"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, agosto 09, 2007

Ciencia Hoje - 08/06/07

O narrativismo evolucionário e o camaleão
Colunista desconstrói o “fundamentalismo darwinista” e faz uma defesa do livre-arbítrio humano


"Il n’y a pas de hors-texte"
Jacques Derrida
Esta citação do famoso filósofo francês (1930-2004) é geralmente traduzida como "não há nada além do texto" e interpretada no sentido de que Tudo (com T maiúsculo para não deixar dúvidas) é de alguma maneira um texto, uma estória. Conseqüentemente, tudo, até a narrativa de vida de uma pessoa, pode ser submetido às técnicas de desconstrução textual. Que o diga Howard Crick, personagem de Stranger than fiction ("Mais estranho que a ficção"), original e brilhante filme do diretor Marc Forster que já está disponível em DVD no Brasil. Para entender se sua vida é uma comédia ou uma tragédia, Howard tem de recorrer à ajuda de um crítico literário e não de uma psicanalista.

Por sua habilidade de continuamente adaptar suas cores ao meio ambiente, o camaleão é emblemático da capacidade de autodefinição e recriação constante.

No clássico e brilhante artigo “The spandrels of San Marco and the panglossian paradigm” (‘Os tímpanos de São Marcos e o paradigma panglossiano’; acesse o texto aqui ) meus ídolos Stephen Jay Gould e Richard Lewontin desconstruíram impiedosamente as estorinhas “panglossianas” evolucionárias inventadas e divulgadas por aqueles que Gould chamou de “ darwinian fundamentalists ” (uma boa tradução talvez seja “darwinistas evangélicos”). Tratamos disso em uma coluna há alguns meses. De fato, muitas narrativas evolucionárias são fáceis de se desconstruir porque em geral o besteirol é ululantemente óbvio.

Por exemplo, em recente artigo do psicólogo Bruno Laeng e seus colaboradores da Universidade de Tromso (Noruega) no periódico Behavioral Ecology and Sociobiology , os autores afirmam que homens de olhos azuis acham as mulheres de olhos azuis mais atraentes do que mulheres de olhos castanhos. A explicação oferecida foi que, como olhos azuis seriam putativamente recessivos com relação a olhos castanhos, essa preferência refletiria uma adaptação inconsciente para detecção de paternidade (a idéia sendo que, se sua esposa o traísse com um homem de olhos castanhos e engravidasse, a criança teria olhos castanhos, revelando a infidelidade). Não sei o que vocês leitores acham disso, mas pessoalmente considero um disparate!!!

Adicionalmente, vejam as estórias da carochinha que a revista Veja publicou na reportagem de capa sobre Darwin em 9 de maio último. Uma delas, sobre um personagem de Shakespeare, afirma: “Em Otelo , enlouquecido pelo ciúme, o mouro mata a sua amada, Desdêmona. Como o personagem, o macho é, na maioria das espécies, sexualmente competitivo. Isto porque a traição da parceira pode levá-lo a criar o filho de outro.” Que tolice!

Examinemos também afirmativas contidas em outro artigo de capa sobre Darwin, desta vez na revista Superinteressante de junho de 2007: “O desejo de variedade sexual nos homens é insaciável. Quanto maior for o número de mulheres com quem um homem tiver relações, mais filhos ele terá [pelo menos é o que 'pensam' seus genes] ” ou, de maneira ainda mais radical: “Sendo assim, o que o neodarwinismo diz é: você não ’ama‘ seus filhos e irmãos. São seus genes que vêem neles maneiras de se perpetuar”. Pobre Darwin!

Escravos do genoma
Tal narrativismo evolucionário está intimamente relacionado com a idéia ingênua de que todos os traços comportamentais da humanidade possam ser explicados por nossos genomas. E, pior ainda, que as características fundamentais da vida psicológica e social humana sejam meros instrumentos a serviço do cego e maquiavélico instinto competitivo dos genes. Trocando em miúdos, o que o darwinismo fundamentalista propõe é que somos escravos do nosso genoma e marionetes dos nossos genes!

O chimpanzé (A), o gorila (B) e o gibão (C) são diferentes espécies de primatas do Velho Mundo com comportamento sexual e estrutura reprodutiva completamente diferentes.

