"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, janeiro 24, 2008

Resistir Infor - Jan 08

A dança macabra ritual da democracia estilo USA

por John Pilger

Xilo de Hans Holbein, século XVI. O antigo presidente da Tanzania, Julius Nyerere, certa vez perguntou: "Por que não temos o direito de votar nas eleições dos EUA? Certamente toda a gente com um receptor de TV já ganhou esse direito por aguentar aguentar bombardeamento impiedoso a cada quatro anos". Tendo coberto quatro campanhas para eleições presidenciais, dos Kennedys até Nixon, de Carter a Reagan, com os seus zeppelins de platitudes, seguidores robotizados e os rictos das esposas, posso simpatizar com ele. Mas que diferença faria o voto? Dos candidatos presidenciais que entrevistei, apenas George C. Wallace, governador do Alabama, falou a verdade: "Não há nem uma mínima diferença entre os Democratas e os Repúblicanos", disse ele. E estava certo.

O que me impressionou, a viver e trabalhar nos Estados Unidos, era que as campanhas presidenciais eram uma paródia, divertidas e muitas vezes grotescas. Elas são uma dança macabra ritual de bandeiras, balões e asneiradas, destinadas a camuflar um sistema venal baseado no poder do dinheiro, na divisão humana e numa cultura de guerra permanente.

Viajar com Robert Kennedy em 1968 foi revelador para mim. Para as audiências com os pobres, Kennedy apresentava-se como um salvador. As palavras "mudança" e "esperança" eram utilizadas incansavelmente e cinicamente. Para audiências de brancos timoratos, ele utilizava códigos racistas, tais como "lei e ordem". Com aqueles que se opunham à invasão do Vietnam, ele atacava "por os rapazes americanos na linha de fogo", mas nunca dizia quando ele os retiraria. Naquele ano (depois de Kennedy ter sido assassinado), Richard Nixon utilizava uma versão do mesmo discurso maleável para ganhar a presidência. Desde então, ele foi utilizado com êxito por Jimmy Carter, Ronald Reagan, Bill Clinton e os dois Bushes. Carter prometeu uma política externa baseada nos "direitos humanos" – e praticou o extremo oposto. A "agenda da liberdade" de Reagan foi um banho de sangue na América Central. Clinton "prometeu solenemente" cuidados de saúde universais e destruiu a última rede de segurança constituída na Depressão.

Nada mudou. Barack Obama é um lustroso Pai Tomás que bombardearia o Paquistão. Hillary Clientou, uma outra bombista, é anti-feminista. Uma das distinções de John McCain é que ele bombardeou pessoalmente um país. Todos eles acreditam que os EUA não estão sujeitos às regras do comportamento humano, porque é "uma cidade sobre uma colina", pouco importando que a maior parte da humanidade o vejam como um brutamontes monumental que, desde 1945, derrubou 50 governos, muitos deles democracias, e bombardeou 30 países, destruindo milhões de vida.

Se alguém se perguntar porque este holocausto não é uma "questão" na actual campanha, pode perguntar à BBC, a qual é responsável pela cobertura da campanha para grande parte do mundo, ou melhor ainda, Justin Webb, o editor da BBC para a América do Norte. Numa série da Radio 4 no ano passado, Webb apresentou a espécie de servilismo que evoca o apaziguador Geoffrey Dawson da década de 1930, então editor do London Times. Condoleezza Rice não pode ser demasiado mentirosa para Webb. Segundo Rice, os EUA estão a "apoiar as aspirações democráticas de todos os povos". Para Webb, quem acredita no patriotismo americano "cria um sentimento de felicidade e solidez", os crimes cometidos em nome deste patriotismo, tais como apoio à guerra e à injustiça no Médio Oriente durante os últimos 25 anos, e na América Latina, são irrelevantes. Na verdade, aqueles que resistem a tais épicos assaltos à democracia são culpados de "anti-americanismo", diz Webb, aparentemente inconsciente das origens totalitários desta expressão abusiva. Jornalistas na Berlim nazi condenavam os críticos do Reich como "anti-alemães".

Além disso, o seu melado acerca dos "ideais" e "valores nucleares" que compõem o "conjunto de ideias acerca da conduta humana" santificado pela América nega-nos o conhecimento verdadeiro da destruição da democracia americana: o desmantelamento da Carta de Direitos (Bill of Rights), do habeas corpus e da separação de poderes. Aqui está Webb no rastro da campanha: "[Isto] não é acerca da política de massa. É uma celebração do relacionamento entre um americano individual e o seu ou sua putativo comandante-em-chfe". Ele chama a isto "vertiginoso". E aqui está Webb sobre Bush: "Não vamos esquecer que enquanto os candidatos vencem, perdem, vencem outra vez... há um mundo para ser dirigido e o presidente Bush ainda está a dirigi-lo". A ênfase no texto da BBC realmente faz link para o sítio web da Casa Branca.

Nada destas asneiras é jornalismo. Isto é anti-jornalismo, digno de um cortesão menor de uma grande potência. Webb não é excepcional. O seu patrão, Helen Boaden, director da BBC News, enviou esta resposta a um tele-espectador que havia protestado pela preponderância da propaganda como base dos noticiários: "É simplesmente um facto que Bush tentou exportar democracia [para o Ir aque] e que isto tem sido penoso".

E a sua fonte para o dito "facto"? Citações de Bush e Blair a dizer que é um facto.

23/Janeiro/2008
O original encontra-se em http://www.johnpilger.com/page.asp?partid=471

Instituto Humanitas Unisinos - 24/01/08

Biofábricas. Universidade fará coelho transgênico para tratamento de hemofilia

Pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) esperam produzir até o fim do ano os primeiros coelhos transgênicos “biorreatores” do Brasil. Os animais serão modificados com um gene humano para que produzam, no leite, uma proteína usada no tratamento da hemofilia. O projeto é um dos poucos no País que trabalham com a transgenia animal para produção de fármacos, uma das áreas mais promissoras - e desafiadoras - da biotecnologia. A reportagem é de Herton Escobar e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 24-01-2008.

Outras iniciativas com animais transgênicos no Brasil incluem projetos com peixes e galinhas no Rio Grande do Sul, cabras no Ceará e bovinos na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Quase todos trabalham com a síntese de hemoderivados - proteínas isoladas do plasma humano para o tratamento de doenças.

Hoje, essas proteínas têm de ser produzidas diretamente do sangue humano ou cultivadas em células de hamster, a custos elevadíssimos. A alternativa seria induzir a produção “natural” dessas moléculas no leite, no sangue ou nos ovos de animais transgênicos. Assim, a proteína poderia ser literalmente ordenhada, purificada e enviada às farmácias, a um custo muito abaixo do atual.

No caso dos coelhos, os cientistas querem induzir a expressão do fator 9 de coagulação, que falta no sangue de pacientes hemofílicos do tipo B. Para isso, vão inserir no DNA do animal um gene humano, que servirá como vetor para direcionar a síntese do fator no leite. O gene é o da beta-caseína, uma proteína básica do leite.

A idéia, então, é acoplar o gene de expressão do fator 9 ao gene de expressão da beta-caseína e introduzi-los como um bloco no genoma do coelho. Assim, quando o genoma der a ordem para produzir a beta-caseína, o fator 9 será produzido também automaticamente no leite.

A técnica já foi testada com sucesso em camundongos. Agora, é a vez de um animal maior. “Fazer o vetor é fácil. O desafio é conhecer a fisiologia do animal e colocar o DNA lá dentro”, diz o biólogo molecular João Bosco Pesquero, que coordena o projeto na Unifesp. A pesquisa, por enquanto, está na fase embrionária - literalmente. Os cientistas estão aprendendo a trabalhar com os embriões de coelhos para depois inserir o DNA humano e transferi-los de volta aos animais para gestação.

“Uma vez dominada a técnica, podemos introduzir o gene que quisermos, para produção de vários outros fatores”, afirma Pesquero, organizador do primeiro Simpósio Brasileiro de Tecnologia Transgênica, marcado para março, em São Paulo. A palestra de abertura do evento será dada por Oliver Smithies, cientista que recebeu o Prêmio Nobel de Medicina no ano passado pela descoberta da técnica de “nocaute genético”, que permite a produção de animais geneticamente modificados para o estudo de doenças.

BIOFÁBRICAS

Animais geneticamente modificados para produzir moléculas de interesse comercial são chamados de biofábricas ou biorreatores. Vários laboratórios no mundo estão trabalhando com a tecnologia, utilizando diferentes animais e moléculas. Alguns produtos já estão chegando ao mercado.

No Brasil, o campo está engatinhando. Na Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), no Rio Grande do Sul, pesquisadores estão trabalhando com aves e peixes geneticamente modificados, também para produção de componente do sangue: eritropoetina e albumina, respectivamente.

No caso da galinha, a proteína seria expressa na clara dos ovos. “Em uma escala de zero a dez, eu diria que estamos no nível seis de domínio da tecnologia”, avalia o pesquisador Tiago Collares, um dos coordenadores da pesquisa. Nos peixes, a idéia é induzir a expressão da albumina humana no sêmen do jundiá, um tipo de bagre da região. “Estamos num estágio bem inicial”, diz o pesquisador Heden Moreira.

Na Universidade Estadual do Ceará, o pesquisador Vicente Freitas produziu em 2006 um cabrito transgênico com o gene humano da proteína G-CSF, usada no tratamento de pacientes com sistema imunológico debilitado. Mas o animal morreu aos 19 dias, vítima de infecção. Agora, o cientista aguarda para março o resultado de uma nova leva de 19 gestações, com fetos potencialmente transgênicos. “A tecnologia está dominada. Acredito que agora é só uma questão de repetir os experimentos”, aposta Freitas.

