"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, agosto 02, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 02/08/07

Falácias sobre o 'déficit' da Previdência. Artigo de Eduardo Fagnani e José Celso Cardoso Jr.

Os setores conservadores não aceitaram as conquistas do movimento social em 88. Eis por que alardeiam que o suposto déficit é "explosivo", afirmam Eduardo Fagnani e José Celso Cardoso Jr., em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 2-08-2007.

Segundo os economistas, "as perguntas que na verdade precisariam ser respondidas neste debate são: Que tipo de sistema de proteção social é o mais adequado a um país com as heterogeneidades e desigualdades do Brasil? Qual a estrutura de benefícios desse sistema, quais os critérios de acesso e como se financiará?"

Eduardo Fagnani é professor doutor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho) e José Celso Cardoso Jr. é doutorando pelo Instituto de Economia da Unicamp e técnico de pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

Eis o artigo.

"A seguridade social, um dos avanços da Constituição de 1988, compreende os setores da Previdência (urbana e rural), saúde, assistência social e seguro-desemprego. Para financiá-la, foi instituído o orçamento da seguridade social.

Ao fazê-lo, os constituintes não inventaram a roda. Seguiram o padrão clássico baseado na contribuição tripartite (empregados, empregadores e governo). Note-se que, num conjunto de países europeus, a seguridade é financiada, em média, da seguinte forma: 38% pela contribuição dos empregadores; 22% pela contribuição dos empregados; 36% pela contribuição do governo (impostos); e 4% por outras fontes.
Desde 1934, o Brasil segue esse padrão. O orçamento da seguridade apenas o aperfeiçoou, vinculando constitucionalmente impostos e contribuições sociais. Portanto, quando o governo aporta recursos para a seguridade, não está cobrindo o "déficit", mas fazendo o que é de sua responsabilidade, nos termos da Constituição.

Todavia, os setores conservadores jamais aceitaram as conquistas do movimento social em 1988 e, desde então, para justificar a "urgente" necessidade de reformas visando enterrar inovações trazidas pela seguridade, alardeiam que o suposto déficit é "explosivo" e levará o país à "catástrofe" fiscal. Ao fazê-lo, cometem pecado capital: renegam a existência da Constituição e os fundamentos do Estado democrático de Direito.

Na atual conjuntura, portanto, não há nada de novo no "front" conservador. A instituição do Fórum Nacional da Previdência Social tem apenas proporcionado uma nova onda de revelações equivocadas e apocalípticas.

Um dos expoentes desse matiz, porta-voz de setores conservadores organizados da sociedade, é o sr. Fabio Giambiagi, que tem ocupado espaço de destaque na mídia para alardear o terror.

Agora, no jornal "Valor Econômico", promete combater "mitos ainda enraizados no debate sobre o tema", supostamente defendidos por "aqueles personagens que ficam defendendo a tese de que o homem não foi à Lua e que tudo não passa de uma invenção, de tão surrealista que é a conversa" (sic) ("Valor Econômico", 4/7).

Um dos supostos "mitos" é o de que "a Previdência não tem déficit". E assim conclui essa "argumentação": "Saber se a receita do imposto X deve ser do INSS ou do Tesouro não tem importância nenhuma para efeito do que estamos tratando. O problema é real, não contábil!". Ora, ao contrário, essa questão é de importância capital.

Em primeiro lugar, trata-se de cumprir a Constituição, especialmente os artigos 165, 194, 195 e 239, que versam sobre a seguridade social e o orçamento da seguridade social.
Em segundo lugar, é justamente esse conceito de déficit que precisa ser melhor debatido (e rebatido) dentro da lógica fiscalista.

O autor sempre lança mão desse raciocínio meramente contábil, para apresentar o que lhe parece ser o fim do mundo e dos tempos. Ora, por que será que ele não fala em déficit do SUS ou da educação? Ou déficit das Forças Armadas ou do projeto espacial brasileiro? Ou déficit do Pan no Brasil?

Simplesmente porque, nesses casos, ele não identifica nenhum descompasso entre estrutura de financiamento e estrutura de despesas.

Já no caso da Previdência, que, para ele, deveria ser algo totalmente autofinanciável pelos próprios segurados, ele vê um descasamento contábil entre arrecadação estrita ao INSS e o conjunto das despesas previdenciárias, incluindo a Previdência rural, o BPC/Loas e os regimes próprios do setor público.

Há dois problemas nítidos nessa argumentação:

1) aplica o raciocínio da capitalização atuarial individual a um modelo que é na verdade de repartição simples; e

2) compara alhos com bugalhos.

Assim, em suma, "surrealista" é o debate proposto por Giambiagi.

Em última instância, o que sempre esteve por detrás da reforma da seguridade é a disputa por recursos públicos. A Previdência é o segundo maior item de gasto corrente. Daí a fome do mercado pela reforma e captura desses recursos. As perguntas que na verdade precisariam ser respondidas neste debate são: Que tipo de sistema de proteção social é o mais adequado a um país com as heterogeneidades e desigualdades do Brasil? Qual a estrutura de benefícios desse sistema, quais os critérios de acesso e como se financiará?

Infelizmente, é improvável que respostas para essas questões venham da mágica série de artigos prometidos por nosso especialista."

Instituto Humanitas Unisinos - 02/08/07

Lucro da Vale supera Wal-Mart e Coca-Cola

O lucro da Vale do Rio Doce no segundo trimestre, convertido em dólares, é maior do que o de tradicionais companhias americanas, como a varejista Wal-Mart, os bancos Morgan Stanley e Goldman Sachs, a fabricante de bebidas Coca-Cola e a companhia de eletroeletrônicos Hewlett-Packard (HP). De abril a junho, o lucro da Vale alcançou US$ 3,033 bilhões. A reportagem é de Agnaldo Brito e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 2-08-2007.

A Vale superou em 7,32% o lucro do Wal-Mart, em 17,46% o resultado do Morgan Stanley e em 63,85% o resultado do trimestre da Coca-Cola, segundo levantamento feito pela consultoria Economática.

Os números da Vale no ano também bateram outro recorde. O lucro acumulado pela mineradora em todo o primeiro semestre é o maior nos últimos 20 anos entre as empresas privadas listadas na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). Segundo balanço da Vale, a companhia acumulou lucro de R$ 10,937 bilhões no semestre.

Segundo a Economática, o valor é o terceiro maior do período considerando todas as companhias abertas, incluindo as estatais. O recorde em um primeiro semestre é da Petrobrás, que obteve um lucro de R$ 14,138 bilhões entre janeiro e junho do ano passado.

Instituto Humanitas Unisinos - 02/08/07

Polêmicas marcam o setor de telefonia desde a privatização

O setor de telefonia vive hoje as conseqüências de um problema congênito. O modelo das telecomunicações segue o desenho rascunhado na origem do processo de privatização do setor, há nove anos. Marcada por tropeços, a venda fatiada do Sistema Telebrás, em 12 leilões, esbarrou em algumas controvérsias. A principal delas foi a Tele Norte Leste, que depois virou Telemar e, mais recentemente, Oi. É ela a base para a formação de um grupo nacional de telefonia, como quer o governo, na fusão com a BrT. A reportagem é de Irany Tereza e publicada no jornal O Estado de S. Paulo, 2-08-2007.

Pela regra adotada na privatização das teles, o consórcio que ganhasse o leilão de uma operadora fixa se desclassificaria automaticamente para os demais. Eram quatro as fixas e a Embratel foi a primeira a ser leiloada. A Tele Norte Leste foi a última a receber lances, quando vários candidatos já estavam impedidos de participar da disputa. Venceu o consórcio Telemar, que teve formação concluída às vésperas do leilão.

O grupo, constituído por La Fonte, Inepar, Andrade Gutierrez e Macal, foi um capítulo à parte no processo de privatização. O então ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, chegou a classificar o consórcio de “telegangue” e “rataiada”. A história teve lances policialescos, com a contratação de escutas telefônicas que captaram conversas reservadas de membros do governo.

Como não tivesse dinheiro suficiente para honrar o depósito inicial que consolidaria a compra, o grupo foi socorrido às pressas, ganhando a adesão de fundos de pensão estatais (Previ, Petros e Funcef), sob a gestão do banqueiro Daniel Dantas, do Opportunity. Teve também o reforço do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que entrou com participação de 25%. Até hoje, a empresa de participações do banco estatal, BNDESPar, tem 25% do bloco da TmarPart, controladora do Grupo Oi.

O Grupo Oi é o único sem participação internacional. O leilão teve participação de grupos estrangeiros, com destaque para os espanhóis. A Telefónica de Espanha levou a Telesp por quase R$ 6 bilhões e pagou o maior ágio do leilão. Também ingressaram no País a Telecom Italia e a americana MCI. Sem contar a Portugal Telecom e os canadenses da TIW, que entraram no leilão das celulares.

quarta-feira, agosto 01, 2007

Le Monde Diplomatique Brasil - julho 2007

A grande disputa pela Ásia Central

Sem alarde, Estados Unidos, Rússia, União Européia e China travam uma intrincada batalha pela região em torno do Mar Cáspio. Rica em petróleo e gás, marcada por regimes instáveis e disputas religiosas, ela pode ser o centro de grandes conflitos no século 21

Régis Genté

No século 19, a expressão "Grande Jogo" tornou-se lendária com Kim, romance de Rudyard Kipling, que fazia alusão a disputa das grandes potências para consolidar seus impérios e desarticular os dos rivais. Na época, o que estava em jogo era chamado de "as Índias", a jóia da coroa britânica cobiçada pela Rússia imperial . A disputa durou um século e acabou em 1907, quando Londres e São Petesburgo entenderam-se sobre a divisão de suas zonas de influência, com a criação de um Estado amortecedor entre elas: o Afeganistão. O acordo valeu até 1991. "Hoje, embora tenham mudado os métodos e as idéias em nome das quais as potências agiam, o objetivo continua o mesmo. Trata-se de colonizar, de um modo ou de outro, a Ásia Central, a fim de neutralizarem-se uns aos outros. O gás e o petróleo são certamente cobiçados por si próprios, mas também funcionam como um modo de influenciar", explicou Muratbek Imanaliev, antigo diplomata do Quirguistão (antiga república soviética, hoje país independente), que preside o Institute for Public Policy em Bichkek, a capital.

