor da Unicamp Alcir Pécora. Tal credo acadêmico se compara ao equívoco atual de isolar a política (entendida por ideologia) e a economia (definida como técnica) como se fossem inconciliáveis. “Essa visão anacrônica lançada pelo presente cria um Vieira esquizofrênico, que alia o pragmatismo político com o desvario místico”, diz.

Pode causar espécie à contemporaneidade a transformação dos textos de um religioso em alicerce clássico de uma língua. “No nosso país, a secularização tomou ares de vingança”, explica Marcus Motta. Ele diz que esse fenômeno fez o brasileiro perder o gosto pela abstração, por especulações metafísicas. “Significa que não vale a pena perseguir idéias ou sonhos, resultando numa pragmática banal, de experiência frágil. Como prova, basta ver o retorno do positivismo e de um empirismo canhestro que assaltou as nossas universidades no campo de humanas nos últimos anos”.

O lançamento de biografias, dos sermões e de correspondências, previsto para este ano, contribui para preencher as graves lacunas referentes ao padre católico. “Os livros de e sobre Vieira não foram editados aqui antes por conta da desorganização do mercado editorial e porque demandam um trabalho que não é de interesse comercial, mas institucional, a ser feito pelo Estado”, diz Pécora, autor de Teatro do Sacramento, que será relançado neste ano. As informações sobre Antônio Vieira que chegam neste ano às livrarias podem jogar luzes sobre as sombras criadas quando uma faceta dele é priorizada como se não tivesse ligações com o restante ou com uma totalidade. E podem enfraquecer o preconceito contra uma característica pouco investigada: o profetismo, fruto do período histórico messiânico em que atuou e bem delineado em obras como A História do Futuro, A Defesa Perante o Santo Ofício e Clavis Prophetarum (redigida em latim).

A crença, esmiuçada em A História do Futuro, de que Portugal seria o Quinto Império não pode ser tratada como disparate de um jesuíta. Presente em todos os continentes conhecidos, depois de iniciada a era dos Grandes Descobrimentos, Portugal tinha tudo para suceder aos impérios persa, assírio, grego e romano, mas com a diferença de que ele levaria o reino cristão a todos os povos do globo. Essa convicção está calcada na interpretação da Bíblia feita por Vieira, que intuiu como um sinal a restauração da Coroa portuguesa depois de ficar sob o jugo espanhol entre 1580 e 1640. Ela está fundada no conhecimento das Trovas, de Antônio Gonçalves de Bandarra (1550-1556), sapateiro português que previra um reino prolongado de justiça e harmonia na Terra. “A fé de Vieira é o drama natural da esperança que aceita a profecia do Quinto Império para aguardar as felicidades e resolver os negócios humanos, instituindo um governo de união espiritual e temporal correspondente à inteireza do mundo”, diz Marcus Motta.

O início desse império mundial, segundo Vieira, que não aceitava ser chamado de milenarista, se daria a partir do reinado de d. João IV e não do retorno de d. Sebastião, desaparecido em Alcácer-Quibir, em 1578. A origem da expressão tão brasileira “país do futuro” - da nação em compasso de espera - tem raízes mais fortes e distantes do que se imagina, segundo Clóvis Bulcão, autor da biografia Padre Antônio Vieira, prevista para junho. “A concretização do futuro brasileiro espera um redentor.”

“A posição católica de Vieira é perfeitamente conciliável com o tempo político em que viveu e durante o qual ele foi um religioso politizado, interventor e reformista”, diz Alcir Pécora. Apesar de ter produzido uma obra atemporal, Vieira tem de ser entendido como um homem do século 17. O fato de ter estudado dentro da Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola no século 16, lhe ensinara a urgência da atuação no plano terreno. “Não tem que olhar para o céu, mas para as cegueiras do mundo”, diz Pécora a respeito do lema jesuíta. O carisma inaciano tem um pilar laico. Assim, nada do que está no mundo pode ser estranho, pois pertence à mesma fonte divina. A atuação missionária de Vieira no Brasil, onde, jovem, estudou no Colégio dos Jesuítas, comprova o esforço de chegar ao outro, por meio da assimilação (e não pela escravização, contra a qual Vieira se postou no caso dos indígenas), ainda que feita sob o domínio católico. “Vieira acabou lendo e interpretando a realidade brasileira como concretização das metáforas proféticas contidas nas Sagradas Escrituras”, diz Francisco Maciel Silveira, da USP.