Instituto Humanitas Unisinos - 23/01/08

Mortalidade de crianças no Brasil caiu 65% desde 1990

A mortalidade de crianças com menos de cinco anos caiu 65% entre 1990 e 2006. A queda, acentuada a partir de 2004, fez o país melhorar 27 posições no ranking desse indicador, que foi divulgado ontem no relatório "Situação Mundial da Infância 2008", do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). A reportagem é de Ângela Pinho e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 23-01-2008.

Em 2006, o Brasil aparece na 113ª posição entre 196 países -o primeiro colocado, Serra Leoa, é o que apresenta pior índice. Em 2004, estava em 88º e, em 1990, em 86º.

Os países com os melhores índices são, empatados, Suécia, Cingapura, San Marino, Liechtenstein, Islândia e Andorra.

Entre 2004 e 2006, o declínio no Brasil foi de 41% -morriam 34 crianças a cada mil nascidos vivos, contra 20 em 2006, os últimos dados disponíveis. O índice é superior aos 40% de queda registrados de 1990, quando morriam 57 a cada mil nascidos vivos, para 2004.

A taxa de mortalidade nessa idade também caiu no mundo todo, mas em um ritmo menor -25% de 90 a 2006. Isso ajuda a explicar o salto brasileiro de 27 posições no ranking.

Para Marie-Pierre Poirier, representante do Unicef no Brasil, um dos principais fatores foi a redução das mortes por sarampo, com aumento da cobertura da vacina e suplementação de vitamina A.

A redução é, em regra, maior entre os países em desenvolvimento - nas ilhas Maldivas, por exemplo, foi de 73% entre 1990 e 2006.

Não por acaso, uma das explicações para a queda mais acentuada no Brasil é o fato de o país partir de um patamar mais alto de mortalidade do que os países desenvolvidos. "[A redução] Tem que ser para todos; não podemos celebrar só os 80% mais fáceis", diz Poirier.

A explicação da ampliação da cobertura do sarampo não se aplica para explicar o caso brasileiro, na opinião de Paulo Nader, presidente do departamento de neonatologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, já que o país já controlou a doença há anos.

Para ele, o avanço da queda da mortalidade na infância concentrado entre 2004 e 2006 reflete mudanças ocorridas nos anos anteriores, desde o maior acesso a saneamento básico até os indicadores de educação.

O mais preocupante, na sua avaliação, é a mortalidade de recém-nascidos. Segundo o Unicef, caiu pela metade o número de crianças mortas no primeiro ano de vida a cada mil nascidas vivas. Dessas, porém, 56% morreram na primeira semana e 66%, no primeiro mês.

Nesse sentido, o relatório específico sobre o Brasil divulgado ontem traz uma má notícia: o percentual de mulheres que fazem o mínimo ideal de consultas pré-natais (seis) diminuiu seis pontos percentuais no Norte brasileiro entre 1998 e 2005, contrariando o aumento no país todo, de 9 pontos.

IDH infantil

O relatório do Unicef mostra que, se o país comemorou em 2007 a entrada no grupo de países de alto desenvolvimento humano, no "IDH da criança" - o índice de desenvolvimento infantil- ainda está no grupo de médio desenvolvimento.

O IDI leva em conta a quantidade de crianças menores de 6 anos morando com pais com escolaridade precária; cobertura vacinal em menores de 1 ano; cobertura pré-natal de gestantes e quantidade de crianças matriculadas na pré-escola.

Como não há esses indicadores para todos os países, não é possível fazer uma comparação internacional, mas apenas entre os Estados brasileiros.

O país melhorou o seu IDI, que era de 0,609 em 1999 e passou para 0,733 em 2006 (dado mais recente disponível). Para entrar na categoria de alto índice de desenvolvimento infantil, porém, precisaria alcançar 0,800. Semelhante ao IDH, o índice tem uma escala de 0 a 1.

De acordo com a lista divulgada pelo "caderno Brasil" do relatório do Unicef, o melhor Estado para a criança é São Paulo, seguido por Santa Catarina e Rio de Janeiro. Nas últimas colocações vêm Piauí, Alagoas e, por fim, o Acre.

Instituto Humanitas Unisinos - 23/01/08

Atualmente 70% da água doce consumida no mundo é concentrada na produção de alimentos e tecidos

"Na produção de cada litro de gasolina são necessários 2,5 litros de água. Em média, as safras plantadas para produzir bioenergia utilizam pelo menos mil litros de água para gerar 1 litro de biocombustível. São necessários 2,7 mil litros de água para a produção de uma camiseta de algodão; até 4 mil litros para produzir um quilo de trigo; e 16 mil litros para produzir um quilo de carne bovina", constatam Klaus Schwab, undador e presidente-executivo do World Economic Forum; e Peter Brabeck-Letmathe é presidente e chief-executive officer da Nestlé, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 23-01-2008. Informando que este será um dos temas a ser discutido em Davos, eles afimam que "não possuímos água suficiente para suportar a demanda global por alimentos nas próximas décadas sem mudanças urgentes e fundamentais para o uso da água na agricultura".

Eis o artigo.

Com economias e populações crescentes, o mundo está à beira de uma crise de abastecimento de água. É importante ter consciência exatamente de qual o montante de água necessário para fazer a economia funcionar. Na produção de cada litro de gasolina são necessários 2,5 litros de água. Em média, as safras plantadas para produzir bioenergia utilizam pelo menos mil litros de água para gerar 1 litro de biocombustível. São necessários 2,7 mil litros de água para a produção de uma camiseta de algodão; até 4 mil litros para produzir um quilo de trigo; e 16 mil litros para produzir um quilo de carne bovina. Até a produção das necessidades mais básicas da economia, como cimento, aço, químicas, mineração e geração de energia precisam de toneladas de água.

Em 2007 testemunhamos o impacto nos preços dos alimentos causado pela combinação de seca e migração de safras para a produção de biocombustíveis. A água é o maior problema que podemos ver nesse assunto, pois tem o potencial de gerar um impacto muito mais profundo nos consumidores e eleitores. Nas áreas agrícolas ao redor do mundo, que ajudam a alimentar populações urbanas de rápido crescimento, estamos nos aproximando do momento em que serão necessárias concessões dolorosas. Devemos usar a água tão escassa para alimentos, combustível, pessoas e cidades ou para o crescimento industrial? Qual a quantidade exata de água de um rio que pode ser represada? Como encontramos medidas para garantir que cada participante da economia consiga receber a água necessária para suas necessidades humanas e aspirações culturais e econômicas? E como podemos garantir a preservação do meio ambiente e seu desenvolvimento?

São perguntas difíceis. Ao contrário da redução de carbono, não existe uma alternativa, nenhum substituto. E não existe uma solução global que possa ser negociada. A água é local, por isso bacias de água serão pontos de grande tensão no futuro. São áreas grandes, que alimentam os maiores rios do mundo. Essas regiões abrigam milhões de pessoas, áreas para agricultura, florestas, cidades, indústrias e, freqüentemente, atravessam várias fronteiras políticas. A água utilizada para agricultura, na produção de alimentos e tecidos, será estudada com atenção - atualmente 70% da água doce consumida no mundo é concentrada nesses setores.

A pedido do International Water Management Institute, 500 cientistas testaram a água usada para a agricultura. O relatório desse estudo levou cinco anos para ser produzido e mostrou que não possuímos água suficiente para suportar a demanda global por alimentos nas próximas décadas sem mudanças urgentes e fundamentais para o uso da água na agricultura.

As mudanças climáticas devem acelerar esse processo, tornando-o ainda pior. O último relatório do IPCC mostrou que, se as temperaturas médias globais subirem em 3 graus Celsius, centenas de milhões de pessoas sofrerão com a falta de água. Esse é o alerta que precisávamos para começar a agir.

Os indícios dessa crise devem começar a aparecer nos próximos anos. E isso tudo em conjunto com a situação moralmente indefensável de 20% da população global que ainda vive sem acesso à água potável.

Mas ainda não é uma catástrofe. A solução se encontra em uma ação coletiva. As empresas podem otimizar a utilização da água e conseguir avanços significativos. Existem muitos casos de sucesso. Mas todos devem trabalhar juntos para mudar o cenário. Isso torna o desafio ainda mais difícil. Ainda há tempo para enfrentar esse problema. Com rapidez, inovação e novas formas de colaboração entre governo e empresas essa crise ainda pode ser evitada.

É nesse contexto que estaremos nos reunindo no Encontro Anual do World Economic Forum para debater o perfil político e econômico da água - para conscientizar colegas de trabalho, políticos e a sociedade sobre a necessidade de mudança para enfrentar esse desafio. Como podemos começar agora para garantir um mundo com água suficiente para todos no futuro, inclusive para nossos próprios negócios, até 2020? O nosso objetivo nessa reunião em Davos, na Suíça, é de criar uma Parceria Público-Privada inédita, de alto impacto, para ajudar a encontrar meios de gerir as necessidades futuras de água antes que haja uma crise.

Instituto Humanitas Unisinos - 23/01/08

‘O imperativo categórico era punir quem agiu mal. Mas, quando quem agiu mal fui eu, que se estrepe o imperativo categórico’, afirma Delfim

“Nunca existiu (moral no mercado). Essa é uma brincadeira”, constata Antonio Delfim Netto, economista e ex-ministro da Fazenda e do Planejamento dos governos da ditadura militar, ao comentar a intervenção do Banco Central americano no mercado financeiro, ontem, em entrevista concedida a Toni Sciarretta e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 23-01-2008.

Eis a entrevista.

O que o Fed [Federal Reserve, o banco central dos EUA] fez foi estimular o "moral hazard" [risco moral de socorrer investidores]?

O "moral hazard" só existe quando você não está desesperado. Por anos, eles [os EUA] pregaram o "moral hazard" e agora dizem que não tem a mínima importância.

Essa é uma discussão esvaziada?