Desde a queda da União Soviética, os novos Estados independentes vêem no petróleo um meio de alimentar o orçamento e reforçar sua independência em relação a Moscou. No final dos anos 90, a empresa norte-americana Chevron esteve de olho na bacia petrolífera de Tenguiz, uma das maiores do mundo, situada no oeste do Cazaquistão. Em 1993, passou a controlar 50% de suas reservas. Do outro lado do Cáspio, o presidente do Azerbaijão, Gueidar Aliev assinou, em 1994, o "contrato do século" com empresas petrolíferas estrangeiras, para a exploração do campo Guneshli-Chirag-Azeri.

A Rússia enfureceu-se: o petróleo do Cáspio estava-lhe escapando. Moscou esperava que a convivência com Aliev fosse melhor do que com seu antecessor, o nacionalista anti-russo Alboulfaz Eltchibey, primeiro presidente do Azerbaijão independente, derrotado por um golpe em junho de 1993, alguns dias antes de assinar importantes contratos com as maiores petrolíferas anglo-saxãs. Excelente conhecedor das engrenagens do sistema soviético, Gueidar Aliev, ex-general da KGB e antigo membro da direção do Partido Comunista, negociou, em segredo, com as petrolíferas russas para preparar o terreno de um acordo com Moscou: a Lukoil obteve 10% do consórcio Guneshli-Chirag-Azeri. Leste e oeste começam, então, a explorar as jazidas da zona.

Um novo oleoduto expressa o projeto de dominação de Washington

Nos anos 90, para justificar a penetração na bacia do Cáspio, os Estados Unidos começaram a superestimar as reservas de hidrocarbonetos que a bacia continha. Falavam em 243 bilhões de barris de petróleo. Só perdia para a Arábia Saudita. Hoje, estima-se, para tais reservas contenham apenas 50 bilhões de barris de petróleo e 9,1 trilhões de metros cúbicos de gás — ou seja, 4 a 5% das reservas mundiais. Os Estados Unidos só ousaram blefar porque queriam o gasoduto estratégico conhecido como BTC [1] a qualquer preço. "Eles fizeram de tudo por isso. Tratava-se de prevenir a extensão da influência russa, de torná-la mais difícil. Eu não sei até que ponto sabiam estar exagerando", afirmou Steve Levine, jornalista norte-americano que acompanha o tema desde o começo dos anos 90.

Desde 2002, esse jogo de influências se intensifica. Em favor da "guerra contra o terrorismo", travada no Afeganistão desde os atentados de 11 de setembro, os militares norte-americanos metem os pés na ex-URSS. com a bênção de uma Rússia enfraquecida. Washington instala bases militares no Cazaquistão e no Uzbequistão, promentendo reparti-las assim que a "gangrena islâmica" estivesse erradicada. "Bush utilizou esse engajamento militar maciço na Ásia Central para selar a vitória da Guerra Fria contra a Rússia, conter a influência da China e manter o cerco em torno do Irã", calculou o antigo correspondente de guerra Lutz Kleveman.

Washington também desempenhou um papel determinante nas "revoluções coloridas" da Geórgia (2003), Ucrânia (2004) e Kirguistão (2005), todas grandes derrotas para Moscou. Completamente perdidos com as freqüentes inversões de poder no local, alguns autocratas da região viraram as costas para os EUA e se aproximaram da Rússia ou da China.

Na medida em que Pequim também entra nos negócios da Ásia Central e em que a Europa acelera os projetos de captação de gás do Cáspio — após a guerra do gás russo-ucraniana, de janeiro 2006 — o jogo está, de fato, complicado. Petróleo, segurança, disputas de influência e batalhas ideológicas: é preciso apostar em todos os cenários pra fincar os dardos no "Grande Jogo".

Cobiçado por muitas potências, o gás tem novos preços

No começo, a Rússia tinha uma certa vantagem nesse braço de ferro. Em 1991, controlava todos os oleodutos que permitiam aos novos países independentes escoar petróleo e gás. Mas os antigos burocratas soviéticos ("apparatchiki") que se tornaram presidentes dos novos Estados esforçaram-se para não colocar todos os ovos na cesta russa. Depois do fim da União Soviética, construiu-se meia dúzia de oleodutos que não passavam pelo território do grande irmão. Moscou perdeu sua influência política e econômica.

O exemplo do Turcomenistão é emblemático das relações da Rússia com seu antigo satélite: 40 dos 50 bilhões de m3 de gás que produziu, em 2006, foram vendidos para a Rússia. Sem escolha. Fora um pequeno gasoduto inaugurado em 1997, que o conecta ao Irã, o país dispõe apenas do SAC-4, oleoduto que acaba na Rússia. Uma verdadeira prisão. Em abril de 2003, o presidente russo Vladimir Putin pôde coagir seu homólogo turcomeno, Saparmourad Niazov (falecido no fim de 2006), a assinar um contrato de 25 anos, envolvendo 80 bilhões de m3 por ano, vendidos ao preço irrisório de 44 dólares por mil m3.

No começo, o governo turcomeno tentou cumprir as condições, mas logo parou de entregar o gás. No inverno de 2005, Moscou resignou-se a pagar 65 dólares por mil m3, porque o gás lhe é indispensável, principalmente para servir a população a preços baixos. Em setembro de 2006, a Gazprom, estatal russa de gás, foi mais longe. Assinou com o Turcomenistão um contrato por meio do qual comprometeu-se a pagar 100 dólares por mil m3, no período entre 2007 e 2009. Cinco meses antes (em abril), o falecido ditador turcomeno assinou um documento com o presidente chinês Hu Jintao. Tal compromisso reza que o Turcomenistão deve fornecer à China 30 bilhões de m3 de gás natural por ano, durante 30 anos, a partir de 2009. Para isso, deve construir um gasoduto de 2 mil quilômetros. Foi sem dúvida este o motivo que levou a Gazprom a rever seus preços.

O Turcomenistão quer elevar as apostas? Em abril, de volta da sua primeira visita oficial a Moscou, enquanto presidente, Gurbangouly Berdymoukhammedov convidou a Chevron participar do desenvolvimento do setor energético turcomeno. Seu antecessor jamais teria ousado fazer um convite do tipo a uma grande petrolífera internacional. Além disso, ele não diz "não" aos avanços europeus no "corredor transcáspio". Talvez, ameace fazer com que os ocidentais entrem no seu jogo para que a Gazprom aceite pagar mais. Ele recebe da Europa mais de 250 dólares por mil m3 por seu gás.

Êxitos e fracassos da Rússia, em busca da influência perdida

No entanto, Putin propôs restaurar o SAC-4 e construir outro gasoduto ligando os dois países. "A Rússia quer mostrar aos turcomenos que está pronta a fazer muito por eles. Moscou espera dissuadi-los de negociar com os chineses e com os ocidentais", observou o jornalista russo Arkady Dubnov. "A disputa que Moscou deve travar com o Turcomenistão prova que a Rússia está longe de ser onipotente em relação às antigas repúblicas soviéticas, e que hoje prevalecem o pragmatismo econômico de Putin e de seu entorno", concluiu Dubnov.

O método tem o inconveniente de ser muitas vezes brutal. Foi por isso que, em 2006, uma crise do gás entre Rússia e Ucrânia atingiu os europeus. O fantasma da interrupção do fornecimento das provisões pairou sobre o velho continente, que importa da Rússia um quarto de gás que utiliza. Contudo, Jérôme Guillet, autor de um relatório sobre as guerras do gás de 2006, relativizou: tais crises são "muito mais um reflexo das disputas travadas entre as poderosas facções do Kremlin ou da Ucrânia que de uma utilização deliberada da ’arma energética’ ".

Primeiro produtor mundial de gás e segundo em petróleo, a Rússia recobrou seu bem-estar financeiro e toma iniciativas estratégicas. Em 15 de março, assinou um acordo com a Bulgária e a Grécia para a construção do oleoduto Burgas-Alexandropolis (BAP). Um verdadeiro concorrente do BTC, e além disso o primeiro duto que o Estado russo controla sobre território europeu. Ainda assim, depois de alguns meses, o petróleo corre pelos 1760 Km do BTC e o gás pelo Bakou-Tbilissi-Erzurum (BTE). A artéria vital da influência ocidental, na ex-URSS, é funcional. Ela produz seus primeiros efeitos políticos.

Hoje, a Geórgia parece um pouco menos dependente do gás russo que, há apenas um ano, era o único que podia importar. Os aumentos absurdos de preço que os russos lhe impuseram – em dois anos, passaram de 55 dólares a 230 dólares por mil m3 – não afetaram tanto a economia georgiana quanto Moscou esperava. Os volumes fornecidos pelo BTE — a título de royalties — e pela Turquia, cedendo a preço de banana a parte do gás que lhe chega pelo mesmo gasoduto, permitiram obter o combustível a um preço médio aceitável.

Azar de Moscou: a tentativa de impor um aumento de preços da mesma ordem ao Azerbaijão, na esperança de que repercutisse sobre as vendas em Tbilisi, provocou a ira do presidente Ilham Aliev. "Isso prova o quanto o BTC [assim como o BTE] é certamente a maior vitória norte-americana na política internacional desses últimos quinze anos. É uma vitória em matéria de contenção da Rússia e de apoio à independência das repúblicas do Cáucaso", especulou Steve Levine. Tais oleodutos oferecem aos Estados Unidos e à Europa a possibilidade de lançar outros projetos para diversificar suas fontes de abastecimento e incluir em seu círculo político os novos Estados independentes da região.

Na prancheta, novos mega-projetos para drenar a enegia do Cáspio

Diversos projetos estão na ordem do dia. O primeiro, o Kazakhstan Caspian Transportation System (KCTS), destina-se a escoar o petróleo de Kashagan, a maior jazida descoberta no mundo nos últimos trinta anos. Deve entrar em produção no final de 2010, e os acionistas do consórcio que o explora — as grandes petrolíferas ocidentais — pretendem transportar seus 1,2 a 1,5 milhões de barris por dia, via um itinerário de sul a oeste atravessando o Cáspio. Está fora de cogitação que o oleoduto passe sob o mar, por causa da oposição russa e iraniana: uma frota de navios petroleiros fará, por isso, a passagem entre o Cazaquistão e o Azerbaijão, onde um novo terminal petrolífero conectará o "sistema" ao BTC. Ali, graças a algumas estações de bombeamento suplementares e ao uso de determinados produtos que dinamizariam a passagem do óleo pelos canos, sua capacidade deverá passar de 1 para 1,8 milhão de barris por dia.