O barroco em Vieira tem de ser visto não como os contrários que se anulam, mas como os opostos que se complementam. Daí a possibilidade de conviverem em Vieira o visionário e o prático, o idealista e o realista, e sem prejuízo. Por ter levado esse legado ambíguo (no dicionário, o adjetivo jesuíta também significa dissimulado) às últimas conseqüências, atuando em favor do Estado português, ele foi reprimido pela própria Companhia de Jesus e pela Inquisição (tribunal eclesiástico da Igreja Católica que julgava os crimes contra a fé), sendo preso para silenciar a pregação.

Vieira acreditava que os cristãos-novos deviam ser verdadeiramente assimilados para financiar com seu capital a presença do império português pelo mundo. Segundo Clóvis Bulcão, a expansão de Portugal estaria assentada em duas bases: o poder econômico e o cultural (a língua portuguesa). “O seu projeto era concreto e pragmático: repatriar os capitais dos judeus para dominar pela economia”, diz. Ele previra a importância da globalização econômica. “Vieira defendia a idéia muito atual de que os papéis de crédito estavam acima das fronteiras nacionais”, complementa. A Inquisição se tornava inimiga da expansão lusitana por se apropriar dos recursos dos cristãos-novos e dividi-los entre os acusadores. “Portugal se torna uma praça de negócios não-confiável.”

Passados 400 anos, o trabalho ainda engatinha, a provar a existência de escritos proféticos e poesias inéditos, segundo Pécora. Sem contar o fato de que no Brasil os estudos sobre literatura colonial precisam superar o obstáculo do nacionalismo. “As teses acadêmicas não tratam do período colonial por conta de um sentimento nativista, que afirma ser a literatura brasileira posterior à colonização”, diz. Mas é preciso passar pela inventividade literária de Vieira para evitar o risco de ignorar o fundador da língua: ele foi para o português o que Cervantes foi para o espanhol e Dante, para o italiano. Mas quem é esse homem do século 17 que conferiu espessura e plasticidade a uma língua de mais de 200 milhões de falantes no século 21?

Segundo o professor Francisco Maciel Macedo, existem dois motivos para entender por que Vieira se tornou referência indelével. Primeiro, a engenhosidade do raciocínio - analógica, metafórica, e não lógica. Segundo, o estilo claro e simples, marcado pela oralidade, por repetições e circularidades concêntricas. Essa dupla de elementos, realizados à perfeição nos mais de 200 sermões, está a serviço de Vieira que decifra as charadas dos textos bíblicos (e da realidade terrena) para espanto dos ouvintes da época. E para surpresa dos leitores de hoje - seus escritos de quase quatro séculos podem ser mais reveladores da atualidade do que as notícias do jornal do dia. Antônio Vieira tem a palavra eterna, porque ela se localiza fora no tempo.

Instituto Humanitas Unisinos - 05/02/08

Esperma produzido pela mulher

Poderá ser o fim do homem. Mas não da mulher. Cientistas ingleses estão prontos para transformar o miolo da espinha feminina em esperma, deixando os homens de fora do processo de criação da vida humana. Já que as crianças nascidas de um esperma artificial assim obtido não teriam o cromossoma Y necessário para os homens, o procedimento permitiria de criar somente mulheres: como num romance de ficção científica, teoricamente, a terra poderia, um dia, ser povoada exclusivamente por mulheres. Mas, além de que os homens teriam que concordar com o seu desaparecimento e as mulheres teriam que aceitar não mais conceber filhos com os homens, a possibilidade científica está ainda longe de ser realizada, ou seja, pelo menos dez anos. A reportagem é do jornal Repubblica, 01-02-2008.

A grande mudança anunciada pela revista semanal britânica New Scientist, é obra dos pesquisadores da Universidade de Nescastle, cujo centro de pesquisas sobre células-tronco é dos mais avançados do planeta. Segundo escreve a revista, um dos cientistas do centro, Karim Navernia, apresentou um pedido às autoridades competentes da Inglaterra para realizar a experiência. Ele se diz pronto para iniciar a pesquisa em dois meses.

Mas há objeções de tipo médico: existe o temor, escreve a revista New Scientist que as crianças nascidas do esperma artificial sofram de graves problemas de saúde, como aconteceu, até agora, com os ratos do experimento de Newcastle.

Instituto Humanitas Unisinos - 05/02/08

Europa incentiva licenças paternidade e maternidade

A Europa tenta conter a redução de sua população com uma medida inovadora: dar mais férias pagas ao pai para tentar incentivar os casais a terem filhos. Nos últimos anos, vem crescendo o número de propostas e novas leis ampliando a licença-paternidade. A reportagem é de Jamil Chade e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 05-02-2008.