Esse é o tipo de discussão que era muito boa na economia. Quando está correndo o risco de desabar tudo, eles dizem "agora a gente esquece e depois inventa outra teoria". Mas na segunda as pessoas estavam apavoradas porque perderam 16% na Bolsa. E agora querem continuar com esse risco. Ainda que isso pareça uma coisa cínica, nos comportamentos de mercado os princípios morais sem custo não valem.

O que acontece? O imperativo categórico era punir quem agiu mal. Mas, quando quem agiu mal fui eu, que se estrepe o imperativo categórico.

O sr. quer dizer que quem agiu mal foi o Fed?
Não tenho a menor dúvida. Isso é um conluio. Esses gênios descobriram mil formas de iludir o controle do Fed.

O sr. acha que o Fed está nas mãos do mercado?

O Fed mentiu o tempo todo de que controlava tudo. O Fed fingiu que estava tudo bem. As agências de risco fajutas também fingiam que estava tudo bem. Os bancos honestíssimos punham todas as porcarias fora dos seus próprios balanços. Viraram alquimistas, transformando cocô em ouro e vendendo para otário.

Então, não há mais moral no mercado?

Nunca existiu. Essa é uma brincadeira. O Brasil está acostumado com esse jogo. Agora mesmo se faz uma chantagem dizendo que, se não prometer que não aumenta imposto, não se aprovará a DRU [Desvinculação de Receitas da União]. O governo dá a palavra e depois aumenta o imposto.

O Fed foi vítima dessa chantagem?

Foi vítima não, foi conivente. Ele ignorava realmente o que estava acontecendo. Fingia que sabia. Na verdade era uma posição altamente confortável. É freqüente na história financeira do mundo que, quando você tem durante algum tempo suficientemente longo lucros polpudos, vai afrouxando o controle de risco. Até que um dia a casa cai. E eu não tenho dúvida de que eles baixaram 0,75 e depois na reunião do dia 30 são capazes de baixar mais 0,25. Vão inundar isso de liquidez, e o que vai acontecer? Depois da eleição, vamos analisar como é que fica.

E o Brasil?

Você vê que nossa Bolsa está subindo. Qual é a explicação? Nós continuamos sendo o último peru disponível fora do Dia de Ação de Graças. Por quê? Onde que você vai colocar seus dólares? No Brasil, porque é a coisa mais segura do mundo. Tem US$ 180 bilhões de reservas. Pode fazer três anos de besteira sem causar problema.

Bernanke seguiu a mesma receita de Greenspan?

Já não se fazem mais presidentes do Fed como Paul Volcker [antecessor de Greenspan]. Agora só se fabricam Greenspans e Bernankes. É a receita clássica: panos quentes e nhenhenhém. Volcker teria feito os bancos pagarem preço caríssimo. Quem não agüentar seria vendido. Estamos no mundo do "anti-moral hazard".

Como as coisas seguem?

Tudo vai continuar como era antes. Vai haver uma acomodação lenta. Claro que o Brasil faz parte do mundo. O Brasil não vai poder apelar: "Pára o mundo que eu quero descer". O Brasil está aí, vai ter efeitos sobre a crise, mas, na minha opinião, muito amenos.




terça-feira, janeiro 22, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 22/01/08

Pânico derruba bolsas no mundo

O mercado financeiro enterrou ontem a tese do “descolamento”, segundo a qual a economia global seria hoje menos dependente dos Estados Unidos. A percepção, agora, é de que o mundo poderá sofrer, e muito, com uma eventual recessão americana, o que provocou uma onda de pânico entre os investidores. A reportagem é de Leandro Modé e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 22-01-2008.

As bolsas de valores despencaram na Ásia, na Europa e na América Latina. Nos EUA, o mercado não funcionou por causa do feriado de Martin Luther King Jr.

O Índice da Bolsa de Valores de São Paulo (Ibovespa) recuou 6,60%, maior queda desde 27 de fevereiro de 2007. O Índice Merval, da Bolsa de Buenos Aires, perdeu 6,27%. Na Bolsa de Lima, a queda de 8,38% do Índice IGRA foi a maior desde 1995.

“Os recentes dados das economias desenvolvidas, como Japão e União Européia, colocaram em dúvida a tese do decoupling”, disse o economista do banco JP Morgan Julio Callegari, citando a palavra inglesa que tem sido usada para descolamento.

“A economia japonesa, que já teve um fraco desempenho em 2007, está desacelerando ainda mais”, afirmou. “Na Europa, a inflação está em nível elevado, o que impede o banco central de cortar o juro (o que estimularia a atividade econômica).” Nesse cenário, disse Callegari, “crescem as incertezas sobre os países emergentes”.

Os analistas que defendem a idéia do “descolamento” têm argumentado que o crescimento global seria pouco afetado pela desaceleração dos EUA graças ao vigor dos emergentes. A economia chinesa, por exemplo, avançou, em média, 11% nos últimos anos.

Apesar do pânico entre os investidores, Alexandre Póvoa, economista do Banco Modal, não se impressionou. “Havia um claro descompasso entre os preços dos ativos financeiros e os resultados dos indicadores econômicos”, disse. Segundo ele, os investidores abraçaram várias teses nas últimas semanas, que acabaram não se confirmando. “Acreditava-se que os preços das commodities não cairiam, o que segurou um pouco a Bovespa”, exemplificou. “Agora já se aceita essa idéia.”

Em Brasília, o presidente Lula disse que está de olhos “bem abertos” e garantiu que, se necessário, tomará medidas para evitar reflexos da crise dos EUA no Brasil.

Nesta manhã, os portais dos principais jornais do mundo, noticiam uma nova queda nas principais bolsas da Ásia e da Europa.

segunda-feira, janeiro 21, 2008

Le Monde Diplomatique Brasil - Jan 08

Os "poliglotas descalços"

Henry Kissinger será lembrado tanto pela diplomacia pouco convencional e extremamente ágil que praticou quanto pelo lado sangrento de suas decisões e iniciativas. Ainda muito influente, ele jamais escondeu a importância que têm, para os EUA, políticos latino-americanos como Carlos Menem e FHC

José Luís Fiori

Heinz Alfred Kissinger, diplomata norte-americano mais influente da segunda metade do século 20, nasceu em Fürth, na Alemanha, em 1923. Imigrou para os Estados Unidos, e nacionalizou-se norte-americano em 1943, antes de doutorar-se na Universidade de Harvard, em 1954, onde foi, até 1971, professor e diretor do Centro de Estudos Internacionais, e do Programa de Estudos de Defesa. Apesar disso, Henry Kissinger não foi um acadêmico. Foi sobretudo, consultor, funcionário e executivo da segurança nacional, e da política externa norte-americana. De 1953 até o final da sua gestão, foi Conselheiro de Segurança da Presidência, no governo de Dwight Eisenhower. Entre 1968 e 1976, atuou como Secretário de Estado das administrações de Richard Nixon e Gerald Ford. Nesse último período, em particular, Henry Kissinger exerceu uma diplomacia pouco convencional e extremamente ágil, como formulador e operador direto de suas próprias decisões, cioso de suas idéias e do seu poder pessoal e institucional. Foi nessa época que tomou algumas decisões e liderou iniciativas do governo norte-americano, que deixaram marcas profundas na história da segunda metade do século 20.

Entre suas iniciativas com sinal “positivo”, destacam-se: a distensão das relações com a União Soviética e a negociação dos tratados de “não proliferação nuclear”, de “limitação das armas estratégicas” e de controle dos “mísseis balísticos”, na década de 70; as negociações de paz, no Vietnã, que levaram à assinatura dos Acordos de Paris, em 1973; e, finalmente, a mais famosa de suas acrobacias diplomáticas, as viagens secretas a Pequim, e suas negociações pessoais, com Chou en Lai e Mao Tse Tung, em 1971 e 1972, que levaram à reaproximação dos Estados Unidos com a China, nas décadas seguintes. Por outro lado, entre suas decisões e iniciativas “sangrentas”, destacam-se: a autorização do bombardeio aéreo do Camboja e do Laos, tomada sem a autorização do Congresso Americano, em 1969; o apoio à guerra do Paquistão com a Índia, no território atual de Bangladesh, em 1971; o apoio e financiamento ilegal da invasão do Chipre, pela Turquia, em 1974; o apoio à invasão sul-africana de Angola, em 1975; e finalmente, também em 1975, o apoio à invasão do Timor Leste, pela Indonésia, que se transformou numa ocupação de 24 anos e custou 200 mil vidas. Separadamente, a América do Sul ocupa um lugar de destaque, nessa lista “negra”, das grandes decisões tomadas por Henry Kissinger, entre 1968 e 1976. Basta ler os documentos oficiais norte-americanos, que já estão disponíveis, e as várias pesquisas jornalísticas e acadêmicas que apontam para o envolvimento direto do ex-Secretário de Estado norte-americano com a preparação e execução dos violentos golpes militares que derrubaram os governos eleitos do Uruguai e do Chile, em 1973, e da Argentina, em 1976. Além disso, existem inúmeros processos judiciais — em vários países [1] — envolvendo Henry Kissinger com a Operação Condor, que integrou os serviços de inteligência das Forças Armadas da Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, para seqüestrar, torturar e assassinar personalidades políticas de oposição.