O segundo projeto ainda está no começo: trata-se do "corredor transcaspiano" que servirá para fornecer o gás do Cazaquistão e do Turcomenistão à Europa. "Nós falamos de ’corredor’ e não de gasoduto", explica Faouzi Bensara, conselheiro de energia da Comissão Européia. Ele prossegue: "propomos uma reflexão sobre as soluções tecnológicas alternativas, como encorajar os investidores para que produzam, por exemplo, gás natural liquefeito no Turcomenistão — que poderia ser em seguida transportado por barco até Baku." A União Européia não se vê como um dos atores do "Grande Jogo", explica: "ela é apenas guiada pela demanda. Em breve, vamos precisar de 120 a 150 bilhões de m3 de gás por ano. Nosso objetivo é encontrar fornecedores suplementares e diversificar as fontes de abastecimento. Só isso. As soluções que buscamos serão complementares às já existentes."

Outro grande oleoduto estratégico apoiado por Washington tem pouca chance de sair do papel: é o Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia (TAPI), famoso oleoduto que os Estados Unidos, juntamente com a empresa petrolífera norte-americana Unocal, pretendiam construir com os talebans, na segunda metade dos anos 90. "Esse projeto traz muitos inconvenientes em matéria de segurança, com o retorno dos talebans no Afeganistão. Além disso, muitos experts calculam que as reservas do Turcomenistão não foram corretamente avaliadas", diz o professor Ajay Kumar Patnaik, especialista em Rússia e Ásia Central na Universidade de Jawaharlal Nehru, em Nova Delhi.

Washington defende o TAPI para isolar o Irã e, ao mesmo tempo, enfraquecer a Rússia na Ásia Central. Os Estados Unidos também pretendem integrar o Afeganistão à sua vizinhança fornecendo-lhe meios para aquecer a população e relançar a economia, em troca de sua estabilidade. Com esse objetivo, o departamento de Estado norte-americano reorganizou, em 2005, a divisão que cuida da Ásia do Sul, para fundi-la com a da Ásia Central, a fim de favorecer as relações em todos os níveis na área designada como "Grande Ásia Central"

Quando os interesses do Irã podem se encontrar com os da China

A energia constitui um dos vetores essenciais das relações internas da zona. Daí um certo número de projetos de usinas hidrelétricas, no Tajiquistão, por exemplo, destinadas a alimentar o norte afegão. Mas o conceito geral não é verdadeiramente um consenso. Nova Delhi, principalmente, sente-se longe da Ásia Central e faz corpo mole para entrar no TAPI. O projeto do gasoduto Irã-Paquistão-Índia (IPI), proposto por Teerã, a seduz bem mais. Por enquanto, a lei norte-americana de sações contra o Irã e Líbia (Iran Libya Sanctions Act americana, ILSA) – por meio da qual Washington pune qualquer empresa que invista em petróleo ou em gás em tais países – a impede de apertar o passo.

"O Irã é o maior perdedor do novo Grande Jogo. Não só os oleodutos contornam seu território, como ninguém pode investir nele", constatou Mohammed Reza-Djalili, especialista iraniano em relações internacionais da Ásia Central. "E é justamente de investimentos que o país sente falta. Suas instalações foram construídas em 1970, o que o obriga a importar 40% do que consome de gasolina; não pôde explorar sua porção do Cáspio e sub-explora seu enorme potencial de gás." Além disso é bastante paradoxal que o "Grande Jogo" exclua Teerã, enquanto todos os produtores de hidrocarbonetos na Ásia Central sonham com uma rota para o sul: "Seria a mais econômica e a mais simples tecnicamente", explicou Arnaud Breuillac, diretor de Europa Central e Ásia Continental da Total. "Estamos inseridos em uma lógica de diversificação de nossas vias de exportação. Nesse cenário, optaríamos pela rota sul, pois a região de consumo mais próxima do Cáspio é o norte do Irã."

É por isso que a aproximação com a Organização de Cooperação de Xangai (OCS) representa, segundo Mohamed Reza-Djalili, um colete salva-vidas para a política do Irã na Ásia Central. Por meio dela, Teerã poderia criar laços com a Ásia, principalmente com a China, e ficar mais forte no braço de ferro contra os Estados Unidos."

Por seu lado, a China – explica Thierry Kellner, especialista em China e Ásia Central – persegue três objetivos no "Grande Jogo": segurança, principalmente na província turcófona de Xinjiang, que margeia a Ásia Central; cooperação com seus vizinhos – a fim de impedir que alguma outra potência venha a ser muito importante no espaço centro-asiático; e, enfim, garantir seu abastecimento energético." As diversas compras de ativos do setor petrolífero feitas há alguns anos por Pequim, na Ásia Central, têm feito correr muito petróleo. Em dezembro de 2005, a China já inaugurava um oleoduto ligando Atasu ao Cazaquistão, em Alashnkou, no Xinjiang. "O primeiro contrato do setor petrolífero que Pequim assinou na Ásia foi em 1997", observou Kellner. "A China trabalha a longo prazo. Ela soube estabelecer bases sólidas na Ásia Central, e isso dá resultados hoje."

Disputa entre as potências abre brechas para Estados nacionais

Tal frenesi de compras não tem a ver apenas com as necessidades energéticas de hidrocarbonetos de um país que cresce 10% ao ano. Para Thierry Kellner, isso reflete, também, uma visão geopolítica: "A China não enxerga as coisas em termo de mercado, mesmo que a oferta e a demanda de petróleo sejam globalizadas hoje. Para garantir sua segurança energética, ela se apropria de jazidas e de oleodutos que a abastecem diretamente, ainda que lhe custem muito caro."

Investir na Ásia Central constitui também para os chineses um modo de se envolver nos negócios da região para – dizem eles – contribuir com a sua segurança. Pequim engaja-se no OCS para federar os Estados-membros em torno de temas que lhes são caros, como a luta contra o terrorismo ou a cooperação econômica e energética. Além disso, a organização forma um bloco capaz de se solidarizar fortemente, em caso de desestabilização da zona ou se os Estados Unidos ganharem influência ao ponto de ameaçar os poderes locais. A onda de "revoluções coloridas" no espaço soviético, desde 2003, também levou a tomar uma posição mais clara em relação a Washington. Em julho de 2005, por exemplo, seus seis membros apoiavam o Uzbequistão quando o país exigiu o fechamento da base aérea norte-americana de Karshi-Khanabad, aberta durante a guerra contra o Afeganistão.

O "Grande Jogo" determina os negócios nas repúblicas da Ásia Central e do Cáucaso, que apostam na concorrência — tanto política quanto econômica — entre as grandes potências. Elas ganham um pouco de independência, na medida que podem dizer "não" a uma capital do mundo, para se voltar voltar em direção a outra. Isso as leva freqüentemente a escolher sua dependência. "Apostando nessas brechas, as repúblicas tomam posições cada vez mais divergentes ", constata Imanaliev, o antigo diplomata do Quirguistão. Assim, enquanto o Cazaquistão abre sua economia para o mundo, o Uzbequistão fecha a sua; enquanto a Geórgia no fundo faz o jogo norte-americano, o Turcomenistão mantém uma profunda desconfiança em relação a Washington. Para além dessas diferenças, o "Grande Jogo" lhes permite serem menos coagidas a seguir a via imposta por um dos grandes. Se, por exemplo, o discurso democrático do ocidente contraria os interesses dos dirigentes centro-asiáticos ou caucasianos, eles podem, a qualquer momento, virar-lhe as costas, pois Pequim e Moscou não são tão exigentes nesses casos.

Washington ou Bruxelas também não são tão exigentes assim. Os imperativos estratégicos os conduzem freqüentemente a relegar os direitos do homem a segundo plano, o que desacredita consideravelmente os valores ditos "ocidentais" – que os poderes da região vêm apenas como uma arma ideológica. Desde 2003, para silenciar as críticas, seus dirigentes afiam, mês após mês, um discurso sobre sua própria maneira, "oriental", de construir para si a democracia. Até lá, a corrupção reina no "Grande Jogo": a arca do tesouro do petróleo e do gás, que são riquezas nacionais, em geral ainda escapam ao controle democrático dos habitantes destes países.

Tradução: Patrícia Andrade
pat.patricia@voila.fr


[1] Segundo maior oleoduto do mundo, o BTC transporta óleo por 1776 quilômetros, entre Baku (Azerbaijão), Tbilisi (Geórgia) e Ceyhan (Turquia). Foi inaugurado em 2006. Construído e mantido por um consórcio de empresas petroleiras ocidentais (liderado pela British Petroleum, permite escoar óleo da bacia do Mar Cáspio para a Europa, sem passar por território russo. Na mesma época, com traçado semelhante e idênticas finalidades, foi construído o gasoduto BTE, que permite transportás gás entre Baku, Tblisi e Erzerum, também na Turquia

Instituto Humanitas Unisinos - 01/08/07

Por que é preciso mudar o modelo de desenvolvimento econômico?

Estamos feitos, em amplíssima parte, além de com água, com carbono: o mesmo elemento que está na base do carvão, do petróleo e do metano, isto é, dos hidro-carburantes que há duzentos e, respectivamente, cento e cinqüenta anos, fornecem a energia às sociedades nas quais vivemos. Isto talvez devesse fazer sentir-nos em sintonia não só com o mundo dos viventes, feitos também eles, como nós, de água e carbono, mas também com a civilização industrial, que fez dos hidro-carburantes o sangue que escorre ao longo de todos os circuitos da produção e do consumo. Mas, não é assim. O comentário é de Guido VIdale e publicado pelo jornal La Repubblica, 13-07-2007.