A medida ainda tem como objetivo ajudar as mães a cuidarem de seus filhos, já que é muito difícil para uma família européia média contratar babás ou empregadas domésticas. Um número importante de países começou a discutir a ampliação dos direitos dos pais nos últimos dois anos, como França, Alemanha e Inglaterra, onde os dias de licença paterna se tornaram duas semanas de férias e novos projetos tendem a ampliar ainda mais esses direitos. Empresas de outros países onde a lei ainda prevê poucos dias de licença já começam a ir além do que estabelecem as normas. Na Suíça, por exemplo, os sindicatos trabalhistas conseguiram negociar com algumas das maiores empresas do país uma licença paternidade de duas semanas. Ainda neste ano, o país deve votar nova lei nesse sentido.

“A ampliação de direitos aos pais seria sem dúvida um incentivo a casais para que tenham filhos”, afirmou o suíço Niels Bohr, de 40 anos, que acaba de ser pai pela primeira vez da pequena Maya, hoje com seis meses. O casal teve de contar com a ajuda da sogra de Bohr, que mora no Peru e viajou até Genebra para ajudar a cuidar da criança.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) avalia que já há países onde as condições podem ser consideradas “ideais”. Um casal que tiver um filho na Noruega, por exemplo, tem direito por lei a férias pagas durante 54 semanas (cerca de um ano). As famílias norueguesas são obrigadas a dividir esses meses entre pai e mãe. Cada casal tem o direito de se organizar como for mais adequado para sua realidade ou exigência profissional.

Na Finlândia, são 42 semanas de licença para os dois pais, enquanto na Dinamarca o casal ganha, entre os dois, um ano inteiro. Mas a Suécia bate todos os recordes. Uma família tem direito a um ano e quatro meses de férias. Desse total, o pai é obrigado a tirar pelo menos um mês de licença. Fora dos países escandinavos, a Alemanha é a que mais concede férias (58 semanas), das quais oito devem ir obrigatoriamente para o pai. A lei acaba de ser implementada pela primeira chanceler mulher do país, Angela Merkel.

CONTRA O ENCOLHIMENTO

Parte da nova tendência traz o claro objetivo de incentivar os pais a terem filhos. Na Noruega, o sistema permitiu que a taxa de natalidade seja uma das mais altas do continente, com 1,8 criança por família. A meta é superar a taxa de 2,1 filhos por casal, número considerado necessário para evitar uma redução na população.

Vários países europeus, como Espanha e Itália, têm uma taxa de natalidade muito baixa. Na Espanha, por exemplo, quase metade da população total do país terá mais de 60 anos em 2020 se as taxas de natalidade não forem impulsionadas. Hoje, cerca de 670 mil crianças nascem por ano na Alemanha. Um ano após a 2.ª Guerra Mundial, o “baby boom” foi de 922 mil crianças.

Segundo um levantamento feito pela entidade britânica Fatherhood Institute, as leis de licença ainda não são adequadas para garantir aumento da população. No Reino Unido, a mulher tem o direito a 39 semanas de licença pagas. Nos primeiros dois meses, a mãe recebe 90% de seu salário médio. O valor cai para 108 libras esterlinas (cerca de R$ 371) por semana no resto da licença.

Mas já há propostas no Parlamento para que esse período seja ampliado para 52 semanas até 2010. Os pais têm duas semanas, com direito a 108 libras esterlinas por semana do governo. O que os defensores dos direitos dos pais querem, porém, é que a licença paterna seja ampliada, em vez de mais semanas para a mãe. Outra proposta do grupo que já está sendo avaliada pelo Parlamento é a possibilidade de que, no lugar da licença após o parto, o pai possa escolher tirar três meses de férias por ano até que a criança chegue aos 5 anos. “A sociedade moderna precisa ter outra geração de crianças, mas também outra de pais”, conclui o estudo.

Instituto Humanitas Unisinos - 05/02/08

‘O mercado é compatível com a liberdade, mas é um produtor de desigualdades’. Entrevista com Delfim Netto.


“A economia é uma ciência moral e está longe de ser uma ciência exata”. A afirmação é do ex-ministro e ex-deputado federal Delfim Netto em entrevista à revista Desafios, 25-01-2008, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Na entrevista o economista faz uma veemente defesa do papel do Estado: “Nunca houve nenhum processo de desenvolvimento no mundo em que o Estado não estivesse atrás, até hoje”. Delfim ainda fala de sua simpatia por Lula: “Lula é o único sujeito no Brasil que quando fala em pobre está falando seriamente”.

Eis trechos da entrevista.

O que o aproxima do atual governo?