O apoio de Kissinger, e da diplomacia norte-americana a tais “intervenções militares”, que se caracterizaram por sua extraordinária truculência, sempre causou perplexidade entre os analistas. Mas não é difícil de entender o que aconteceu quando se olha para os interesses estratégicos dos Estados Unidos e sua defesa na América do Sul, da perspectiva de longo prazo, traçada por Nicholas Spkyman [2], em 1942 [3]. Spykman definiu o continente americano, do ponto de vista geopolítico, como primeira e última linha de defesa da hegemonia mundial dos Estados Unidos. Dentro desse hemisfério, ele considerava improvável que surgisse um desafio direto à supremacia dos Estados Unidos, na “América Mediterrânea”, onde ele incluía o México, a América Central e Caribe, e também, a Colômbia e a Venezuela. Mas ele considerava que poderia surgir um desafio dessa natureza na região do ABC, no Cone Sul da América. E em tal caso, ele considerava inevitável o recurso à guerra. A sigla ABC, refere-se a Argentina, Brasil e Chile, mas a região do ABC inclui, também, o território do Uruguai e do Paraguai – ou seja, inclui exatamente os mesmos cinco países que estiveram envolvidos na Operação Condor. Nesse sentido, pode-se dizer que Henry Kissinger seguiu rigorosamente as recomendações de Nicholas Spykman com relação ao controle dessa região geopolítica. Sua única contribuição pessoal foi a substituição da “guerra externa”, proposta por Spykman, pela “guerra interna” das Forças Armadas locais contra setores de suas próprias populações nacionais. Mas, mesmo nesse ponto, Kissinger não foi original: recorreu ao método que havia sido utilizado pelos ingleses, na Índia, durante 200 anos. E em todos os lugares em que a Grã Bretanha dominou Estados fracos, utilizando suas elites divididas e subalternas, para controlar as suas próprias populações locais.

Nas décadas de 80 e 90, Henry Kissinger afastou-se da diplomacia direta, mas manteve sua influencia pessoal e intelectual dentro do establishment norte-americano e entre as elites conservadoras sul-americanas. Em 2001, ele publicou um livro sobre o futuro geopolítico, e sobre a defesa dos interesses norte-americanos ao redor do mundo. Com relação à América do Sul, o autor atenuou a forma, mas manteve o “espírito” de Spykman: segundo Kissinger, a América do Sul segue sendo essencial para os interesses norte-americanos, devendo ser mantida sob a hegemonia dos Estados Unidos. Só que hoje, a ameaça a essa hegemonia já não vem da Alemanha, nem da União Soviética, vem de dentro do próprio continente. No plano econômico: dos projetos de integração regional que excluam ou se oponham à ALCA. E no plano político: dos populismos e nacionalismos que, segundo ele, estão renascendo no continente. Por fim, mesmo que não tenha escrito de forma explícita, o entusiasmo demonstrado por Kissinger, com as reformas liberais dos anos 90, e com os governos de Menem e Cardoso, não deixa dúvidas com relação a sua preferência e estratégia atual, para a “região do ABC”: depois dos militares, os “poliglotas descalços”.


[1] O interesse sobre o assunto foi reavivado recentemente, pelo livro do jornalista Chistopher Hitchens, The Trial of Henry Kissinger (2003), e pela resenha de Kenneth Maxwelll, do livro de Peter Kornbluh, The Pinochet file: a Desclassified Dossier on Atrocity and Accountability, publicado na revista Foreign Affairs, de dezembro de 2003, sobre as relações de Kissinger com o regime de Augusto Pinochet, em particular com o assassinato do diplomata chileno Orlando Letelier, em Washington, 1976.

[2] Ler, de José Luís Fiori, em Le Monde Diplomatique Brasil, ["Nicholas Spykman e a América Latina"->2062

[3] Kissinger, H., (2001), Does America Need a Foreign Policy. Toward a Diplomacy for the 21 st Century, Simon&Schuster, New York


José Luís Fiori é colaborador do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique.

Le Monde Diplomatique Brasil - Jan 08

Ilusões do ambientalismo de mercado

Uma das bases em que se apóia o Protocolo de Kyoto é tentar reduzir as emissões de CO2 impondo penalidades monetárias aos países e agentes poluidores. Mas bastam alguns cálculos simples para revelar a ilusão de tal fórmula

Manoel Neto, Flávio Shirahige

O Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) da ONU estima que devemos impedir que a temperatura média global suba 2°C ao longo deste século. De outro modo, sistemas ecológicos entrariam em colapso e muitos sofreriam de seca, enchentes e fome. Utilizando dados mais atuais, estudos de organizações como o Greenpeace sugerem que deveríamos cortar as emissões de CO2 pela metade até 2005, tomando por base os níveis atuais. Previsões mais pessimistas, publicadas na Geophysical Research Letters, pela equipe liderada por Andrew Weaver, apostam que essa redução deveria ser de 90% nas emissões desse mesmo gás.

O Protocolo de Kyoto, que expira em 2012 e não foi implementado pelos EUA, foi a primeira tentativa mundial de atenuar as emissões de CO2, adotando uma solução de mercado. O resultado não foi muito animador, na medida em que as emissões globais de dióxido de carbono aumentaram cerca de 7% no período de 1998 — quando foi assinado o Protocolo — a 2005, ano que entrou em vigor. Será que soluções de mercado seriam capazes de resolver o problema do aquecimento global? Quais as conseqüências dessa opção?

Antes de mais nada, é bom entender qual o funcionamento do mercado em sua base mais fundamental. O princípio básico do mercado é a troca e. Em uma economia monetarizada, ela é intermediada pelo dinheiro. Se alguém paga 100 reais em uma roupa, é porque acha melhor ter aquela roupa do que permanecer com os 100 reais — ainda que reclame do preço.

Desse ponto de vista o mercado é algo bom: a troca, sendo voluntária, não pode piorar o bem-estar de alguém. Além disso, a troca tem o aspecto positivo de afetar apenas as pessoas envolvidas na transação. Se troco 100 reais por um livro, isso não afeta o bem-estar de mais ninguém. E se você troca 1000 reais por uma bolsa Louis Vuitton, isso diz respeito apenas a você e à pessoa que lhe vendeu a bolsa. Dessa forma, a troca permite que os envolvidos aumentem seu bem-estar sem diminuir o de outros, o que obviamente é algo desejável.

Contudo, há algumas trocas ou operações de mercado que afetam o bem-estar de outras pessoas. Se uma empresa, ao produzir uma mercadoria, polui um rio, essa poluição afeta o bem-estar das pessoas que utilizam as águas de alguma forma — mesmo que a transação do bem produzido fique restrita à empresa e ao consumidor final. Esse tipo de situação, na qual uma transação de mercado gera um efeito colateral para terceiros não envolvidos na troca, é chamada pelos economistas de externalidade, justamente pelo fato de que alguns de seus efeitos são externos aos envolvidos diretamente na transação.

Como se vê, as externalidades são uma falha do mecanismo de mercado, pelo menos no sentido de que causam efeitos colaterais de forma não-voluntária — isto é, de forma forçada sobre indivíduos que não são consultados sobre suas preferências.

Uma possibilidade de resolver o problema das falhas de mercado como as externalidades é encontrar uma forma de levar em consideração as preferências das pessoas que sofrem os efeitos colaterais. No exemplo da poluição do rio, poderíamos imaginar uma situação na qual as pessoas que utilizam o rio podem, à empresa poluidora, seu direito à água limpa. Se a empresa considerar válido o preço que deve pagar para poder poluir o rio, mais o custo usual de produção da mercadoria; e se os consumidores estiverem dispostos a pagar esse acréscimo, então teremos uma situação na qual nenhuma pessoa afetada pela transação de mercado deixou de ter sua preferência considerada.

A preservação do ambiente seria contrária à distribuição de renda?

O protocolo de Kyoto segue idéia semelhante, ao distribuir metas de poluição para os países desenvolvidos. Caso estes países ultrapassem suas metas, devem comprar o direito de poluir de outros países (em desenvolvimento) que tenham feito reduções de poluição. Em suma, a redução na poluição num lugar poder ser vendida como direito de poluir em outro lugar.

Ora, se imaginarmos uma solução efetiva para o problema do aquecimento global, o que aconteceria? Para que as emissões de CO2 fossem reduzidas em 90%, teríamos que virtualmente descarbonizar completamente a economia mundial. Isso significa que o custo de emitir CO2 deve ser incorporado no custo de produção e consumo de cada empresa e indivíduo, de forma a desestimulá-los, voluntariamente, a produzir ou consumir bens que emitam CO2.

Para tanto, seria necessário que as cotas de poluição fossem muito poucas, próximas a zero, aumentando muito o preço do direito de poluir – se a oferta é pouca e a procura é muita, o preço sobe. Como esse aumento no custo deve ser incorporado nos preços dos produtos, observaríamos um aumento brutal nos preços dos produtos mais poluentes relativamente aos bens menos poluentes.

Tal mudança nos preços claramente iria favorecer a produção de bens de consumos limpos. Porém, na medida em que a matriz energética mundial é predominantemente suja e leva tempo para se alterá-la, no curto e médio prazo a única solução possível é que muitas pessoas deixem de consumir produtos tão caros. Como conseqüência, em termos de acesso aos bens de consumo, teríamos uma brutal regressão na distribuição de riqueza entre os países e entre as pessoas, agravando muitíssimo a já ruim distribuição de renda.

Como se vê, a saída de mercado para o aquecimento global é politicamente muito difícil e envolverá a administração de muitas perdas econômicas, com uma substantiva piora na distribuição de renda. No fundo, o sonho ingênuo de que o bem-estar de todos poderia ser aumentado por meio da generalização da economia de mercado para todo o mundo se revela impossível com a restrição ambiental. O consumo de uns deve necessariamente significar o desconsumo de outros, ainda que “voluntariamente”. Essa é a solução estritamente de mercado para o problema ambiental. É bom não ter ilusões...

Manoel Neto e Flávio Shirahige são colunistas do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique.