Os processos de oxidação do carbono, que mantêm a nossa temperatura corpórea e nos fornecem a energia para mover-nos e pensar, são os mesmos que fornecem calor e energia à máquina produtiva e à vida civil do planeta: mas, os mesmos estão entre elas como a chama de um forno está numa explosão de trinitrotolueno. Os primeiros são controlados e eficientes: o nosso corpo metaboliza mais carbono e não produz mais calor e energia do que quanto lhe serve: os segundos são rápidos, altamente dissipadores e consomem um recurso que não se renova. Ambos produzem – mas, os primeiros em medida infinitamente menor do que os segundos – anidrido carbônico: um gás que, reabsorvido a cada dia pela vegetação, mantém a temperatura do ecossistema Terra em equilíbrio; enquanto, difundido em quantidades excessivas pela atmosfera, torna progressivamente o nosso planeta sem condições de vida: primeiro para os estilos de vida aos quais estamos habituados, depois para a mera sobrevivência dos organismos complexos.

Se a vida, incluída a nossa, se desenvolveu sobre o nosso planeta, é porque por alguns bilhões de anos miríades de organismos, como se fossem garis, “limparam novamente” a atmosfera do anidrido carbônico que a sufocava, liberando o oxigênio da compressão de carbono e depois, afundando-se com isto sob os sedimentos e as camadas de lava que plasmaram no decurso do tempo a crosta terrestre. O oxigênio liberado nós o absorvemos com o ar que respiramos e a respiração é vida, psique, espírito.

Ora, o sistema produtivo e os estilos de vida que se instalaram no mundo a partir da revolução industrial foram construídos dessoterrando e restituindo progressivamente à atmosfera o resultado daquele trabalho de limpeza. É como se tornássemos a nossa casa inabitável derramando pelos quartos o conteúdo da lixeira; ou, o nosso território invisível, como tantas cidades da Campânia, dessoterrando os lixos sepultados nos lugares de despejo, para espalhá-los pelas ruas. Com uma diferença: enquanto os outros poluentes emitidos pela combustão são há tempo fonte de alarme, porque tornam irrespirável o ar das cidades e das auto-estradas – cheiram mal, enevoam, sujam, deixam sabor amargo na boca e nos tornam vítimas de bronquites, asmáticos e cardiopatas desde crianças – o anidrido de carbono é inodoro, insosso e incolor; a percepção dos seus danos só pode ser o resultado de cálculos e raciocínios abstratos. As verdadeiras conseqüências – as geleiras que se dissolvem, os rios que acabam secando, os solos transformados em crostas de barro seco, as praias que se afundam, as estações que desaparecem e os furacões que se alastram – só estão ligados de modo indireto às descargas dos nossos automóveis, às caldeiras dos nossos aquecimentos, aos plugues dos nossos eletrodomésticos. Tão indireto que se pode continuar a fazer como se nada fossem.

No entanto, depois que também Bush e o professor Guido Visconti, expert de metereologia do Corriere della Sera, finalmente se convenceram que o efeito estufa existe, sobre o planeta Terra permaneceram apenas o romancista Michael Crichton e o conselheiro econômico de Berlusconi, Renato Brunetta, a pensar que seja, ao invés, um complô da”Internacional verde”, ou uma fábula imposta pela “ditadura planetária dos ambientalistas”.

Todos os outros estão de acordo que é preciso correr aos reparos e, enquanto no Iraque, como no Afeganistão os exércitos de ocupação queimam todos os dias tanto petróleo quanto talvez bastasse poupar para “reingressar” nos talvez insuficientes parâmetros de Kyoto, as pessoas se perguntam: “O que fazer?” E os políticos, afamados pelos comparecimentos em TV, invejam Al Gore, que obteve uma audiência fantástica (dois bilhões de telespectadores) menosprezando o problema: uma reproposição, mesmo numa décima sexta parte, de seu sucesso, agradaria a todos. Mas, há um mas.

De um lado, correr aos reparos quer dizer consumir menos combustível fóssil: menos petróleo, menos metano e, sobretudo menos carbono. Do outro, sem petróleo, carbono e metano ninguém tem idéia de como fazer funcionar a máquina econômica, isto é, o “crescimento” e o “desenvolvimento”: o aumento do PIB em qualquer ponto percentual, ou em qualquer fração de ponto, que, para todos os governos do mundo, é agora uma questão de vida ou de morte. As alternativas aos combustíveis fósseis – a eólica, a fotovoltaica, os biocarburantes, etc. – podem ser um negócio e os grupos industriais mais cônscios, com os italianos na cauda, estão se jogando nisso de corpo e alma. Mas, o petróleo continua e continuará a causar inveja: tanto à Eni quanto a Bush, tanto ao governo chinês quanto ao australiano, do qual um ministro finalmente não teve receio de dizer o que todos sabem: isto é, que foram fazer guerra ao Iraque e ali permanecem para roubar o petróleo.

A Aie – a Agência internacional da energia, lobby dos países consumidores, nascida para contrapor-se à Opep, cartel dos países produtores – até o ano passado previa um crescimento de 50 por cento no consumo de petróleo nos próximos 25 anos, segura de que as reservas do planeta poderiam fazer-lhe frente. Mas, agora ela está constrangida a admitir o que os experts independentes, reunidos na Aspo – associação dos que sustentam que a extração de petróleo e gás está próxima de seu pico – estão repetindo há tempo: isto é, que haverá sempre menos petróleo a extrair e que devemos aprender a fazer as coisas sem ele. Deveria ser uma boa notícia, ao invés, é fonte de pânico, também se o petróleo residual ainda é suficiente para transformar o mundo numa fornalha.

Uma conta a fazer é de fato explicar, durante um concerto em cosmovisão ou com um belo filme, que o tempo urge e se deve mudar. Uma conta a fazer é abrir uma tratativa com a Confindústria ou com a União petrolífera para definir um plano com empenhos precisos – com incentivos e penalidades substanciais – para reduzir em trinta anos as emissões de gás serra num fator de 10: isto é, não de dez por cento, mas, de dez vezes. E começando logo. É possível imaginar um governo italiano – um governo, e não um ministro, porque os nossos ministros estão sempre “em saída livre” – que abre uma tratativa deste tipo? Ou o prefeito de uma grande cidade que explica aos seus eleitores que deverão deixar de sentar em seus automóveis e sair num ônibus desmantelado, já hoje superlotado como uma lata de sardinhas, ou num táxi coletivo, que sequer se sabe explicar direito o que seja?

Instituto Humanitas Unisinos - 01/08/07

Plebiscito pela anulação do leilão da privatização da CVRD terá duas formas

O plebiscito popular pela anulação do leilão da privatização da Companhia Vale do Rio Doce - CVRD -, realizar-se-á de 1 a 9 de setembro sob duas formas: com uma única pergunta, comum, sobre a Vale ou com 4 perguntas – além da Vale, mais 3 outros temas.

No primeiro caso, a pergunta é:

1. EM 1997, A COMPANHIA VALE DO RIO DOCE - PATRIMÔNIO CONSTRUÍDO PELO POVO BRASILEIRO - FOI FRAUDULENTAMENTE PRIVATIZADA, AÇÃO QUE O GOVERNO E O PODER JUDICIÁRIO PODEM ANULAR. A VALE DEVE CONTINUAR NAS MÃOS DO CAPITAL PRIVADO?

No segundo caso, com as 4 perguntas:

1. EM 1997, A COMPANHIA VALE DO RIO DOCE - PATRIMÔNIO CONSTRUÍDO PELO POVO BRASILEIRO - FOI FRAUDULENTAMENTE PRIVATIZADA, AÇÃO QUE O GOVERNO E O PODER JUDICIÁRIO PODEM ANULAR. A VALE DEVE CONTINUAR NAS MÃOS DO CAPITAL PRIVADO?

2. O GOVERNO DEVE CONTINUAR PRIORIZANDO O PAGAMENTO DOS JUROS DA DÍVIDA EXTERNA E INTERNA, EM VEZ DE INVESTIR NA MELHORIA DAS CONDIÇÕES DE VIDA E TRABALHO DO POVO BRASILEIRO?

3. VOCÊ CONCORDA QUE A ENERGIA ELÉTRICA CONTINUE SENDO EXPLORADA PELO CAPITAL PRIVADO, COM O POVO PAGANDO ATÉ 8 VEZES MAIS QUE AS GRANDES EMPRESAS?

4. VOCÊ CONCORDA COM UMA REFORMA DA PREVIDÊNCIA QUE RETIRE DIREITOS DOS TRABALHADORES/AS?

Instituto Humanitas Unisinos - 01/08/07

Setor público paga R$ 79 bi de juro até junho

O que o setor público gasta com juros em uma semana supera o valor de investimentos previstos no sistema aeroportuário em quatro anos. É o que mostra o resultado fiscal do primeiro semestre deste ano, divulgado pelo Banco Central.

Nos primeiros seis meses de 2007, o conjunto formado por União, Estados, municípios e estatais pagou R$ 78,854 bilhões de juros de suas dívidas, uma média de R$ 435 milhões por dia. O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), lançado em janeiro pelo governo federal, prevê investimentos de R$ 3 bilhões - sete dias de juros - em aeroportos do país até 2010. A reportagem é do jornal Folha de S. Paulo, 1-08-2007.

Ainda assim, as despesas com juros do primeiro semestre apresentaram uma queda de 3,4% em relação ao mesmo período do ano passado. O que chama a atenção é que o recuo não acompanhou, na mesma velocidade, a queda da taxa Selic, um dos principais indexadores da dívida pública.

Nos últimos 12 meses (entre julho de 2006 e junho de 2007), a taxa Selic acumulou uma variação de 13,21%. Nos 12 meses anteriores a esse período (entre julho de 2005 e junho de 2006), a oscilação foi de 17,78%.

Em tese, uma Selic mais baixa favorece a redução dos gastos com juros. O chefe do Departamento Econômico do BC, Altamir Lopes, ressalta, por outro lado, que a mudança no perfil da dívida pública altera um pouco essa dinâmica. "Ainda vai demorar para o efeito [da queda da Selic] chegar", afirma.

Nos últimos anos, tem aumentado o peso que os títulos prefixados têm na dívida líquida do setor público. A participação chegou a 43,3% em junho deste ano, contra 10% observados em dezembro de 2003.