Eu admiro a política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O Lula teve uma intuição correta quando deu ênfase para melhorar a igualdade de oportunidade no Brasil. Para o mercado funcionar, ele tem que ter um mínimo de moralidade. E a moralidade no mercado vem da igualdade de oportunidade. É como uma corrida, e para que as coisas funcionem é preciso que todo mundo parta mais ou menos do mesmo ponto. Talvez seja o papel fundamental do Estado: igualizar as oportunidades. O governo Lula é a intuição do Lula. Só isso. Na verdade, é o único sujeito no Brasil que quando fala em pobre está falando seriamente. Todos nós somos cínicos...

O senhor faz críticas à política econômica?

A economia é uma ciência moral e está longe de ser uma ciência exata. Ser constituída de escolas já mostra que existem múltiplas visões no mundo. Uns crêem que o mercado seja capaz de produzir por si mesmo o equilíbrio, e outras, como é o meu caso - nem sei o que eu sou, certamente eu diria que talvez seja um keynesiano de pé quebrado. O certo é que o funcionamento da economia depende de um Estado. O mercado exige algumas coisas importantes, a primeira delas é a propriedade privada. Ora, quem garante a propriedade privada? É o Estado. Quando eu vejo um sujeito dizer que "nunca houve uma interferência do Estado nos programas de industrialização bem-sucedidos do mundo", acho isto uma tolice monumental, de uma ignorância histórica gigantesca. Nunca houve nenhum processo de desenvolvimento no mundo em que o Estado não estivesse atrás, até hoje. Só que de vez em quando está bem escondido.

Mas a economia planificada não tem feito sucesso...

Ninguém defende a economia planificada. A tolice daquela economia era querer planificação sem preço. A vantagem do mercado é que ele não foi inventado, ele foi descoberto. E o homem não descobriu nenhum mecanismo mais eficaz do que o mercado para realizar o sistema produtivo. Produção é certamente um problema técnico. Distribuição, não, é um problema político. Adam Smith e Stuart Mill sabiam disto muito antes do que Karl Marx. O mercado é muito compatível com a liberdade, mas obviamente é um produtor de desigualdades. E para que as desigualdades sejam aceitas é preciso que elas partam do mesmo lugar. O homem é naturalmente diferente. Ninguém quer a igualdade no final, nós queremos a igualdade no começo. O resultado final é diferenciado mesmo. Mas essa diferenciação é aceitável porque eu parti do mesmo lugar, tinha duas pernas, e cansei antes do outro.

O papel do Estado é regular o tiro de partida?

É garantir minha posição no mundo, independentemente de onde eu nasci. Se nasci num lar de religião católica ou protestante, se eu sou branco ou preto ou amarelo, se nasci no Morumbi ou no Cambuci. Na verdade, isso não se consegue, é uma meta, é uma assíntota, que vai se aproximando dela à medida que suas políticas sociais são corretas.

O exemplo aí inclui a si próprio?

Eu sou um exemplo do ensino gratuito. Gastei 6 mil réis para fazer o curso inteiro na Universidade de São Paulo (USP). Passei no vestibular, comprei um selo para colocar no requerimento de matrícula na USP e lá eu recebi tudo: aula, papel, lápis, borracha, livros, professores, máquinas para calcular, o que precisasse. É um processo de igualização de oportunidades. É claro, era para um número restrito.

Hoje ampliou um pouco mais do que naquela época.

É claro, muito mais do que era,nem se compara. Mas o que eu digo é o seguinte: esses mecanismos de igualização são fundamentais porque eles é que dão moralidade para o mercado. Não adianta imaginar, nem Hugo Chávez nem Evo Morales são produtos do acidente e da vontade. O caso do Morales é típico. O plano de estabilização do Jeffrey Sachs em 1985 pôs a Bolívia em ordem, o que parecia impossível. O que eles tinham esquecido? O índio. Quando abriu a urna, o índio veio e falou. Então, quando se têm essas duas instituições funcionando juntas, o mercado e urna, se o mercado exagera numa direção, a urna corrige. Se exageramos o consumo no presente, teremos menos crescimento e menos consumo no futuro. Se exageramos no investimento no presente, tem-se provavelmente um sacrifício que não é aceito na urna. Essa é, na minha opinião, a virtude do Lula. A minha admiração tem origem no fato de que ele intuiu esta circunstância.

A urna também contém distorções como o mercado?

Não. O que é a distorção da urna? Quem é que mede a distorção da urna? A do mercado, eu sei.A mão invisível do mercado só funciona com a mão visível do Estado. Agora, a urna reflete os sentimentos das pessoas. O que falta para os economistas é colocar como modelo a urna. Ela é que permite que uma política virtuosa tenha continuidade. Mesmo que haja sucessão, como tem que haver mesmo, há uma continuidade das virtudes. Mas quando se tenta ser virtuoso demais, a urna vem, acha que não é, e muda.