Uma das manias irritantes dos psicólogos evolutivos e sociobiólogos contadores de estorinhas evolucionárias é tentar explicar nossa conduta com base na observação do comportamento de primatas não-humanos. Um dos argumentos usados para justificar esta estratégia é que eles são os nossos “parentes” evolucionários mais próximos, especialmente os primatas do Velho Mundo. O público aceita isso e a imprensa reforça essa visão.

Um bom exemplo é uma recente edição do programa de televisão Globo Repórter (4 de maio de 2007) que teve como tema as diferenças sociais entre homens e mulheres. Uma parte considerável do programa foi dedicada a mostrar o comportamento afetivo de casais de primatas em uma reserva brasileira (nesse caso eram primatas do Novo Mundo, evolucionariamente bem mais distantes de nós). Qual seria o intuito dos produtores do programa? Mostrar que sexualmente nos comportamos como os primatas?

E como realmente se comportam sexualmente os primatas não-humanos? Uma análise cuidadosa constatará que cada espécie se conduz de maneira completamente diferente das demais. Por exemplo, chimpanzés machos e fêmeas são poligâmicos; gorilas machos são poligâmicos enquanto as fêmeas são monogâmicas e gibões machos e fêmeas são todos estritamente monogâmicos. Assim, pela escolha criteriosa da espécie de primata com a qual vamos comparar a humanidade, podemos “provar” que qualquer comportamento sexual que estiver no cardápio é “evolucionariamente determinado”.

Metafísica genômica
O bioeticista suíço Alex Mauron define a “metafísica genômica” como sendo a crença no genoma como núcleo essencial do organismo, determinante de sua individualidade e de suas particularidades e também estabelecendo o seu pertencimento a uma determinada espécie. Nessa visão genomocêntrica, nosso conjunto de genes constitui a parte mais essencial do ser humano e determina algo que tem sido chamado de “natureza humana”, à qual estaríamos inexoravelmente atrelados. Assim, o genoma se torna o equivalente secular da alma.

Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494), filósofo renascentista italiano que escreveu o “Discurso sobre a dignidade do homem”.

Contrastem a pobreza desse paradigma determinista com a beleza do manifesto humanista do filósofo italiano Pico della Mirandola (1463-1494) que ainda no Renascimento atribuiu a Deus, em seu “Discurso sobre a dignidade do homem”, as seguintes palavras:

“Não te dei, ó Adão, nem rosto, nem um lugar que te seja próprio, nem qualquer dom particular, para que teu rosto, teu lugar e teus dons, os desejes, os conquistes e sejas tu mesmo a obtê-los. Existem na natureza outras espécies que obedecem a leis por mim estabelecidas. Mas tu, que não conheces qualquer limite, só mercê do teu arbítrio, em cujas mãos te coloquei, te defines a ti próprio ... Ó suma liberdade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do homem, ao qual é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer ... Quem não admirará este camaleão?”

Resumo da ópera: não há “natureza humana” fixa e pré-estabelecida. Nós criamos nossa própria natureza e história no processo de viver. Temos livre-arbítrio e infinitas possibilidades de construir nossos próprios destinos. Como escreveu o peruano Mario Vargas-Llosa em recente resenha :” A identidade (humana) não é uma condição metafísica, e sim uma realidade viva e portanto em permanente processo de recriação”.

A aposta de Pascal e a aposta de Pena
O grande pensador francês Blaise Pascal (1623-1662) propôs, na famosa “aposta de Pascal”, que mesmo quem tem dúvidas quanto à existência de Deus deve agir como se ela fosse um fato. Afinal, se Deus não existir, tanto faz acreditarmos ou não. Mas, se Deus existir, é melhor que acreditemos nele(a) para conquistar o reino dos céus.

Pois bem, eu gostaria de parafrasear Pascal e propor agora a “aposta de Pena”. Mesmo que alguns possam ainda ter dúvidas quanto ao fato de o ser humano ter infinita liberdade para se “criar”, se inventar, se definir e ser aquilo que quiser, devemos agir como se isso fosse um fato. Meu conselho é: aposte no camaleão!