Quando o governo emite títulos prefixados, sua remuneração é definida no momento de seu lançamento e não se altera à medida que a taxa Selic varia. Por isso, mesmo quando a Selic cai, esses papéis continuam pagando valores elevados de juros aos investidores.

Os gastos com juros não têm tido um impacto muito negativo sobre as contas públicas porque têm sido compensados pelo aperto fiscal feito pelo governo. Entre janeiro e junho, o superávit primário (economia feita pelo setor público para o pagamento dos juros da dívida) ficou acumulado em R$ 71,674 bilhões, o maior valor já registrado desde 1991, quando começa a série estatística do BC.

O valor representa 74,7% da meta fixada para todo o ano de 2007, que é de R$ 95,9 bilhões. O superávit obtido nos últimos 12 meses equivale a cerca de 4,30% do PIB.

terça-feira, julho 31, 2007

Le Monde Diplomatique Brasil - julho 2007

Nazismo: a conexão norte-americana

Como se deu a intensa colaboração intelectual entre o nazismo e cientistas e personalidades dos EUA, nos anos 1920 e 30. Por que Hitler encantou-se com Henry Ford. Omitidos pela história oficial, fatos sugerem repensar as relações entre modernidade, homogenização e totalitarismo

Michael Löwy e Eleni Varikas

Certos autores, como Daniel Goldhagen, tentam explicar o nazismo como uma perversidade anti-semita exclusivamente alemã. Outros, como Ernst Nolte, com um espírito visivelmente apologético, falam de comportamento "asiático" ou de imitação dos bolcheviques. E, se o racismo e o anti-semitismo nazistas tinham origens ocidentais [1] e, até mesmo, filiações norte-americanas? Entre as leituras favoritas dos fundadores do Terceiro Reich encontra-se o livro de um personagem norte-americano bastante representativo: Henry Ford. Aliás, as doutrinas científicas e as práticas racistas políticas e jurídicas dos Estados Unidos tiveram um impacto não negligenciável sobre as correntes equivalentes na Alemanha.

Essa conexão norte-americana remonta, antes de tudo, à longa tradição da fabricação jurídica da raça — uma tradição que exerce grande fascínio sobre o movimente nazista desde suas origens. Realmente, por razões históricas ligadas, entre outras, à prática ininterrupta, durante séculos, da escravatura dos negros, os Estados Unidos representem, talvez, o único caso de uma metrópole que exerceu tão cedo, e no seu próprio território, uma classificação racista oficial como fundamento da cidadania. Isso se dá por meio das definições da "brancura" e da "negritude" que, apesar de sua instabilidade, perduram há três séculos e meio como categorias jurídicas, e também por políticas de imigração admiradas por Adolf Hitler desde os anos 1920. Ou ainda, por práticas de esterilização forçada praticadas em determinados Estados, várias décadas antes da ascensão do nazismo na Alemanha. A conexão norte-americana, embora não seja a única, oferece um terreno privilegiado para repensar as origens propriamente modernas do nazismo, e suas continuações inconfessas com determinadas práticas políticas das sociedades ocidentais (inclusive democráticas).

Denunciar o anti-semitismo e o genocídio judeu é, hoje, um dos importantes componentes da cultura política dominante nos Estados Unidos. Tanto melhor. Impera, em contrapartida, um silêncio incômodo sobre alianças, afinidades e conexões entre personagens importantes da elite econômica e científica dos Estados Unidos com a Alemanha nazista. Foi somente ao longo dos últimos anos que surgiram livros que abordam diretamente essas questões embaraçosas. Duas dessas obras merecem uma atenção particular: The Nazi Connection. Eugenics, American Racism and German National Socialism [2], de Stefan Kühl, e The American Axis. Henry Ford, Charles Lindbergh and the Rise of the Third Reich [3], de Max Wallace. Stefan Kühl é um universitário alemão que fez pesquisas nos Estados Unidos e Max Wallace, um jornalista norte-americano estabelecido há muito tempo no Canadá.

Políticas de migração racistas e esterilização forçada nos EUA seduziram nazistas

"Atualmente, existe um país no qual podemos ver os primórdios de uma melhor concepção da cidadania", escreveu Hitler em 1924. Ele se referia ao esforço dos Estados Unidos para manterem a "preponderância da raça nórdica" por meio de sua política relativa à imigração e à naturalização. O projeto de "higiene racial" desenvolvido em Mein Kampf tomava como modelo o Immigration Restriction Act (1924), que proibia a entrada nos Estados Unidos dos indivíduos portadores de doenças hereditárias, como também de migrantes provenientes da Europa do Sul e do Leste. Quando, em 1933, os nazistas instauraram seu programa para a "melhoria" da população, por meio da esterilização forçada e da regulamentação dos casamentos, eles se inspiraram abertamente nos Estados Unidos, onde vários Estados já aplicavam há décadas a esterilização dos "defeituosos", uma prática sancionada pela Suprema Corte em 1927.

O estudo notável de Stefan Kühl rastreia essa sinistra filiação, pesquisando os estreitos laços que se tecem entre os eugenistas norte-americanos e os alemães, no período entre as duas guerras; as trocas de idéias científicas e de práticas jurídicas e médicas. Bem documentada e defendida com rigor, a tese principal do autor é: o apoio contínuo e sistemático dos eugenistas norte-americanos aos seus colegas alemães, até a entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial, e sua adesão à maioria das medidas da política racial nazista constituíram uma fonte importante de legitimação científica do Estado racista de Hitler.

Contrariamente a uma parte considerável da historiografia dominante, Kühl mostra que os eugenistas norte-americanos que se deixaram seduzir pela retórica nazista da limpeza racial não eram um punhado de extremistas ou de marginais, mas um grupo considerável de cientistas cujo entusiasmo não se atenuou quando a retórica nazista tornou-se realidade. O estudo das transformações dessas relações entre as duas comunidades científicas permite ao sociólogo e historiador alemão evidenciar a múltipla influência que os "progresssos" da eugenia norte-americana (notadamente a eficácia de uma política de imigração que "combinava a seleção étnica e eugenista") exerceram sobre os adeptos da limpeza racial. Kühl também aponta o sucesso que obteve o movimento eugenista dos EUA ao conseguir que fossem adotadas as leis a favor da esterilização forçada.

Enquanto, na República de Weimar, os trabalhadores sociais e os responsáveis pela saúde pública preocupavam-se em reduzir os gastos com a proteção social, os especialistas em higiene racial estavam com os olhos voltados para as medidas de esterilização forçada, praticadas em diversos Estados da América do Norte para reduzir o custo com os "deficientes". A referência aos Estados Unidos, primeiro país a institucionalizar a esterilização forçada, abunda em todas as teses médicas da época. Uma das explicações comumente utilizadas para interpretar esse status de vanguarda do qual gozava a eugenia norte-americana era a presença dos negros, que teria "obrigado, muito cedo, a população branca a recorrer a um programa sistemático de melhoria da raça". Essa mesma explicação será apresentada mais tarde pelos apologetas norte-americanos do regime nazista, como o geneticista T. U. H. Ellinger, que comparava a perseguição dos judeus ao tratamento brutal dos negros nos Estados Unidos.

Até a II Guerra, eugenistas norte-americanos aplaudem e colaboram com Hitler

Com a ascensão do nazismo, os eugenistas norte-americanos, a exemplo de Joseph De Jarnette, membro do movimento de esterilização de Virgínia, descobrem, surpresos e fascinados, que "os alemães nos superam no nosso próprio jogo". O que não impede — ao menos até os Estados Unidos entrarem na guerra (dezembro de 1941) — o apoio ativo às políticas racistas dos nazistas, como também o silêncio da grande maioria dos eugenistas diante da perseguição dos judeus, ciganos e negros.

Na verdade, a comunidade eugenista não foi homogênea, como demonstram as acusações virulentas de cientistas como Herman Muller e Walter Landauer; as do geneticista progressista L.C. Dunn e do célebre antropólogo Franz Boas. Mas, contrariamente aos dois últimos, que eram críticos da eugenia, Muller e Landauer faziam uma crítica científica do nazismo. Ao mesmo tempo em que negavam a hierarquia das raças, reconheciam a necessidade de aperfeiçoar a espécie humana por meio da reprodução de indivíduos "capazes" e da proibição da reprodução dos indivíduos "inferiores".

O Capítulo 6 do livro de Kühl, (Ciência e racismo: A influência de diferentes conceitos de raça sobre as atitudes em relação às políticas racistas nazistas) apresenta um desmentido à tese canônica, segundo a qual as tendências "pseudocientíficas" da eugenia norte-americana — responsáveis pela lei racista de 1924 sobre a imigração — teriam dado lugar, a partir dos anos 1930, a uma eugenia progressista, mais "científica", totalmente dissociada da higiene racial.

A complexa tipologia que o autor constrói demonstra que as diferenciações no seio do movimento eugenista norte-americano nada têm a ver com seu futuro mais "científico". Ele sublinha que a luta no interior da comunidade científica internacional a respeito da política racial nazista era, antes de tudo, uma luta entre posições científicas divergentes, relativas ao aperfeiçoamento da raça e aos meios científicos, econômicos e políticos de consegui-lo.

Por isso, o autor propõe duas noções que considera necessárias para a compreensão do fenômeno estudado — "racismo étnico" e "racismo genético". O primeiro foi condenado abertamente pelo tribunal de Nuremberg. Já o segundo foi mais difícil. A maioria dos higienistas raciais não foi julgada pela esterilização forçada de 400 mil pessoas. E pesquisas recentes mostraram que uma parte da acusação tentou apresentar os massacres em massa e as experiências nos campos de concentração como práticas separadas da "eugenia autêntica".

Henry Ford: bem mais que um retrato na parede do Fuhrer

Em 1939, T. U. H. Ellinger escreveu, no Journal of Heredity, que a perseguição aos judeus não era uma perseguição religiosa, mas "um projeto de criação em grande escala, visando eliminar da nação os caracteres hereditários da raça semítica". E acrescentava: "Mas quando se trata de saber como o processo de criação pode ser realizado com maior eficácia, uma vez que os políticos julgaram-no de utilidade econômica, a ciência pode ajudar até os nazistas". Alguns anos mais tarde, Karl Brandt, médico responsável pelo programa de eliminação das pessoas deficientes físicas, declarava perante os seus juízes que esse programa tinha sido baseado em experiências norte-americanas, algumas das quais datavam de 1907. Ele citava, para sua defesa, Alexis Carel, que foi nome de um centro de estudos francês até há pouco tempo atrás [4].