E como o senhor vê a Venezuela?

É um caso típico de um psicopata que se apropriou de um país que antes dele foi apropriado por cleptomaníacos.Um psicopata que sucede cleptomaníacos é uma comédia de erros. A urna está corrigindo nos dois sentidos. Eu não sei por que as pessoas estão preocupadas. Vamos ver daqui a 25 anos um homem novo nascido na Venezuela.

E o Brasil?

O Brasil estava falido em 2002, faliu duas vezes entre 1995 e 2002. As exportações brasileiras cresciam a 3,8% ao ano e a dívida externa, a 6,6%. A trombada estava decidida. Abandonamos o setor exportador desde 1986, quando se congelou pela primeira vez o câmbio, e foi-se repetindo o congelamento. A energia necessária para produzir a capacidade de importação que se precisa para crescer foi dissipada por essas políticas erradas. É isto que fez o Brasil crescer pouco. Não tem nada que ver com a maioria dos argumentos que estão aí. O Brasil só deixa de crescer quando tem restrição externa ou então quando tem uma restrição de energia.

O atual crescimento é sustentável?

Em 2002, as pessoas que estavam indo embora do governo diziam que "não tem importância porque o Lula vai ser Lula o Breve". Mas o mundo cresceu, o Brasil expandiu suas exportações, melhoraram os preços dos nossos produtos. Mas continuamos a ser 1,1% do comércio mundial, como já éramos em 1984. Corremos e ficamos no mesmo lugar. A China, em 1984, exportava como o Brasil e hoje é 9% do comércio mundial. Agora, tenho a convicção de que crescemos 5% em 2007 e vamos crescer 6% este ano. Eliminamos as duas restrições que abortam o crescimento: a vulnerabilidade externa e a falta de energia.

O que ainda está errado?

Acho que a política cambial, sem dúvida. Na política energética, lentamente estamos superando. O desenvolvimento é um estado de espírito. Foi isto que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) acendeu. O PAC já produziu o seu efeito, que foi acender o setor privado. Então, hoje eu não tenho nenhuma razão para acreditar que isso vai desaparecer.

Qual é o papel dos programas de transferência de renda?

Vão diminuir a desigualdade de oportunidades. Agora, não se vai resolver o problema de distribuição de renda simplesmente com isso. Quer dizer, não tem simplesmente que dar suporte, que é necessário, para o mais fraco. É preciso dar a ele também as condições de se libertar do suporte que se está dando a ele. Por exemplo, o Bolsa Família é um instrumento extremamente importante porque ele satisfaz estas duas condições.

O senhor na juventude foi socialista fabiano...

Eu fui socialista fabiano quando era ingênuo, antes de ter lido o livro do George Stigler sobre a teoria dos preços. Eu me libertei da gaiola lendo um livrinho simples, quando aprendi o papel da teoria dos preços. Eu ainda tinha algumas veleidades quando entrei na USP. Depois, felizmente, eu entendi que tudo aquilo tinha um defeito fundamental, porque era incompatível com a liberdade, ainda que tudo o que eles diziam era só para serem livres. Na verdade, o mercado é compatível com a liberdade, mas não é compatível com a igualdade, a não ser que se dê igualdade de oportunidade.

O senhor disse mesmo que o bolo precisava crescer antes de distribuir?

Eu, não! Só um sujeito que não tem noção das coisas poderia dizer. A única forma de primeiro crescer e depois distribuir o bolo era em um regime socialista. Em um regime como nós tínhamos, de economia de mercado, isso é impossível, por definição, porque senão o mercado não cresce. Aquilo foi uma frase de combate, de efeito. Esses idiotas deveriam aprender que o crescimento acelerado, mesmo com uma política que se preocupa com a distribuição de renda, tem uma tendência para aumentar a desigualdade, a distância entre as pessoas. Não é a desigualdade de oportunidades, mas a distância entre as pessoas. É o que está acontecendo e o que vai acontecer.

Como atenuar isso?

É por isso que os programas de correção devem ser focados cada vez melhor e continuados. Uma boa parte desses programas foi produzida porque o crescimento não aconteceu. Durante 25 anos o Brasil patinou, o desemprego ficou enorme. O crescimento que estamos vivendo é um novo momento. Desenvolvimento é um estado de espírito. Governo faz discurso, quem faz o desenvolvimento é o empresário, o espírito animal do empresário. Foi isso que o Lula acordou. Estava dormindo. O PAC teve esse mérito. O PAC na verdade pôs na mesa de volta o problema do crescimento.