Le Monde Diplomatique Brasil - Jan 08

Por que os bancos choram

Há duas razões para a gritaria dos banqueiros, após o aumento de impostos decidido pelo governo. Rompeu-se a lógica de conceder sucessivos benefícios fiscais ao setor financeiro. E fica claro que é possível uma reforma tributária verdadeira, capaz de reduzir a concentração de renda

Evilásio Salvador

O ano começou com o mini pacote tributário e fiscal de ajuste das contas públicas, para suprir a perda de R$ 40 bilhões de arrecadação, devido à rejeição da CPMF pelo Senado Federal. As medidas de ajuste anunciadas pelo governo são basicamente três: a) elevação das alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e da Contribuição Social do Lucro Líquido (CSLL) paga pelas instituições financeiras, que passou de 9% para 15%; b) corte de R$ 20 bilhões no orçamento; e, c) a expectativa de uma arrecadação extraordinária de R$ 10 bilhões, em função das mudanças de estimativas da inflação e do crescimento do PIB.

As medidas do governo foram seguidas de manifestação de representantes de entidades da sociedade civil, organizações populares, movimentos sociais, intelectuais e religiosos. Intitulado "Por uma Reforma Tributaria Justa”, o documento apóia uma reestruturação do sistema de impostos e defende a tributação do setor financeiro. Já a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), como seria de esperar, reagiu e criticou a elevação das alíquotas.

Neste artigo, vamos argumentar que o aumento da CSLL paga pelos bancos é uma medida importante. Em primeiro lugar, justiça fiscal significa onerar mais aqueles que têm maiores condições de contribuir com a manutenção do Estado e dos serviços públicos. Todos sabem que o setor financeiro, é um dos mais beneficiados pela política econômica pós-Plano Real. [1]. Ele tira proveito dos três sustentáculos desta política: elevada taxa de juros, superávit primário e câmbio valorizado. O resultado é evidente: ano após ano, os lucros bilionários dos bancos batem novos recordes.

Os privilégios de que desfrutam os banqueiros vêm, aliás, de longa data, como demonstra um estudo desenvolvido pelo professor Ary Minella, em seu livro sobre esta classe social e sua influência política. [2]. Entre as transformações do setor financeiro no país, ao longo dos anos, uma das mais marcantes é sua vinculação crescente à dívida pública interna e aos juros pagos pelo Estado — por meio de operações com os títulos públicos [3]. Além de tranferir-lhes parte importante da renda nacional, o Estado os protege das crises. Vale lembrar, por exemplo, o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (PROER), em 1995, uma espécie de “socorro” para recuperar, com fundos públicos, as instituições financeiras então em dificuldades.

O setor mais beneficiado pela política econômica é, além disso, sempre privilegiado com impostos baixos

Porém, apesar dos privilégios desfrutados pelo setor financeiro, uma das questões que mais chama atenção quando se estuda o sistema tributário brasileiro é a baixa tributação dos bancos. Em artigo de nossa autoria, batizamos essa situação de “paraíso tributário dos bancos” [4].

Seria impossível, neste artigo, relacionar a longuíssima série de decisões políticas que tem garantido esta desoneração injusta. Fiquemos nas mais recentes. A partir de 1996, a Lei 9.249 instituiu o conceito de "juros sobre o capital próprio". Trata-se de uma medida artificial, que favorece os bancos e empresas bastante capitalizadas. Uma parte do lucro apurado pelas pessoas jurídicas é considerada despesa e, em vez de recolhida ao Tesouro — na forma de Imposto de Renda (IRPJ) e CSLL —, pode ser distribuída aos acionistas. É como se as pessoas físicas pudessem, ao fazer a declaração anual de Importo de Renda, deduzir, dos rendimentos obtidos, a remuneração financeira potencial de seu patrimônio.

O favorecimento pode ser constatado em números. Entre 2002 e 2004, os lucros de 216 empresas de capital aberto estudadas pelo jornal Valor saltaram de R$ 3,99 bilhões para R$ 49,72 bilhões — ou seja, multiplicaram-se por 12. No entanto, as provisões para pagamento de IR e CSLL aumentaram apenas seis vezes (de R$ 2,19 bilhões para R$ 12,28 bilhões). [5]. A redução da carga tributária é igualmente expressiva quando examinadas apenas as instituições financeiras. Nos últimos sete anos, seus lucros cresceram 5,5 vezes. Já a tributação — que incide sobre o resultado, e portanto deveria acompanhar este índice — aumentou apenas 2,7 vezes. A CSLL das instituições financeiras, um dos tributos que financia a seguridade social (Previdência, Assistência Social e Saúde), cresceu somente 122,76%.

Estima-se que, só em 2006, o mecanismo permitiu que bancos e empresas deixassem de pagar R$ 22 bilhões, em IR e CSLL. Sozinhos, os cinco maiores bancos nacionais pagaram a seus acionistas, a título de "juros sobre capital próprio" um montante de R$ 6 bilhões. O valor distribuído proporcionou uma redução nas despesas com encargos tributários desses bancos no montante de R$ 2,1 bilhões (IRPJ e CSLL).

Pouco mais tarde, em 2006, outro presente. O governo editou a MP 281, reduzindo a zero as alíquotas de IR e de CPMF para certos investidores estrangeiros no Brasil. As operações beneficiadas pela MP são cotas de fundos de investimentos exclusivos para investidores não-residentes, que possuam no mínimo 98% de títulos públicos federais. Novamente, o grande beneficiado é o setor financeiro. Após a MP 281, vem crescendo o interesse dos bancos estrangeiros com filiais no Brasil em emitir, no exterior, bônus indexados em reais. Eles lançam tais papéis pagando juros abaixo do Depósito Interfinanceiro (DI), e ingressam no país os recursos obtidos, utilizando-se da condição de favorecida de "investidores estrangeiros". Compram, em seguida, títulos do Estado, remunerados segundo o DI. Ganham a diferença realizando uma operação de arbitragem.

Para que o "andar de cima" contribua, tributar a renda elevada e o patrimônio

Os Boletins de Arrecadação da Receita Federal revelam que, entre 2000 a 2006, os bancos recolheram ao Tesouro, na forma de Imposto de Renda e CSLL, apenas R$ 51,9 bilhões (em média, menos de R$ 7,5 bilhões anuais). Nesse mesmo período, só de Imposto de Renda, os trabalhadores pagaram R$ 233,8 bilhões [6].

Vimos, portanto, que há enorme espaço para uma maior tributação do sistema financeiro. Ainda que os bancos possam repassar parte de aumento de custo aos seus clientes, trata-se de uma medida importante, que provoca uma pequena mudança na estrutura do sistema tributário brasileiro, no caminho de recuperar a tributação direta, tão esquecida nos últimos anos.

O caminho da construção da justiça tributária passa pela mobilização da sociedade civil em defesa da maior progressividade dos impostos no Brasil, tributando a renda do “andar de cima” da pirâmide social do país, que há muito tempo beneficia-se de enormes privilégios fiscais. A pequena mudança na alíquota da CSLL, ainda que tímida, poderá ser um embrião de uma reforma mais profunda na estrutura tributária do país.

Outra pista para o debate sobre reforma tributária: apesar da enorme concentração patrimonial que marca o pais — as cinco mil famílias muito ricas (0,001% do total das famílias) têm patrimônio equivalente a 40% do PIB brasileiro [7] — os impostos que incidem sobre o patrimônio respondem por insignificantes 3,4% do montante de tributos arrecadado pela União, estados e municípios. Não seria hora de seguir o exemplo de tantos outros países e aumentar a tributação sobre este fator, como meio de obter justiça fiscal e assegurar serviços públicos de qualidade?

Le Monde Diplomatique Brasil - Jan 08

E a África disse não

Surpresa: numa conferência em Lisboa, o continente excluído rechaça os acordos de "livre" comércio oferecidos pela Europa. Atitude pode sinalizar nova postura africana, que repele "ajustes estruturais" e políticas da humilhação perpétua

Ignacio Ramonet

Para grande prejuízo da arrogante Europa, o inimaginável aconteceu: num arroubo de orgulho e revolta, a África - que alguns acreditavam submetida, porque empobrecida, disse não. Não à camisa-de-força dos “Acordos de Parceria Economia” (APE). Não ao liberalismo selvagem das trocas comerciais. Não a esses últimos elementos do pacto colonial.

Ocorreu em Lisboa, em dezembro último, durante a 2a Conferência de Cúpula União Européia-África,o objetivo principal era forçar os países africanos a assinar novos tratados comerciais (os famosos APE) antes de 31 de dezembro de 2007, em aplicação da Convenção de Cotonu (junho de 2000), que prevê o fim dos acordos de Lomé (1975). Segundo estes, as mercadorias provenientes das ex-colônias da África (e do Caribe e do Pacífico) entram na União Européia quase sem impostos alfandegários - com exceção de produtos sensíveis para os produtores europeus, como açúcar, carne e banana. A Organização Mundial do Comércio (OMC) exigiu o desmantelamento dessas relações preferenciais, ou então sua substituição – único meio, segundo a OMC, de preservar a diferença de tratamento em favor dos países africanos – por acordos comerciais fundados na reciprocidade [1]. Foi essa segunda opção que a União Européia preferiu: o livre-câmbio integral camuflado sob a denominação “Acordos de Parceria Econômica”.

Em outras palavras, o que os 27 países da União Européia exigem dos países da África (e dos do Caribe e do Pacífico [2]) é que aceitem deixar entrar em seus mercados as exportações (mercadorias e serviços) da União Européia, sem taxas alfandegárias.

O presidente do Senegal, Abdulaye Wade, denunciou a coerção e se recusou a assinar. Saiu batendo a porta. O presidente da África do Sul, Thabo M’Beki, o apoiou de imediato. No rebuliço, a Namíbia também tomou a corajosa decisão de não assinar nada, uma vez que um aumento das taxas alfandegárias da União Européia sobre sua carne bovina marcaria o fim de suas exportações.

Até mesmo o presidente francês Nicolas Sarkozy, que pronunciara palavras muito infelizes em Dacar em julho de 2007 [3], trouxe seu apoio aos países mais refratários a esses acordos leoninos: “Sou a favor da globalização, a favor da liberdade”, declarou, “mas não sou a favor da espoliação de países que, aliás, já não têm nada” [4].