A obra de Max Wallace analisa as relações com o nazismo de dois ícones norte-americanos do século 20: o construtor automobilístico Henry Ford e o aviador Charles Lindbergh. Esse, consagrado herói da aviação depois de ter atravessado pela primeira vez o Atlântico (1927), desempenha um significativo papel político, nos anos 1930, como norte-americano simpatizante do Terceiro Reich e, a partir de 1939, como um dos organizadores (juntamente com Ford) da campanha contra Roosevelt, acusado de desejar intervir na Europa contra as potências do Eixo.

Menos conhecido, o caso de Ford é mais importante. Como demonstra muito bem Max Wallace — é um dos pontos fortes do seu livro — a obra The International Jew (O judeu internacional), de Ford, inspirado pelo mais brutal anti-semitismo, teve um impacto considerável na Alemanha. Traduzida a partir de 1921 para o alemão, ela foi uma das principais fontes do anti-semitismo nacional-socialista e das idéias de Adolf Hitler. Em dezembro de 1922, um jornalista do New York Times, em visita à Alemanha, contou que "a parede situada atrás da mesa de Hitler, no seu escritório particular, é decorada com um grande quadro representando Henry Ford". Na ante-sala, uma mesa estava coberta por exemplares de Der Internationale Jude. Um outro artigo do mesmo jornal norte-americano publicou, em fevereiro de 1923, as declarações de Erhard Auer, vice-presidente da Dieta bávara, acusando Ford de financiar Hitler, por ser favorável ao seu programa que previa "o extermínio dos judeus na Alemanha".

Wallace observa que tal artigo é uma das primeiras referências conhecidas aos projetos exterminadores do dirigente nazista. Em 8 de março de 1923, em uma entrevista para o Chicago Tribune, Hitler declarou: "Nós consideramos Heinrich Ford como o líder do movimento fascisti crescente na América. Admiramos, particularmente, sua política anti-judia, que é a mesma da plataforma dos fascisti bávaros" [5]. Em Mein Kampf, publicado dois anos mais tarde, o autor presta homenagem a Ford, o único indivíduo que resiste aos judeus na América (mas sua dívida para com o industrial é bem maior). As idéias do International Jew estão onipresentes no livro, e certas passagens são extraídas quase que literalmente — em particular no que se refere ao papel dos conspiradores judeus nas revoluções ocorridas na Alemanha e na Rússia.

Um livro que influenciou alguns dos maiores dirigentes nazistas

Alguns anos mais tarde, em 1933, já tendo o partido nazista assumido o poder, Edmund Heine, gerente da filial alemã da Ford, escreveu ao secretário do industrial norte-americano, Ernest Liebold, para contar-lhe que The International Jew era utilizado pelo novo governo para educar a nação alemã na compreensão da Questão Judaica [6]. Ao reunir essa documentação, Max Wallace estabeleceu, de forma incontestável, que o empresário automobilístico dos EUA fazia parte das mais significativas fontes do anti-semitismo do nacional-socialista.

Como lembra Max Wallace, Hitler concedeu a Henry Ford, em 1938, a Grande Cruz da Ordem Suprema da Águia Alemã — uma distinção criada em 1937 para homenagear as altas personalidades estrangeiras — por intermédio do cônsul alemão nos Estados Unidos. Anteriormente, a medalha, uma cruz de Malta cercada de suásticas, havia sido concedida a Benito Mussolini.

Entretanto, Wallace não explica por que, considerando a abundância de trabalhos anti-semitas europeus, particularmente alemães, o autor de Mein Kampf era fascinado pela obra estadunidense. Por que ele decorou seu escritório com o retrato de Henry Ford, ao invés de decorá-lo com o de Paul Lagarde, Moeller van der Bruck e muitos outros ilustres ideólogos anti-semitas alemães? Além do prestígio associado ao nome do industrial, parece que três razões podem explicar esse interesse pelo The International Jew: a modernidade do argumento, seu vocabulário "biológico", "médico" e "higienista"; seu caráter de síntese sistemática, articulando, em um discurso grandioso, coerente e global, o conjunto das diatribes anti-semitas do pós-I Guerra; e sua perspectiva internacional planetária, mundial.

Wallace mostra, baseado em documentos, que Hitler não foi o único dos dirigentes nazistas a sofrer a influência do livro editado em Dearborn. Baldur von Schirach, líder da Hitlerjugend [7] e, mais tarde, gauleiter [8] de Viena, declarou, durante o processo de Nuremberg, em 1946: "O livro anti-semita decisivo que li naquela época, e o livro que influenciou meus colegas foi o de Henry Ford, O Judeu Internacional. Eu o li e me tornei anti-semita". Joseph Goebbels e Alfred Rosenberg figuram, igualmente, entre os dirigentes que mencionaram tal obra entre as referências importantes da ideologia do Partido Nacional-socialista Alemão (NSDAP) [9].

Indagações incômodas sobra a relação entre Ocidente, Modernizade e Terceiro Reich

Em julho de 1927, ameaçado de um processo de difamação e preocupado com a queda das vendas dos seus automóveis, Ford retratou-se devidamente. Em um comunicado da imprensa, afirmou, sem corar, que "não tinha sido informado" sobre o conteúdo dos artigos anti-semitas publicados no Dearborn Independent, e pedia aos judeus "perdão pelo mal involuntariamente causado" pelo panfleto The International Jew [10]. Considerado pouco sincera por uma boa parte da imprensa norte-americana, a declaração, entretanto, permitiu a Ford eximir-se da responsabilidade penal. Ela não o impediu de continuar a apoiar, clandestinamente, uma série de atividades e de publicações de caráter anti-semita [11].

"Henry Ford, precursor do nazismo" foi amplamente ocultado nos Estados Unidos, em benefício do grande industrial, criador do automóvel fabricado em série e vendido a preços baixos. Era esse homem que o escritor inglês Aldous Huxley apresentava ironicamente, em sua distopia Admirável Mundo Novo (1932), como uma divindade moderna, com a oração dirigida ao "Our Ford" substituindo a antiga, dirigida ao "Our Lord" ("Nosso Senhor").

O longo silêncio é compreensível. O "caso" Henry Ford levanta questões delicadas sobre o lugar do racismo na cultura norte-americana e sobre as relações entre nossa "civilização ocidental" e o Terceiro Reich, entre a modernidade e o mais delirante anti-semitismo, entre o progresso econômico e a regressão humana. Aliás, o termo "regressão" não é pertinente: um livro como The International Jew não poderia ter sido escrito anteriormente ao século 20, e o anti-semitismo nazista também é um fenômeno radicalmente novo. O dossiê Ford lança uma luz crua sobre as antinomias daquilo que Norbert Elias chamava de "o processo civilizatório".

Tradução: Maria Alice Farah
alicefarah@uol.com.br



[1] Conforme a demonstração feita por Hannah Arendt, no que diz respeito ao colonialismo, imperialismo e anti-semitismo europeus, no primeiro e no segundo volume do livro As Origens do Totalitarismo. Para uma atualização e enriquecimento desta tese, cf. Enzo Traverso, La violence nazie, Paris, La Fabrique, 2002.

[2] Stefan Kühl, The Nazi Connection. Eugenics, American Racism and German National Socialism, Oxford University Press, Nova Iorque, 1994.

[3] Max Wallace, The American Axis. Henry Ford, Charles Lindbergh and the Rise of the Third Reich, St. Martin’s Press, Nova Iorque, 2004.

[4] A faculdade de medicina Lyon-I, até 1996

[5] Max Wallace, The American Axis, pp.45-46.

[6] Max Wallace, The American Axis, p. 130.

[7] Juventude Hitlerista (Nota da Tradutora).

[8] Chefe de um gau (distrito) da Alemanha nacional-socialista (Nota da Tradutora).

[9] Max Wallace,‭ ‬The American Axis,‭ ‬p.42,‭ ‬57

[10] Max Wallace,‭ ‬The American Axis, ‬pp.‭ ‬31-33.

[11] A respeito das conexões filonazistas de Ford nos anos 1930, e sobre sua aliança com Lindbergh, cf. Max Wallace,The American Axis, Ch. 5, "Hate by proxy"., pp. 124-145 et Ch. 9, "America First", pp. 239-266.

Le Monde Diplomatique Brasil - julho 2007

A mão (quase) invisível de Washington

Criada no início do período neoliberal, a Fundação Nacional para a Democracia atuou para derrubar o regime sandinista e desestabilizar o Leste Europeu. E continua cada vez mais atuante, após o fim da Guerra Fria

Hernando Calvo Ospina

“Uma grande parte do que fazemos hoje, a CIA fazia clandestinamente há 25 anos [1]”. Allen Weinstein é o nome do homem cuja confissão surpreendente foi publicada no “Washington Post", em 22 de setembro de 1991.

Historiador, ele foi o primeiro presidente do National Endowment for Democracy (NED) (Fundação Nacional para a Democracia), uma associação norte-americana sem fins lucrativos com objetivos declarados particularmente virtuosos: promover os direitos do homem e da democracia. É, no entanto, dela que ele fala nessa declaração. A NED não existia quando, quinze anos antes, o mesmo jornal revelou, em 26 de fevereiro de 1967, um escândalo de repercussão internacional: a Agência Central de Inteligência (CIA, na sigla em inglês) financiou, no exterior, sindicatos, organizações culturais, grupos midiáticos e intelectuais. O artigo também revelou como o dinheiro chegava até eles.

Como, mais tarde, Philip Agee — ex-oficial da agência — confirmaria, “a CIA se abastece de fundações norte-americanas conhecidas e, também, de outras entidades criadas com o mesmo objetivo que não existem no papel” [2].