O principal papel então já está cumprido?

Agora está cumprindo com maior eficiência. No momento em que o Estado transfere para o setor privado através de leilões adequados as tarefas de infra-estrutura, nós vamos ter uma aceleração do crescimento. São Paulo está fazendo isso, Minas também, Bahia está entrando e vai ter emulação nos outros estados. O aumento dos investimentos em infra- estrutura eleva a produtividade do setor privado. É por isso que nós vamos crescer. O aumento de 1% no investimento do setor público em infra-estrutura produz em 18 ou 24 meses um aumento de 0,24% do PIB. O governo entendeu isso. Saíram os sete trechos de rodovias, a Norte-Sul, a Transnordestina, a hidrelétrica do rio Madeira e já irão sair todos os outros, São Paulo está com treze concessões para serem feitas. O Brasil acordou e tem recursos.

Os leilões melhoraram?

O governo descobriu que existem leilões capazes de eliminar a assimetria de informação entre o poder concedente e o poder que recebe a concessão. Hoje, estão-se fazendo concessões muito melhores do que se fizeram no passado, em que se obriga o concessionário a explicitar realmente o que ele quer.Então, esta é que foi a grande mudança, na minha opinião, introduzida pela ministra Dilma Rousseff. Na verdade, a gente atribuía à ministra Dilma um certo viés ideológico - "ela não quer fazer a privatização, ela não quer fazer a concessão porque acha que é o Estado que deve fazer..." -, e hoje eu me rendo. Na verdade, ela estava realmente à procura de alguns mecanismos que eliminassem essas assimetrias de informação. Eles já existiam e ela chegou neles. E o governo chegou neles. Tanto é verdade que eles estão se estendendo para todos os outros governos.

Instituto Humanitas Unisinos - 05/02/08

'O corpo tornou-se um simples acessório'. Entrevista com David Le Breton

O antropólogo francês David Le Breton é conhecido como o maior especialista do mundo em corporeidade - a análise do corpo no contexto social. Para ele, o corpo não pode ser visto apenas como um suporte da alma. “Corpo e ser são indissociáveis. Tanto que não dizemos ‘olha, ali vai aquele corpo’. Dizemos ‘ali vai aquele homem, aquela mulher, aquela pessoa’.” Autor de Adeus ao Corpo (Ed. Papirus) e A Sociologia do Corpo (Ed. Vozes), Le Breton é professor de sociologia na Universidade Marc Bloch, em Estrasburgo, na França, e é membro do Institut Universitaire de France. A reportagem e a entrevista é de Flávia Tavares e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 05-02-2008.

Eis a entrevista.

O que é o corpo e o que ele representa nas interações sociais?

A condição humana é corporal. O corpo não é apenas um suporte. Ele é a raiz identificadora do homem ou da mulher, o vetor de toda a relação com o mundo, não só pelo que o corpo decifra através das percepções sensoriais ou da sua afetividade, mas também pela maneira como os outros nos interpretam diante dos diferentes significados que lhes enviamos: sexo, idade, aparência, movimentos, mímicas, etc. Por meio do corpo, o indivíduo assimila a substância da sua vida e a traduz para os outros por meio de sistemas simbólicos que ele divide com os membros de sua comunidade.

O corpo é a expressão máxima de raça, origem e ancestralidade?

Hoje, num contexto de individualização do sentido e de mercantilização do mundo, o corpo tornou-se um simples acessório. Sua antiga sacralidade ficou obsoleta, ele não é mais o suporte inquebrantável de uma história pessoal, mas uma forma que se recompõe incansavelmente ao gosto do momento. O consumismo em que estão mergulhadas as sociedades, e particularmente as jovens gerações, fez do corpo um objeto de investimento pessoal. Agora, o que importa é ter um corpo seu, assinado. O design não é mais exclusividade dos objetos.

O que mudou na nossa relação com o corpo ao longo da história?

Durante muito tempo, o corpo não foi muito questionado, ele não representava nenhuma preocupação. Numa frase famosa, Freud fala da anatomia como um destino. As pessoas assumiam a forma de seu corpo e ninguém era julgado pela sua aparência, porque ninguém tinha realmente influência sobre ela. Agora, o importante é modificar as partes essenciais do corpo, para deixá-las conforme a idéia que a pessoa tem de si própria. O corpo se tornou um alter ego, uma duplicata, uma projeção de si mesmo, um pouco decepcionante, mas pronta para modificações. Sem isso, seu corpo seria uma forma incapaz de abrigar suas aspirações.

Que uso fazemos do nosso corpo socialmente?