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
08/06/2007

Ciencia Hoje - 08/08/07

Fósseis reescrevem história da evolução dos hominídeos

08/08/2007 (foto: National Museums of Kenya/F. Spoor - Clique p/ ampliar)

Fósseis descobertos no Quênia indicam que o Homo habilis e o Homo erectus coexistiram no leste da África durante quase 500 milhões de anos, ao contrário do que se acreditava. Antes disso, supunha-se que o H. erectus – que deu origem aos humanos modernos ( H. sapiens ) – havia evoluído a partir do H. habilis . No entanto, os ossos encontrados ao leste do lago Turkana e descritos na edição desta semana da revista Nature sugerem que ambas as espécies devem ter surgido entre 2 e 3 milhões de anos atrás. Um dos fósseis consiste em um pedaço de mandíbula atribuído ao H. habilis , datado em cerca de 1,44 milhão de anos – muito mais recente do que outros fósseis conhecidos dessa espécie. Na mesma região, foi encontrado também um crânio de H. erectus (foto), com data de cerca de 1,55 milhão de anos. O crânio chama a atenção pelo tamanho: é o menor espécime de H. erectus já identificado, o que indica que essa espécie era menos parecida com o H. sapiens do que se acreditava. A equipe do paleoantropólogo Fred Spoor, do University College London (Inglaterra), que analisou os fósseis, acredita que as duas espécies tinham nichos ecológicos distintos e evitavam competir entre si.

Le Monde Diplomatique Brasil - Agosto 07

As novas armas biológicas

Um relatório da Associação Médica Britânica alerta: indústrias e governos podem explorar os avanços da genômica e da biologia para desenvolver fármacos que provocam colapso dos processos vitais — ou produzem soldados sem medo e sem memória. EUA, Europa e China seriam a vanguarda desta corrida para a morte

Steve Wright

A Associação Médica Britânica (AMB) acaba de publicar um novo relatório sobre o “uso de drogas como armas” [1]. É a terceira publicação da entidade alertando para a militarização da medicina e seu potencial para criar novos artefatos de guerra. Mas até que ponto devemos nos preocupar com o avanço crescente da farmacologia tática?

O assunto esteve em cena pelo menos por quatro décadas. O especialista em armas químicas e biológicas Julian Perry Robinson, do Programa de Harvard-Sussex, relatou experimentos governamentais em seres humanos com as drogas alucinógenas incapacitantes LSD e BZ [2]; o uso de CS no campo de batalha do Vietnã; a pesquisa russa de codinome Bonfire, destinada a transformar os peptídeos humanos regulatórios em armas; o emprego de material químico em interrogatórios; e uma desconcertante linha de produtos psicoquímicos – paralisantes que interrompem a transmissão de impulsos nervosos, produtores de dor, irritantes baseados em componentes encontrados em fontes tão variadas quanto as urtigas (uruxiol) e o sapo comum (bufotenina) [3].

Mas a natureza altamente técnica dessa pesquisa restringiu o debate aos grupos envolvidos na criação de conhecimento organizado sobre armas não-convencionais, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, o Fórum de Genebra, o Programa Harvard-Sussex e o Pugwash [4]. Enquanto isso, tem havido um interesse militar crescente pelas armas bioquímicas incapacitantes, à medida que o desenvolvimento das ciências da vida vem criando novas possibilidades. Essa pesquisa se acelerou depois do onze de setembro, com a liberação de recursos substanciais direcionados a tecnologias e armas que possam ser utilizadas em conflitos assimétricos, nos quais aliados e inimigos estão eventualmente misturados ou são indistinguíveis.

Revolução nas neurociências permite tratar doenças incuráveis ou... construir mentes sem medo e memória

A revolução que está ocorrendo nas neurociências tem clara ligação com o relatório da AMB. A genômica e a biologia de sistemas estão rompendo as fronteiras entre processos químicos e biológicos, que antes eram vistos como distintos. Agora, as moléculas podem ser reprojetadas racionalmente para afetar processos de biorregulação, como o funcionamento neurológico, cardiovascular etc. No passado, este era um procedimento experimental laborioso, mas agora a maior parte do trabalho pode ser computadorizada, de modo que os compostos bioativos mais promissores são identificados automaticamente, em uma velocidade prodigiosa.

Novos compostos podem ser projetados para agir como mecanismos de liberação que, por si sós, não causam doença. São produzidos rapidamente. E variantes desses novos agentes podem ser exploradas por meio da química combinacional, que se beneficia da alta capacidade de exame por varredura, investigando milhares de ligações potenciais. Enquanto isso, a genômica, a metodologia de microarray (utilizada para investigar a expressão simultânea de um grande número de genes) e a inteligência artificial fornecem previsões de toxicidade, evolução direcionada, proteômica (codificação de proteínas pelos genes), bioinformática e modelagem computadorizada de estruturas receptoras do cérebro.