Ampla onda de inquietação popular estimula governos a resistir

Essa revolta contra os APE – que suscitam, ao sul do Saara, uma imensa onda de inquietação popular e uma intensa mobilização dos movimentos sociais e das organizações sindicais – deu certo. A Conferência de Lisboa terminou com uma constatação de fracasso. José Manuel Durão Barroso, presidente da Comissão Européia, foi obrigado a ceder e a aceitar a reivindicação dos países africanos de prosseguir o debate. Ele se comprometeu a retomar as negociações em fevereiro de 2008.

Essa importante vitória da África é um sinal suplementar do momento favorável que o continente atravessa. Nos últimos anos, os conflitos mais sanguinários terminaram (só permanecem Darfur, a Somália e o leste do Congo) e os avanços democráticos se consolidaram. As economias continuam a prosperar e são pilotadas – apesar das desigualdades sociais permanentes – por uma nova geração de jovens dirigentes.

Enfim, mais um trunfo: a presença da China, que está a ponto de suplantar a União Européia na condição de maior investidor do continente africano; e que poderá se tornar, já em 2010, seu primeiro cliente, na frente dos Estados Unidos. Já vai longe o tempo em que a Europa podia impor desastrosos programas de ajuste estrutural. A África agora os repele. E isso é muito bom.



[1] Alternatives économiques, Paris, dezembro 2007.

[2] Os países do Caribe aceitaram, em 16 de dezembro de 2007, assinar um acordo econômico com a União Européia.

[3] Em seu discurso na Universidade de Dacar, em 26 de julho de 2007, Sarkozy declarou: “O drama da África é que o homem africano não entrou suficientemente na história”.

[4] Le Monde, 15 de dezembro de 2007.

Le Monde Diplomatique Brasil - Jan 08

Algo de novo na OMC

Sob pressão dos países do Sul e da sociedade civil, a Organização Mundial do Comércio adota decisões que há alguns anos seriam impensáveis. Mas falta muito, para que os direitos humanos sejam considerados um valor mais importante que as trocas e os lucros

Monique Chemillier-Gendreau

Somente um quadro multilateral pode permitir controlar a globalização. Mas, esboçado desde a II Guerra mundial, ele se acha hoje enfraquecido. A abertura comercial do mundo foi forçada pela imposição da cláusula da nação mais favorecida. Fundada na reciprocidade e exibindo toda a aparência de um fator de igualdade, essa regra beneficia de fato os que já se encontram em posição dominante. Na confusão dos anos de pós-guerra, tendo fracassado o projeto de uma organização do comércio internacional, o Acordo Geral sobre as Tarifas Alfandegárias e o Comércio (GATT, em inglês) foi a solução improvisada. Em 1994, ele seria transformado na Organização Mundial do Comércio (OMC), criada sob hegemonia das idéias livre-cambistas.

Mas, em situação de grandes desigualdades, o livre-câmbio é apenas o disfarce do protecionismo dos mais fortes. Certamente, o crescimento mundial modificou o quadro dos ricos e dos pobres, sobretudo pela poderosa ascensão de alguns países da Ásia. Mas essa globalização não controlada tende a empobrecer setores importantes da população nos países industrializados, mesmo que o crescimento se acelere [1]. Sem contar que o comércio está vinculado à dívida, ela mesma condicionada pelas taxas de câmbio. Assim, a sociedade mundial necessita de regras adequadas, traçadas no âmbito de instâncias universais e democráticas.

O paradoxo da situação deve-se ao fato de que a OMC, tão criticada, representa no entanto um passo importante para o multilateralismo. Nela, os Estados têm igualdade de voto — ao contrário da Organização das Nações Unidas (ONU), do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, onde os procedimentos de voto dão vantagem aos países ricos. Os debates desenvolvem-se sob o olhar da opinião pública (o que não ocorria na época do GATT). Instaura-se uma justiça comercial internacional, baseada em princípios de direito.

Os países mais pobres viram na OMC a possibilidade de se unir contra os mais fortes. Valeram-se disso ao bloquear a negociação em Cancún, paralisada desde a rodada de Doha [2]. Mas a co-relação de forças não lhes permite ir mais longe, e essa paralisia favorece o retorno dos acordos bilaterais ou regionais. Com isso, falta um projeto mundial coerente em que o desenvolvimento do comércio seja articulado ao equilíbrio social e ambiental.

Uma mudança clara no perfil de decisões do Órgão de Resolução de Litígios

Se o campo político está, por enquanto, paralisado, o campo jurídico, menos midiatizado, fica mais poderoso. Uma das novidades mais importantes, com a criação da OMC, foi a fundação do Órgão de Regulamentação de Litígios (ORL), encarregado de uma verdadeira função judiciária de caráter obrigatório. Os países em desenvolvimento começam a se valer dele. Os Estados Unidos se vêem ali cada vez mais freqüentemente no banco dos réus. Propuseram recentemente um enquadramento mais estrito das regras de interpretação utilizadas pelos juízes. Deixam transparecer assim seu despeito por não terem mais o controle sobre essa justiça por meio da qual, pouco a pouco, se impõem princípios gerais para as relações comerciais - quaisquer que sejam os queixosos.

A jurisprudência acumulada em mais de dez anos permite agora uma visão retrospectiva [3]. Mais de 350 queixas foram apresentadas. Nos primeiros anos, os queixosos eram majoritariamente países desenvolvidos, que acertavam as contas uns com os outros. Mas países em desenvolvimento, principalmente os que são considerados emergentes, já vêm utilizando o mecanismo, como no caso do algodão ou do açúcar, para dobrar os grandes [4]. O processo é interestatal e os litígios comerciais são regulados na base dos acordos previamente concluídos.

Todavia, por trás da fachada dos Estados encontram-se interesses privados, freqüentemente colossais. A sociedade civil mundial, que começou a pressionar a OMC, em 1999, quando jogou areia na reunião de cúpula de Seattle, pretende participar dos debates. O Órgão de Apelação – segunda instância para resolução de litígios - permitiu, inicialmente, que agentes não-estatais apresentem comunicações. Isso possibilita que organizações não-governamentais (ongs) expressem seu ponto de vista, freqüentemente na defesa dos interesses dos países do Sul. Mas isso também vale para o lobby das empresas ou de organismos profissionais zelosos de suas posições comerciais. Com isso, a atitude dos juízes tornou-se mais prudente e doravante as considerações não-estatais apresentadas podem não ser levadas em consideração.

Os atores centrais continuam sendo os Estados e o objetivo dos processos é facilitar o acesso dos Estados-membros aos diferentes mercados nacionais, em condições de equilíbrio entre os direitos e as obrigações de cada um. O direito, aqui como em toda parte, outra coisa não é senão essa delicada busca de objetividade ante as reivindicações subjetivas, freqüentemente muito distantes. O processo contribui para a construção de uma comunidade política por aceitação de valores comuns, mas está condicionado a certas exigências. A mais importante é a referência a normas comuns previamente estabelecidas.

No caso da OMC, trata-se dos acordos comerciais, resultantes das rodadas de negociação e refletindo, às vezes rudemente, a relação de forças. Sob o GATT, os árbitros aplicavam tais acordos sem referência a um direito mais amplo, não deixando nenhuma saída para os mais fracos. Já não é assim. O incrível emaranhado que resulta dos acordos acumulados por meio das rodadas de negociação gera a todo momento dificuldades de interpretação. Agora, para preservar os direitos e obrigações dos membros com referência aos acordos da OMC sem aumentá-los ou diminuí-los, os juízes clarificam os termos desses acordos segundo as regras de interpretação do direito internacional público [5]. Princípios gerais do direito, como os do contraditório ou do prazo razoável, já permitem um pouco mais de segurança jurídica.

Surpresa: Pru, Paquistão, Índia, Brasil e China ganham disputas contra EUA- Europa

Porém, o mais importante, é sem dúvida, o caráter obrigatório dos processos e das decisões. Isso ganha mais relevo quando sabemos que o acesso à Corte Internacional de Justiça de Haia (criada pelas Nações Unidas) ou à Corte Penal Internacional está condicionado ao acordo dos Estados. Estes, na OMC, não podem se esquivar da justiça e têm de executar as decisões, sob pena de sofrer contramedidas. Ratificado os acordos de Marrakesh – que criaram a OMC -, o Congresso norte-americano declarou que os Estados Unidos abandonariam o sistema, se fossem condenados diversas vezes. Ora, eles permanecem lá, apesar das numerosas derrotas sofridas. Existem, de fato, novas possibilidades. No entanto, muitos aperfeiçoamentos são desejáveis, como a obrigação que se deveria fazer aos Estados de aplicar, nos acordos bilaterais ou regionais, as regras contidas no quadro multilateral e refinadas pela jurisprudência.

Alguns critérios de interesse geral foram introduzidos na apreciação das regras do comércio internacional. E a análise dos casos já julgados evidencia que certos combates não foram travados em vão [6]. Entre as vitórias simbólicas, está por exemplo a obtida pelo Peru contra a Comunidade Européia (26 de setembro de 2002). A Europa teve de parar de utilizar a designação das sardinhas (Sardina pilchardus, vinda do Atlântico, contra Sardinops sagas, originária do Pacífico oriental) como um obstáculo injustificado ao comércio. Observemos, também, que o Paquistão conseguiu condenar os Estados Unidos, que tinham tomado ilegalmente uma medida de salvaguarda contra as importações dos fios de algodão penteados, sendo que a medida não era proporcional ao prejuízo e este não podia ser imputado integralmente ao país asiático (8 de outubro de 2001).

Caso bastante semelhante tinha oposto a Costa Rica aos Estados Unidos acerca das importações de roupas e lingerie de algodão e de fibras sintéticas e artificiais (10 de fevereiro de 1997). Note-se também que os Estados Unidos foram condenados por aprovarem a emenda Byrd, que permitia compensações por dumping e por subsídios: uma ampla coalizão de Estados conseguiu que o acusado pusesse sua legislação em conformidade com o direito do comércio (16 de janeiro 2003).