O corpo é modelado por um contexto social e cultural. É o primeiro objeto de comunicação porque, antes de começar a falar com o outro, nós o olhamos e prestamos atenção a uma infinidade de dados físicos e de vestuário que, por um lado, condicionam o tom da conversa.

Quem não se cuida ou se deixa envelhecer é desvalorizado?

O culto ao corpo atinge as categorias sociais de maneira desigual. Os homens, por meio do culturismo por exemplo, valorizam o seu “sobrecorpo” , mas eles nada têm a perder. Não é o caso das mulheres, que têm a obrigação social de manter sua sedução, e consideram o envelhecimento uma deformação. A cirurgia estética atinge uma população feminina composta cada vez mais de jovens. A mulher é julgada impiedosamente com base em sua aparência.

A busca por um padrão de beleza é conseqüência de uma sociedade em que somos interessantes mais pelo que parecemos ser do que pelo que somos?

É preciso se colocar fora de si para se tornar você mesmo, tornar mais significativa sua presença no mundo. A interioridade é um trabalho de exterioridade, que exige retrabalhar ininterruptamente seu corpo para aderir a uma identidade efêmera, mas essencial num momento do ambiente social. Assim, a tirania da aparência força os indivíduos a uma disciplina constante, a um trabalho sobre si mesmo. Uma atitude paradoxalmente puritana. As disciplinas outrora exteriores aos indivíduos, segundo a famosa análise de Michel Foucault, hoje estão nas mãos de pessoas que as impõem a si próprias. As disciplinas estão sob a égide do marketing. Mas é claro que o culto do corpo é, em primeiro lugar, um desprezo pelo corpo de origem.

Quem faz intervenções extremas no próprio corpo deve ser visto como um caso patológico?

Nem o corpo, nem o sexo, nem a orientação sexual são vistos hoje como essências, mas como construções pessoais e revogáveis. Decorrem de uma decisão própria e de uma prática cosmética adaptada. Alguns indivíduos vão, portanto, longe demais na vontade de se transformar e possuir um corpo que pertença apenas a eles. Não há nada de patológico nisso, simplesmente o desejo de uma pessoa de criar uma identidade, uma aparência, tornando-se enfim dona de si mesma.

Instituto Humanitas Unisinos - 04/02/08

Pesquisas de opinião apontam dimensões do conservadorismo no Brasil

Pesquisas de opinião pública, voltadas a captar características da cultura política, reafirmam o predomínio de um certo conservadorismo entre os brasileiros. Dois livros publicados recentemente apresentam análises baseadas em pesquisas de opinião e revelam dimensões deste conservadorismo, expressão das desigualdades de renda, gênero e raça presentes no país. Embora as próprias pesquisas não respondam porque as pessoas demonstram opiniões mais democráticas e igualitárias, ou mais conservadoras, os analistas propõem explicações diferentes para entender a preponderância de certos aspectos conservadores entre os brasileiros. A reportagem é de Carolina Justo e publicada pela página eletrônica comciência, 31-01-2008.

Para Alberto Carlos Almeida, cientista político da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do polêmico livro A cabeça do brasileiro, o problema está na educação. Em sua opinião, o desafio a ser vencido para disseminar uma “mentalidade democrática e moderna” no país consiste em ampliar a educação formal dos brasileiros. “Como a maior parte da população brasileira tem escolaridade baixa, pode-se afirmar que o Brasil é arcaico”, afirma em seu livro. Segundo ele, porém, o país não é um bloco monolítico. Convivem hoje dois Brasis: um dominante - o das classes baixas -, considerado “arcaico”, atrasado, conservador, mas que tenderia a desaparecer; e outro “moderno” e liberal, atualmente minoritário, mas que deve prevalecer conforme o ensino superior for massificado.

O trabalho de Almeida analisa dados da Pesquisa Social Brasileira (Pesb), que foi realizada entre julho e outubro de 2002, e procurou apreender quais são os valores, crenças, práticas e atitudes que permeiam o cotidiano dos brasileiros em suas relações sociais. A amostra considerada na pesquisa, representativa da população brasileira, contou com 2.363 pessoas.

Mando e subserviência

O posicionamento dos brasileiros em relação a valores considerados “hierárquicos” ou “igualitários” é um dos aspectos tratados por Almeida que atestariam a relação entre conservadorismo e déficit educacional entre os brasileiros.