À época, para reduzir a pressão, o presidente Lyndon Johnson pediu a abertura de um inquérito, mesmo sabendo que, desde sua criação em 1947, a CIA é comandada por esse tipo de atividade. “Nossos políticos recorreram a ações secretas para enviar conselheiros, equipamentos e fundos com o intuito de sustentar grupos midiáticos e partidos políticos na Europa, já que, mesmo depois da II Guerra Mundial, nossos aliados continuavam sofrendo ameaças políticas [3]”. No início da Guerra Fria tratava-se de combater a “influência ideológica” da União Soviética.

Em alguns casos, as organizações financiadas conseguiram enfraquecer ou eliminar opositores aos governos aliados de Washington. Ao mesmo tempo, criaram espaços favoráveis aos interesses norte-americanos. O trabalho também foi posto a serviço de golpes de Estado, como, no Brasil, contra o presidente João Goulart, em 1964. A derrubada do presidente chileno Salvador Allende, em setembro de 1973, provaria que Lyndon Johnson não havia posto fim às atividades ilegais da CIA. “Para preparar o terreno para os militares, financiamos e canalizamos as forças de importantes organizações da ‘sociedade civil’ e da mídia. Foi uma cópia melhorada do golpe de Estado no Brasil.”

Diante dos escândalos da CIA, surge, em 1979, uma organização mais refinada

A partir de 1975, a CIA foi novamente objeto de uma investigação do Senado dos Estados Unidos, principalmente por envolvimento em complôs e crimes perpetrados contra diversos dirigentes políticos no mundo todo (Patrice Lumumba, Fidel Castro, Salvador Allende). Paralelamente, o avanço alcançado por movimentos revolucionários na África e na América Latina obrigava Washington a constatar que, se o trabalho de infiltração em organizações da “sociedade civil” continuava decisivo, a via utilizada não era a melhor. Recorde-se que, “para levar a batalha ideológica pelo mundo, o governo Johnson recomendou pôr em marcha um ‘mecanismo público-privado’ destinado a financiar abertamente atividades no exterior [http://www.ned.org/about/nedhistory.html">4]]”.

Foi assim que surgiu, em 1979, a American Political Foundation (APF) (Fundação Política Americana), soma de esforços dos partidos Democrata e Republicano, dirigentes sindicalistas e patrões, acadêmicos conservadores e instituições ligadas a relações internacionais. O modelo foi importado da Alemanha Ocidental, onde as fundações dos quatro principais partidos [5] –conhecidos sob o nome de “Stiftung” – eram, desde o pós-guerra, financiados pelo governo, como instrumentos da Guerra Fria. Em particular, a Fundação Konrad Adenauer, ligada ao partido União Democrata Cristã (CDU).

Em 14 de janeiro de 1983, o presidente Ronald Reagan assinou a medida secreta NSDD-77. Por meio dela, pedia a criação do que havia anunciado em discurso diante do Parlamento britânico em 8 de junho de 1982: uma “infra-estrutura” para “melhor contribuir para a campanha global pela democracia” [http://www.ned.org/about/reagan-060882.html">6]]. O decreto sinalizava que para tanto seria necessário “coordenar de maneira rigorosa os esforços em política exterior — diplomática, econômica e militar, além de manter proximidade com os seguintes setores da sociedade norte-americana: trabalho, negócios, universidades, filantropia, partidos políticos, imprensa [...]”.

Sem mencionar o decreto, Reagan apresentou ao Congresso uma proposta da AFP intitulada “The Democracy Program”. Em 23 de novembro de 1983, uma lei aprovou a criação do National Endowment for Democracy (NED). Em 16 de dezembro, durante a “cerimônia” organizada para a ocasião na Casa Branca, o presidente declarou: “Este programa não ficará na sombra. Ele se afirmará com orgulho sob a luz dos holofotes. E, por certo, será coerente com nossos interesses nacionais [http://www.ned.org/about/reagan-121683.html">7]].”

Quatro fundações compõem a base de atuação da NED

Quatro organizações constituíam a base da NED e eram responsáveis por sua gestão. O Free Trade Union Institute (FTUI) – braço da central sindical AFL-CIO, que adotou em seguida o nome American Center for International Labor Solidarity (ACILS) – já existia antes da NED. As outras três foram criadas ad hoc: o Center for International Private Enterprise (Cipe) da Câmara do Comércio; o International Republican Institute (IRI), do partido Republicano; e o National Democratic Institute (NDI), do partido Democrata.

Ainda que fosse, juridicamente, uma associação privada, a NED estava presente no orçamento do Departamento de Estado (embora seu financiamento fosse submetido à aprovação do Congresso). O governo isentava-se oficialmente de toda responsabilidade [8]. Mas esse estatuto tinha uma outra vantagem estratégica. Para o ex-funcionário do Departamento de Estado William Blum, as organizações “não governamentais fazem parte da imagem e do mito. Contribuem para manter, no exterior, um nível de credibilidade que uma agência oficial não poderia atingir” [9].

Em outubro de 1986, estourou o escândalo que fez o governo Reagan balançar: o financiamento ilegal da luta contra o governo sandinista da Nicarágua organizava-se a partir da Casa Branca, principalmente graças ao tráfico de cocaína. Coincidência: coordenada pelo coronel Oliver North, sob a direção do Conselho Nacional de Segurança (NSC), toda a estrutura se denominava “The Democracy Program”. A NED teve um papel de primeiro escalão na operação [10]. Estranhamente, a investigação concentrou-se no financiamento do aparato militar dos contra-revolucionários nicaragüenses – os “contra” – e se ocupou menos dessa organização “não-governamental”, que, no entanto, era financiada desde sua criação, e até 1987, por Walter Raymond, alto funcionário da CIA e membro do diretório de informações do NSC.

“Filha do Projeto Democracia de Ronald Reagan, a NED financiou numerosos grupos latino-americanos, como a Fundação Nacional Cubano-Americana (FNCA) [11]”, afirmou Jorge Mas Canosa, então presidente da FNCA, organização anti-Castro extremista criada pelo NSC à mesma época que a NED. Com o slogan “A liberdade de Cuba passa pela Nicarágua”, a FNCA posicionou-se contra os sandinistas. “Essa organização surgiu quando Theodore Shackley, ex-assistente na direção de operações da CIA e chefe da seção de serviços clandestinos, pediu aos membros da fundação apoio político na América Central”.

Após o fim da Guerra Fria, as intervenções ampliam-se

Foi em 1987, em pleno escândalo, que a NED começou a agir. Seus dólares permitiram a constituição da frente de organizações anti-sandinistas, inclusive a Comissão Permanente dos Direitos do Homem (nicaragüense). Graças ao apoio, Violeta Chamorro, candidata de Washington e proprietária do jornal “independente” “La Prensa”, chegaria à presidência em 1990. Todas as ações dos sandinistas a favor da população se desmancharam com a adoção do modelo neoliberal.

O talento que a NED tinha para dirigir e orientar fundos, criar ONGs, organizar manipulações eleitorais e intoxicações midiáticas devia-se em grande parte à experiência da CIA, ao setor de cooperação do Departamento de Estado (Usaid) e a numerosas personalidades da “elite” conservadora ligadas à política exterior dos Estados Unidos [12]. Estratégias terroristas à parte, o governo Reagan utilizaria os mesmos métodos em países socialistas da Europa Oriental, “cruzada não-governamental pelos direitos do homem e da democracia, nem tão imperialista já que considerada apta para responder às necessidades dos dissidentes e reformadores do mundo inteiro [13]”.

Nos países do “socialismo real”, a distância entre governantes e governados facilitava o trabalho da NED e sua rede de organizações, que fabricavam milhares de “dissidentes” graças aos dólares e à publicidade. Uma vez obtida a mudança, a maioria deles desaparecia sem alarde, assim como suas organizações.

Entre as vitórias históricas reivindicadas, figura a Polônia. Em 1984, a NED já distribuía “ajuda direta” para criar sindicatos, jornais e grupos de defesa dos direitos humanos. Todos, não é preciso dizer, “independentes”. Para a campanha presidencial de 1989, a NED ofereceu US$ 2,5 milhões ao movimento Solidariedade, dirigido por Lech Walesa, que naquele ano chegou ao poder como aliado poderoso de Washington [14]].

Se a NED foi concebida no quadro do arsenal norte-americano da Guerra Fria, o desmanche do bloco socialista europeu foi o preâmbulo para sua expansão planetária. Desde então, graças aos dólares e a alguns “especialistas”, ela soube se envolver em processos sociais, econômicos e políticos de cerca de noventa países da África, América Latina, Ásia e Europa Oriental. Atrapalhar eleições é, como diz o pesquisador Gerald Sussman, “muito importante para atingir os objetivos globais dos Estados Unidos”. A NED e outras organizações norte-americanas se apresentaram como participantes da “construção da democracia”. Enquanto isso, sublinha Sussman, se “elas agem efetivamente de maneira menos brutal que a CIA até 1970, as formas de manipulação eleitoral utilizadas por elas ainda hoje são demonstrações de encenação moral e dramaturgia política” [15].

Um velho alvo, Cuba; e um novo, a Venezuela

Ao longo das eleições de 1990 no Haiti, a NED investiu cerca de US$ 36 milhões para apoiar o candidato Marc Bazin, ex-funcionário do Banco Mundial. Apesar da ajuda, foi Jean-Bertrand Aristide que saiu vencedor. Ele seria deposto, em 29 de setembro de 1991, após uma campanha midiática, também financiada pela NED e o Usaid. A ditadura que se instalou logo depois deixaria 4 mil mortos.

Ao longo de seus primeiros dez anos de existência, “a NED distribuiu US$ 200 milhões a 1.500 projetos para apoiar os amigos da América” [16]. Desde 1998, a NED passou a prestar muita atenção na Venezuela. “É uma operação silenciosa contra a revolução bolivariana. Começou com o presidente [Bill] Clinton e se intensificou com George W. Bush. É muito parecida com as ações empreendidas contra os sandinistas, mas por enquanto sem terrorismo nem embargo econômico. Pretende: ‘promover a democracia, resolver os conflitos, monitorar as eleições e reforçar a vida civil’”, acredita Agee. A advogada norte-americana Eva Golinger descobriu em documentos oficiais que, entre 2001 e 2006, mais de US$ 20 milhões foram remetidos pela NED e o Usaid a grupos de oposição e à mídia privada venezuelanos [17] . O “New York Times” revelara, em 25 de abril de 2002 — dias depois do golpe de Estado contra o presidente Hugo Chávez —, que o orçamento da NED destinado à Venezuela havia quadruplicado alguns meses antes da tentativa de golpe, por ordem do Congresso norte-americano.