A legislação francesa que proíbe a venda de amianto no mercado nacional foi confirmada levando-se em conta a nocividade do produto. A queixa do Canadá, para quem a proibição era um obstáculo a suas exportações, foi rejeitada em nome da proteção da saúde pública (12 de março de 2001). Os subsídios à produção norte-americana de algodão constituem um prejuízo grave que o Brasil tinha o direito de denunciar (3 de março de 2005). A mesma constatação se fez no caso das subvenções disfarçadas concedidas pelos Estados Unidos por meio da isenção fiscal de suas empresas de venda no exterior; a Comunidade Européia conseguiu vencer a resistência persistente da maior potência comercial (14 de janeiro de 2002).

A Comunidade Européia, por sua vez, foi condenada por seus subsídios no caso do açúcar, numa ação movida por Austrália, Brasil e Tailândia (28 de abril de 2005). As medidas de salvaguarda com que os Estados Unidos tentaram proteger seu mercado das importações de cordeiro fresco refrigerado ou congelado, provenientes da Nova Zelândia ou da Austrália, foram condenadas (1º de maio de 2001). Também foram rejeitadas as medidas com as quais eles quiseram se proteger da importação de determinados produtos de aço, caso que mobilizou, contra os Estados Unidos, a Comunidade Européia, o Japão, o Brasil, a Coréia, a China, a Suíça, a Noruega e a Nova Zelândia (1º de novembro de 2003).

Esses processos levantaram questões decisivas. A dos subsídios é central. Do relatório anual da OMC se depreende que, numa amostra representativa de países em desenvolvimento, a proporção subsídios/produto interno é de 0,6%, ao passo que é de 1,4% numa amostra de países industrializados. Assim, a tão louvada concorrência se acha falseada em detrimento dos mais frágeis. Aliás, a paralisia das negociações na OMC deve-se, em grande parte, à inflexibilidade dos países desenvolvidos sobre os subsídios agrícolas. Ora, esses instrumentos fizeram deles os donos do mercado mundial, deixando o resto do mundo em estado de dependência alimentar. Mas denunciar isso não significa apelar para a concorrência generalizada. Falseada ou não, a concorrência pode ser prejudicial para as sociedades mais fracas.

Um grande desequilíbrio na força dos Esatdos para impor sanções entre si

Todos os paradoxos da globalização aparecem na questão das discriminações. A Comunidade Européia favorece preferências especiais para um grupo de países ditos ACP (África, Caribe, Pacífico). Defendendo uma abertura geral, a OMC não pode validar esse sistema dentro do sistema senão a título provisório. Contudo, essa exceção à não-discriminação beneficia os países em desenvolvimento e a OMC diz colocar o interesse deles no centro do programa de Doha. A recusa de qualquer sistema de preferências teria uma conseqüência mecânica: favorecer os acordos bilaterais ou regionais pelos quais os países desfavorecidos buscariam as vantagens necessárias para sua sobrevivência. Isso destruiria na essência o projeto multilateral já mal das pernas.

A esse respeito, o caso das condições de oferta de preferências tarifárias aos países em desenvolvimento, conduzido pela Índia (seguida por 17 nações), contra a Comunidade Européia trouxe à luz o cerne da dificuldade: o que se designa como país em desenvolvimento? Um sistema de preferências comerciais pode introduzir uma discriminação no interior mesmo do grupo dos países que se dizem “em desenvolvimento” (7 de abril de 2004)? Por enquanto, essa qualidade resulta de uma autoqualificação por parte dos interessados. Por outro lado, a decisão de outorga de preferências é função do arbítrio dos que as oferecer. Nenhum critério objetivo intervém. A jurisprudência atual ainda mantém a possibilidade de preferências, mas, a termo, elas estão condenadas.

De agora em diante, os Estados condenados devem adequar sua regulamentação comercial às decisões tomadas contra eles. Passados os prazos concedidos, seus adversários têm o direito de tomar contra-medidas. Tudo isso já se cumpre no quadro de processos que se refinam por etapas e a colocação em conformidade não é mais entregue ao arbítrio.

É preciso sublinhar o desequilíbrio gritante entre os Estados na capacidade de infligir contra-medidas. Há uma espécie de impunidade para os mais poderosos, já que seus adversários vitoriosos não serão capazes de lhes impor sanções. Isso vale evidentemente para os países pequenos, mas até a Comunidade Européia, vitoriosa contra os Estados Unidos no caso da isenção fiscal das empresas de vendas no exterior, pena para executar contra-medidas equivalentes ao dano que lhe foi causado. As somas em jogo são tamanhas que sanções comerciais desse nível desorganizariam seu equilíbrio comercial.

Idéia: uma Corte Mundial de Direitos Humanos, cujas decisões condicionassem os atos da OMC

Vale notar, enfim, a entrada em jogo da China. Assim como ela se juntou a outros para atacar os Estados Unidos, na questão das taxas norte-americanas sobre o aço, os EUA, em contrapartida, apresentaram diversas queixas contra Beijing. A mais importante se prende aos subsídios ilegais do país à indústria chinesa, a mais recente relativa aos direitos de propriedade intelectual e o acesso ao mercado de certos produtos norte-americanos. Desafios cruciais para o equilíbrio mundial se acham, assim, no tribunal do ORL.

A justiça comercial internacional é chamada hoje para resolver questões extra-comerciais e as ongs exigem uma extensão de suas competências nesse sentido. Contudo, a saúde, a vida das pessoas e dos animais, a preservação dos vegetais e, de maneira mais geral, a moralidade pública são mencionadas como exceções admitidas à “liberdade” de comércio [7]. E o ORL reconheceu em certos casos um interesse superior. Todavia, ele tem de tomar decisões na aplicação dos acordos de comércio e tem tendência a buscar compromissos nesse espírito. O interesse geral paga a conta. Aliás, e aí está o paradoxo, a aplicação rígida de normas ambientais, sociais ou sanitárias pode servir ao protecionismo dos países mais poderosos.

Existe uma categoria de fontes do direito internacional superior a qualquer outra, o direito imperativo geral. São as normas ditas inderrogáveis, o que significa que toda norma contrária tem de ser anulada. Esse esquema, promissor quanto a avanços para a noção de bem comum universal, permanece contudo muito teórico. Para que se torne concreto, é preciso que casos onde essa hierarquia das normas está em jogo sejam trazidos diante dos juízes. Ora, a justiça internacional geral é bloqueada pela possibilidade deixada aos Estados de se esquivar dela. Como a justiça comercial é obrigatória, exige-se dela o que as outras instâncias não podem fazer. Há, portanto, um erro de alvo da parte dos movimentos militantes que deveriam investir contra as debilidades dos procedimentos internacionais em geral. Pois se a jurisdição da Corte Internacional de Justiça e da Corte Penal Internacional fosse obrigatória para todos os Estados, se existisse uma Corte Mundial dos Direitos Humanos diante da qual todos os humanos pudessem exigir direitos válidos para todos, o caminho estaria aberto para avanços sobre as verdadeiras dificuldades. Os princípios inderrogáveis seriam definidos por essas jurisdições e a justiça comercial teria um guia para descartar o livre-câmbio quando os princípios do bem comum estivessem em causa.



[1] Ver Joseph Stiglitz, “Des pays riches peuplés de pauvres”, retomado do Financial Times (Londres) em Courrier International, n. 829, 21 a 27 de setembro de 2006.

[2] Ciclo de negociação de três anos de duração incidindo sobre a liberalização do comércio internacional. Com o balanço negativo, as negociações foram suspensas em 28 de julho de 2006.

[3] Ver Éric Canal-Forgues, Le règlement des différends à l’OMC, Bruxelas: Bruylant, 2003.

[4] Ver Tom Amadou Seck, “Bataille pour la survie du coton africain”, Le Monde Diplomatique, novembro de 2005.

[5] Ver por exemplo a interpretação da palavra “salgado” no caso “Comunidade Européia — Classificação alfandegária dos pedaços de frango desossados e congelados”. (Queixas do Brasil e da Tailândia). Órgão de Apelação, 12 set. 2005.

[6] Para a análise das decisões, é possível se reportar ao Journal du Droit International (Clunet), que, todos os anos, no número 3, propõe sobre a OMC uma “Chronique du règlement des différends”, assinada por Hélène Ruiz-Fabri e Pierre Monier.

[7] Artigo XX do GATT e artigo XIV do AGCS.

Le Monde Diplomatique Brasil - Dez 07

A estratégia cinematográfica que sustenta Bush

Partindo do pressuposto de que um império cria sua própria realidade e valendo-se da habilidade de tarimbados diretores de Holywood, o ex-assessor Karl Rove transformou cada ato presidencial em um gesto simbólico, capaz de hipnotizar a opinião pública

Christian Salmon

Em um artigo do New York Times, publicado dias antes da eleição presidencial de 2004, Ron Suskind, que foi editorialista do Wall Street Journal e autor de inúmeras investigações sobre a comunicação da Casa Branca depois de 2000, revelou os termos da conversa que manteve com um consultor de George W. Bush: “O assessor me disse que indivíduos como eu éramos parte da ‘reality-based community’, que definiu como pessoas que ‘acham que as soluções emergem de sua análise judiciosa da realidade observável’. Eu concordei e murmurei qualquer coisa sobre os princípios das Luzes e do empirismo. Ele me cortou: ‘Não é mais assim que o mundo funciona’, prosseguiu. ‘Somos um império agora. E, quando agimos, criamos nossa própria realidade. Enquanto vocês estudam essa realidade – judiciosamente, como queiram –, nós agimos de novo, criando outras novas realidades, que vocês podem igualmente estudar. É assim que as coisas se passam. Nós somos os atores da história. E a vocês, vocês todos, só resta estudar o que fazemos.’” [1].