“Qual a atitude que os empregados de um edifício deveriam ter se os moradores dizem que eles podem usar o elevador social?” e “qual a atitude que o empregado deveria ter se o patrão diz que pode ser tratado por ‘você?”. A estas perguntas, os dados da Pesb revelaram que, dentre os analfabetos, 76% disseram que os empregados do prédio “deveriam continuar usando o elevador de serviço” e 68% que o empregado “deveria continuar chamando o patrão de ‘senhor”. Já dentre os entrevistados com nível superior ou mais, ao contrário, a maioria disse que os empregados deveriam usar o elevador social (72%) e chamar o patrão por “você” (59%). Na análise de Almeida, “quanto mais elevada for a escolaridade, mais igualitárias as pessoas são”, e quanto menor a escolaridade, menos igualitárias.

Kátia Mika Nishimura, cientista política e pesquisadora do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Unicamp - que inclusive dispõe do banco de dados da Pesb -, faz análise que vai além da constatação quantitativa: “o dado mais perverso deste ordenamento social é que mesmo as maiores vítimas dos mais freqüentes tipos de preconceitos e discriminações - pobres, negros e mestiços - são também favoráveis à existência do ‘elevador de serviço' e de outros ‘lugares sociais' estabelecidos pelo autoritarismo social”, comenta ela em artigo publicado em 2004 na revista Opinião Pública (vol X, n.º 02), para explicar porque, muitas vezes, pessoas que estão na parte inferior da hierarquia social dizem concordar com atitudes que as oprimem. O artigo analisa dados do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb), também realizado em 2002, com amostra de 2.513 entrevistados, e que se aproximam das informações da Pesb trazidas por Almeida.

O fato da maioria da população brasileira dizer que prefere continuar usando o elevador de serviço e chamando o patrão de “senhor” pode ser sintomático da sua subserviência. Seria uma atitude compreensível de quem já experimentou amargamente “ousar sair do seu lugar social” e foi julgado abusado. Para Nishimura, a visão de mundo hierárquica compartilhada pelos brasileiros de renda baixa e com pouca escolaridade “pode revelar, sim, uma estratégia de sobrevivência”. Mas, acrescenta ela, “ainda assim seria uma estratégia conservadora, pois contribui para a manutenção de uma estrutura social hierárquica”.

"Machismo" feminino

Outro livro lançado recentemente e baseado em uma pesquisa do International Social Survey Programme (ISSP, na sigla em inglês) aponta o conservadorismo dos brasileiros quanto à divisão do trabalho doméstico e ao papel da maternidade. Novas conciliações e antigas tensões? Gênero, família e trabalho em perspectiva comparada indica que as mulheres brasileiras apresentam posturas mais machistas que os homens dos Estados Unidos e Suécia. Segundo Clara Araújo, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e uma das autoras do livro, os homens americanos e suecos teriam a “cabeça mais aberta” que as mulheres brasileiras. Em comparação com as suecas e americanas, as brasileiras dedicam o dobro de tempo ao trabalho doméstico. E um grande número concorda que esta seja de fato uma obrigação mais das mulheres do que dos homens.

Uma informação chama especial atenção no livro de Araújo, cuja autoria é compartilhada com Felícia Picanço (da Uerj) e Celi Scalon, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): o conservadorismo dos japoneses quando se trata de relações de gênero, apesar do elevado desenvolvimento sócio-econômico do Japão. O comentário de Araújo diante desta constatação contrapõe-se à crença de Almeida nas virtudes democráticas da escolarização: “Antes tínhamos uma visão muito linear da idéia de desigualdade de gênero: quanto mais desenvolvimento, maior a igualdade, e quanto maior a educação de um país, maior a consciência”. O exemplo do Japão mostra que as coisas não são bem assim. “No Japão todo mundo é altamente escolarizado e o nível de desenvolvimento é extremamente elevado. No entanto, existe por lá uma grande desigualdade no envolvimento masculino e feminino com o trabalho doméstico. Os homens trabalham, as mulheres ficam em casa e eles não se envolvem de forma alguma no trabalho doméstico”, explicou ela em entrevista para o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (Clam).

Liberalismo ou democracia?

Para José Álvaro Moisés, professor de ciência política da Universidade de São Paulo (USP), que também trabalhou com pesquisas de opinião pública sobre cultura política, liberalismo não é sinônimo de democracia, mas uma de suas variantes. No livro Os brasileiros e a democracia, Moisés argumenta que a democracia perdeu sua raiz igualitária diante do triunfo da democracia liberal, que enfatiza apenas a defesa da liberdade, da igualdade perante a lei, dos direitos individuais e da legalidade institucional. Em contraste com o que diz Almeida, alguns intelectuais que se dedicam a discutir o que é justiça social, como o vencedor do prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen, também criticam a idéia liberal de que a educação baste como “porta de oportunidades” para eliminar as desigualdades.