Foi, no entanto, na luta contra o regime cubano que a NED mostrou mais firmeza. Ao longo dos últimos 20 anos, ela teria investido cerca de US$ 20 milhões para promover a “transição democrática” no país, sem contar os US$ 65 milhões gastos pelo Usaid desde 1996. Washington insiste na utilidade absoluta de eleições “democráticas”, mas, da lei Torricelli (Cuban Democracy Act, 1992) à lei Helms-Burton (Cuban Liberty and Democratic Solidarity Act, 1992) e à Comissão de Assistência a uma Cuba Livre, os textos oficiais precisam claramente que os governantes devem lhes convir. A quase totalidade dos fundos permanece nas mãos de organizações contra-revolucionárias nos Estados Unidos e na Europa. Os governos polonês, romeno e tcheco, principalmente, recebem boa parte desse financiamento, desde que levem adiante a pressão internacional exercida sobre Cuba. Só em 2005, a NED repassou US$ 2,4 milhões a esses países [18] .

Eleições e negócios devem andar de mãos dadas. É assim que Washington imagina a democracia. Em 20 de janeiro de 2004, o presidente George W. Bush anunciou, durante seu discurso do Estado da União, que pediria ao Congresso que duplicasse o orçamento da NED para que ela inove em esforços na “promoção de eleições livres, no livre comércio, na liberdade de imprensa e a liberdade sindical no Oriente Médio”. Significa que o esforço ideológico acompanha a ação militar. Nessa região do mundo, a presença da NED era, até então, mínima. Em 2003, sua rede se instalou no Afeganistão. Em seu site na internet, o órgão disse que decidiu “estabelecer e reforçar o comércio para ajudar a construir a democracia e a economia de mercado”. Para preparar o terreno, ela fornece “ajuda a toda uma série de ONGs nascentes”.

Quando se equipara democracia a "liberdade de investimento"

Com objetivos semelhantes, outras ONGs são financiadas no Iraque, principalmente no norte do país ocupado. Como em outras regiões, as organizações locais sustentadas pela NED tornam-se rapidamente dependentes e, sob a bandeira da “luta pela democracia”, passam a trabalhar para um sistema cujos interesses raramente coincidem com os da população.

Uma vez por ano, quando é feito um pedido, o presidente da NED deve prestar contas ao Comitê de Relações Exteriores do Congresso norte-americano, um caso único para uma “organização não-governamental”. Em 8 de junho de 2006, Carl Gershman (presidente da NED desde abril de 1984) lembrou a urgência de aumentar o orçamento da “ajuda à democracia”. Ele sustenta que na Rússia, Bielo-rússia, Uzbequistão, Venezuela e Egito, as ONGs precisam de recursos suplementares porque enfrentam governos “semi-autoritários”. Em 7 de dezembro, ele fará praticamente o mesmo discurso diante do Parlamento Europeu, durante a conferência “Democracy Promotion: The European Way” (Promoção da Democracia: o Modo Europeu).

Modelada por William Blum, a filosofia da NED repousa sobre a idéia de que as sociedades funcionam melhor “com a imprensa livre, a cooperação de classes, [...], um intervencionismo mínimo do governo na economia [...]. A economia de mercado é igualada à democracia, às reformas e ao crescimento; ela ressalta os méritos dos investimentos estrangeiros. [...] Os relatórios da NED insistem na ‘democracia’, mas trata-se apenas de procedimentos democráticos mínimos, não de uma democracia econômica, já que nada deve ameaçar os poderes estabelecidos [...]. Em suma, os programas da NED estão em harmonia com as necessidades e os objetivos fundamentais da globalização econômica e da nova ordem internacional”.

Diante da Assembléia Geral das Nações Unidas em setembro de 1989, o presidente George Bush pai afirmara que o desafio do “mundo livre” era consolidar as “fundações da liberdade”. No ano anterior, o Parlamento canadense, apoiado por Washington, havia criado uma fundação parecida com a NED, que levou o nome de “Rights & Democracy” (direitos e democracia). Em 1992, sob o mesmo modelo, o Parlamento britânico tornou oficial a Westminster Foundation for Democracy (Fundação Westminster para a Democracia). Depois foi a vez da Suécia com o Swedish International Liberal Centre (Centro Liberal Sueco Internacional), dos Países Baixos – Fundação Alfred Mozer –, e da França – Fundação Robert Schuman e Jean Jaurès (ligada ao Partido Socialista). A rede de fundações da NED tomava forma.

"Transferir ações detestáveis da CIA a uma organização cujo nome soa bem"

É nesse quadro que se cria o “Democracy Projects Database” (Banco de Dados de Projetos de Democracia), que coordenou “por volta de 6.000 projetos” de ONGs pelo mundo. A NED é também o coração da Network of Democracy Research Institutes (Rede de Institutos de Pesquisa da Democracia), da qual participam “as instituições independentes ligadas a partidos políticos, universidades, sindicatos e movimentos pela democracia e pelos direitos humanos”. Seu objetivo é facilitar o contato “entre os eruditos e os militantes da democracia”. Por outro lado, a NED abriga o secretariado do Center for International Media Assistance, “um projeto que se propõe a reunir um certo número de especialistas em mídia com o objetivo de reforçar o apoio à imprensa livre e independente no mundo” [http://www.ned.org/about/cima.html">19]].

No site oficial do Departamento de Estado na internet, Gershman declara que todas essas fundações, pessoas e organizações convergem para a “criação de um movimento pró-democracia”. Uma “rede de redes”, cujo centro é constituído pela NED. Outras fundações associaram-se ao projeto: a Fundação Friedrich Ebert, da Alemanha, o Olof Palme Internazionella Centrum, da Suécia, o Karl Renner Institut, da Áustria, a Fundação Pablo Iglesias, ligada ao Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE).

Em 1996, para justificar o aumento do orçamento da NED, um relatório particularmente “esclarecedor” foi submetido ao Congresso: “A guerra global das idéias chegava ao clímax. Os Estados Unidos não podiam se permitir a renúncia a um instrumento de tamanha eficácia em política externa numa época em que seus interesses e seus valores sofriam um potente ataque ideológico de numerosas forças antidemocráticas do mundo. Continuavam ameaçados por regimes comunistas tenazes, por neocomunistas, por ditadores agressivos, por nacionalistas radicais e fundamentalistas islâmicos. Nessas condições, os Estados Unidos não podiam abandonar o campo de batalha ideológico aos inimigos de uma sociedade livre e aberta. A NED precisava de um financiamento contínuo, que constituísse um investimento prudente para garantir o futuro [20]”. Três anos depois, Benjamin Gilman, presidente do Comitê de Relações Exteriores da Câmara dos Representantes, retomava, com o mesmo objetivo, a maior parte dos elementos desse relatório.

Democracia, eleições livres, liberdade de expressão. O que William Blum traduz assim: “Tudo o que fizemos foi transferir numerosas atividades detestáveis da CIA a uma nova organização cujo nome soa bem. A criação da NED foi uma obra-prima política, de relações públicas e de cinismo” [21].



[1] The Washington Post, 22 de setembro de 1991.

[2] Entrevista com o autor, 2005. Ver também conferência de Philip Agee: http://www.rebelion.org/cuba/030919agee.pdf

[3] Sobre o trabalho da CIA junto aos intelectuais, ver Frances Stonor Sanders, Who Paid the Paper? The CIA and the Cultural Cold War, Granta Books, Londres, 2000. Ver também: http://www.ned.org/about/nedhistory.html.

[4] [Leia mais->http://www.ned.org/about/nedhistory.html

[5] Friedrich Ebert Stiftung, dos Social-Democratas (SPD); Konrad Adenauer Stiftung, dos Cristãos Democratas (CDU); Hanns-Seidel, da l’Union Cristã-Social (CSU); e Friedrich-Naumann Stiftung para os liberais (FDP).

[6] [Leia mais->http://www.ned.org/about/reagan-060882.html

[7] [Leia mais->http://www.ned.org/about/reagan-121683.html

[8] “A NED não seria considerada uma agência ou emanação do governo dos Estados Unidos”, diz um trecho do ato do Congresso que criou a NED.

[9] William Blum, Rogue State, Ed. Common Courage Press, Monroe, 2000.

[10] The New York Times e The Washington Post. 15 e 16 de fevereiro de 1987

[11] Álvaro Vargas Llosa, El Exilio Indomable, Ed. Espasa, Madri, 1998.

[12] Entre elas: Allen Weinstein, Dante Fascell, Elliot Abrams, Richard Allen, John Negroponte, Jeane Kirkpatrick, John Bolton, Otto Reich, o general Wesley K. Clark, John Richardson, William Middendorf, Frank Carlucci, Francis Fukuyama.

[13] Nicolas Guilhot, “Le National Endowment for Democracy”, Actes de la recherche en sciences sociales, n° 139, Paris, setembro 2001.

[14] A NED mostra aqui algumas de suas ações de financiamento, seja de forma direta ou pela intermediação da CIPE, IRI, NDI ou do braço AFL-CIO. [Ver->http://www.ned.org/about/nedTimeline.html

[15] Gerald Sussman, “The Myths of ‘Democracy Assistance’: U.S. Political Intervention in Post-Soviet Eastern Europe”, Monthly Review, volume 58, n° 7, New York, dezembro de 2006.

[16] Nicolas Guilhot, ibid.

[17] Eva Golinger, Code Chávez. CIA contre Venezuela, Ed. Oser dire, Esch-sur-Alzette, Luxembourg, 2006.

[18] “Les USA financent des groupes anticastristes à l’étranger ”, Associated Press, 29 de dezembro de 2006.

[19] [Leia mais->http://www.ned.org/about/cima.html

[20] “The Endowment for Democracy: a prudent investment in the future.” James Phillips e Kim R. Holmes, Foreign Policy and Defense Studies, The Heritage Foundation, Executive Memorandum No. 461, 13 de setembro de 1996.

[21] William Blum, op.cit.