Qualificado como “furo intelectual” pelo New York Times, o artigo de Suskind causou sensação. Os editorialistas e blogueiros se apoderaram da expressão “reality-based comunity”, que se difundiu pela web — onde o Google contabilizava, em julho de 2007, mais de um milhão de ocorrências. A Wikipedia abriu uma página sobre o tema. Segundo Jay Rosen, professor de jornalismo da Universidade de Nova York, “uma porção de gente de esquerda assumiu esse termo para si, se autodesignando em seus blogs como ‘membros dignos da reality-based community’. Enquanto isso, a direita caçoava: ‘Eles são reality-based ? OK!’” [2]. Conversas como esta, mantida sem a menor dúvida com Karl Rove alguns meses antes da Guerra do Iraque, não são apenas cínicas, dignas de um Maquiavel da mídia. Elas parecem brotar de uma cena de teatro, mais do que de um gabinete da Casa Branca. Não se limitam a dar prosseguimento aos velhos dilemas que sempre agitaram as chancelarias, opondo pragmáticos e idealistas, realistas e moralistas, pacifistas e belicistas, defensores do direito internacional e partidários do uso da força. Mais do que isso, tornam pública uma nova concepção das relações entre a política e a realidade [3]. Os líderes da principal potência do mundo deixaram de lado não só a realpolitik, mas também o simples realismo, para tornar-se criadores de sua própria realidade, mestres das aparências, reivindicando o que poderíamos chamar de realpolitik da ficção.

A invasão americana do Iraque, em março de 2003, constituiu um exemplo espetacular da vontade da Casa Branca de “criar sua própria realidade”. Na ocasião, os departamentos do Pentágono, preocupados em não repetir os erros da primeira Guerra do Golfo, de 1991, tomaram uma precaução particular em sua estratégia de comunicação. Além dos quinhentos jornalistas “embedded” (integrados a uma unidade de exército norte-americano), dos quais muito já se falou, eles dedicaram especial cuidado à preparação da sala de imprensa do quartel-general das forças norte-americanas, instalada no Qatar: um armazém remodelado – pela “módica” quantia de um milhão de dólares – como estúdio de tevê ultramoderno, com palco, telas de plasma e toda a parafernália eletrônica capaz de produzir em tempo real imagens do combate, mapas topográficos, animações e gráficos.

Só a cena do porta-voz do exército norte-americano, general Tommy Franks, dirigindo-se aos jornalistas custou 200 mil dólares e foi realizada por um profissional que trabalhou para os estúdios Disney, a MGM e o noticiário Good Morning America. Desde 2001, ele foi encarregado pela Casa Branca de criar os cenários para as aparições presidenciais – escolha que não surpreende nem um pouco quando se sabe como são as ligações entre o Pentágono e Hollywood. Causa muito mais espécie a decisão do Pentágono de recrutar para esses trabalhos de montagem o mágico David Blaine, conhecidíssimo nos Estados Unidos por seu programa de televisão e seus números de prestidigitação, nos quais parece desafiar as leis da física e da biologia, levitando acima do chão ou permanecendo fechado durante dias dentro de uma jaula sem comer. Em um livro publicado em 2002, esse homem, que se autodenomina o “Michael Jordan da Magia”, reivindica a herança de Robert Houdin, o lendário mágico francês do século 19, que aceitou ir à Argélia por conta do governo com o objetivo de pôr fim a um levante, demonstrando que sua magia era superior à dos rebeldes [4]. Ignora-se se é isso que o Pentágono esperava dele, mas sua convocação e envio ao Qatar sugerem que se valeram de seus talentos de ilusionista para algumas trucagens ou efeitos especiais…

Scott Sforza, antigo produtor da rede ABC que trabalhava para a máquina de propaganda republicana, criou os inúmeros cenários diante dos quais Bush fez suas declarações mais importantes durante seus dois mandatos. Em 1º de maio de 2003, foi ele o responsável pela ambientação do pronunciamento de Bush sobre o porta-aviões Abraham Lincoln, diante de uma faixa com a inscrição “Missão Cumprida: As grandes operações de combate no Iraque cessaram. Na batalha do Iraque, os Estados Unidos e nossos aliados vencemos”. Mas a encenação não parou por aí. O presidente aterrissou no porta-aviões a bordo de um caça rebatizado para a ocasião como Navy One, em cuja fuselagem estava escrito “George Bush, Comandante em Chefe”. Usando trajes de aviador, ele foi mostrado saindo da cabine, capacete na mão, como se regressasse de uma missão, em um remake de Top Gun — o filme de Jerry Bruckeimer, velho conhecido das operações conjuntas Hollywood-Pentágono, responsável pela produção de um reality show sobre a guerra do Afeganistão, Profiles from the Front Line.

Com seu olhar experiente de crítico teatral, Frank Rich, o prestigioso colunista do New York Times, comentou: “Como teatro, foi fantástico” [5]5. David Broder, do Washington Post, ficou subjugado pelo que chamou de “postura física” do presidente. Sforza deve ter enquadrado cuidadosamente a cena para que não percebêssemos no horizonte a cidade de San Diego, situada a sessenta quilômetros, de modo que o porta-aviões parecesse estar em pleno mar, na zona dos combates.

Mas nunca o enquadramento de um discurso presidencial foi tão explícito quanto em 15 de agosto de 2002, quando o presidente dos Estados Unidos se expressou solenemente sobre a “segurança nacional” diante do célebre despenhadeiro do monte Rushmore, onde estão esculpidos os rostos de George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln. Durante o pronunciamento, as câmeras de televisão foram montadas em um ângulo que possibilitou filmar Bush de perfil, sua imagem se superpondo à dos ilustres predecessores.

O mesmo tipo de procedimento foi utilizado durante o primeiro aniversário dos atentados de 11 de setembro, quando Bush preparou a opinião pública norte-americana para a invasão do Iraque, enaltecendo o “grande combate que desafia nosso poderio e, mais ainda, nossa determinação”. Sforza alugou três chatas para transportar a equipe presidencial até o pé da Estátua da Liberdade, iluminada de baixo para cima por poderosos projetores. Escolheu um ângulo e postou as câmeras de tal maneira que a estátua fosse visível ao fundo durante o discurso. Frank Rich cita a propósito a opinião de um especialista, Michael Deaver, que preparou em 1980 o pano de fundo para a declaração da candidatura de Ronald Reagan, usando como cenário a mesma Estátua da Liberdade: “Eles entendem que aquilo que se encontra em torno da cabeça é tão importante quanto a cabeça” [6]6.

O que há em torno da cabeça é justamente aquilo que transforma uma imagem em lenda: “Missão Cumprida”, os Pais Fundadores, a Estátua da Liberdade. Mas é preciso entrar em ressonância com o espectador, ou seja, fazer dialogar dois instantes da história, aquele que está representado na imagem e o momento real da recepção. É essa ressonância que produz a emoção desejada. Para os norte-americanos em 2002, nenhuma data podia ter peso emocional maior que o primeiro aniversário do 11 de setembro. E foi ela a escolhida para o discurso sobre a guerra. Sem contar que o país acabava de voltar de férias, pronto para se concentrar nos assuntos de primeira importância [7].

Segundo Ira Chernus, professor da Universidade do Colorado, durante os dois mandatos de Bush, Karl Rove pôs em prática a “estratégia de Xerazade”. O acadêmico explica: “Quando a política os condena à morte, comecem a contar histórias – histórias tão fabulosas, tão cativantes, tão sedutoras que o rei (ou nesse caso o cidadão americano, que na teoria governa o país) esquecerá a pena capital. Karl Rove joga com o sentimento de insegurança dos norte-americanos, que têm a impressão de que suas vidas lhes escapam” [8]. E sua jogada foi muito bem-sucedida em 2004, por ocasião da reeleição de Bush, quando ele conseguiu desviar a atenção dos eleitores do balanço da guerra convocando os grandes mitos do imaginário coletivo.

Ira Chernus desenvolve seu argumento: “A aposta de Rove é de que os eleitores ficarão hipnotizados por histórias ao estilo John Wayne, com ‘homens de verdade’ combatendo o diabo na fronteira, e deixarão de proferir a sentença de morte contra um partido que nos conduziu ao total desastre no Iraque. Rove não cansa de inventar histórias sobre mocinhos e bandidos e se esforça por transformar toda eleição em teatro moral, opondo o ‘rigor moral’ dos republicanos à ‘confusão moral’ dos democratas. A estratégia de Xerazade é uma pilantragem, construída sobre a ilusão de que simples histórias moralizantes irão nos proporcionar uma sensação de segurança, independentemente do que aconteça no mundo. Rove espera que cada voto em favor dos republicanos seja uma tomada de posição simbólica” [9].

Em agosto de 2007, obrigado a entregar sua demissão pelos membros democratas do Congresso, Rove anunciou a decisão com uma declaração que resume toda a sua obra: “Eu sou Moby Dick e eles são meus perseguidores!”.

[1] Ron Suskind, “Without a doubt, faith, certainty and the presidency of George W. Bush”, The New York Times, 17de outubro de 2004.

[2] Jay Rosen, “The retreat from empiricism and Ron Suskind’s intellectual scoop”, The Huffington Post, 4de julho de 2007.

[3] Ver Christian Salmon, “La machine à raconter des histoires”, Manière de Voir, n.° 96, “La fabrique du conformisme”.

[4] David Blaine, Mysterious Stranger — A Book of Magic, Nova York, Villard Books, 2002.

[5] Frank Rich, The Greatest Story Ever Sold, Nova York, Penguin Books, 2007.

[6] Ibid.

[7] Ibid.

[8] Ira Chernus, “Karl Rove’s Scheherazade strategy”, 7 de julho de 2006.

[9] Ibid.