Ninguém negaria tais facilidades à medicina e à indústria farmacêutica, pois apresentam um incrível potencial para curar doenças humanas e prolongar vidas ativas. Mas esta revolução das neurociências também traz o espectro da iminente militarização da biologia, acompanhado pelo circo de horrores de novos mecanismos para induzir paralisia, de técnicas avançadas de repressão, de tortura em massa, dor e terror.

Este uso perverso das neurociências pode não ficar restrito apenas aos oponentes do Estado. No Iraque, vimos as forças aliadas dos Estados Unidos utilizarem drogas para acentuar o estado de alerta de seus soldados. Em um futuro próximo, de acordo com Wheelis e Dando, poderemos presenciar soldados indo para a ação com agressividade e resistência ao medo, à dor e ao cansaço quimicamente aumentadas. E até mesmo com suas memórias desagradáveis removidas pela farmacologia militar [5].

Após o 11 de setembro, Europa derruba veto à pesquisa de armas capazes de afetar o cérebro

O relatório da AMB alerta para o fato de que, apesar das proibições das armas químicas e biológicas, os governos “demonstram considerável interesse na possibilidade de usar drogas como armas”. Parte desse interesse vem do desejo insatisfeito pelas assim chamadas “armas não-letais”. Parte decorre da mudança de atitude provocada pelo 11 de setembro. Antes disso, o Comitê de Assuntos Externos, Segurança e Política de Defesa do Parlamento Europeu tinha pedido uma “proibição global de qualquer trabalho de pesquisa e desenvolvimento, militar ou civil, que busque aplicar conhecimentos sobre o funcionamento químico, elétrico, ligado a vibrações sonoras ou outros meios do cérebro humano para o desenvolvimento de armas que possam permitir qualquer forma de manipulação de seres humanos” [6].

Depois do 11 de setembro, emudeceram as inquirições e críticas aos avanços indesejáveis das tecnologias de segurança de Estado nos EUA. Há muito menos pressão política sobre a responsabilidade do complexo de segurança industrial. E, em muitos sentidos, esse complexo está agora criando a agenda política [7]. É claro que tais desdobramentos não estão acontecendo apenas nos EUA e na Europa. A AMB alerta também para a pesquisa chinesa.

Para a organização, o uso militar de drogas levanta questões éticas cruciais, porque elas não são utilizáveis “sem gerar uma significativa mortalidade entre a população-alvo”. A droga que simplesmente tiraria as pessoas momentaneamente de ação, sem risco de morte, “não existe e é improvável que venha a existir em um futuro visível”.

Um caso emblemático e trágico: o uso de fentanil pelas tropas russas, na reação a atentado terrorista

As preocupações da AMB são múltiplas e universais, estendendo-se, para além da Grã-Bretanha, aos clínicos de toda parte. Elas dizem respeito, especificamente, a: 1.Envolvimento de médicos no planejamento e execução de ataque, usando drogas como armas; 2. Coleta de dados sobre os efeitos das armas em questão; 3. O papel da medicina e do saber médico no desenvolvimento de armas; 4. A dupla responsabilidade dos médicos – de um lado, não prejudicar pessoas; de outro, apoiar a "segurança nacional"; 4. O papel dos médicos no apoio à legislação internacional.

A relevância dessas preocupações veio à tona quando as Forças Especiais Russas utilizaram um anestésico do tipo fentanil para resgatar os reféns do cerco terrorista ao Teatro de Moscou, em 23 de outubro de 2002. Na ocasião, 130 dos 900 reféns morreram, na proporção de um para sete. As chamadas armas não-letais provaram ser letais – na realidade, mais letais do que as usadas em guerra, para as quais a taxa de mortalidade esperada é de um em 16. Este é um resultado importante a ser considerado, pois a participação dos médicos em semelhantes ações militares suscita questões éticas sobre seu papel e ressalvas quanto à adequação de seu treinamento para enfrentar tal tipo de ocorrência. No fim, ficou claro que participação médica foi muito mal-vista.

Há também alegações de que as autoridades, que ainda se recusam a identificar o produto usado, alteraram os certificados de óbito deliberadamente, para respaldar a idéia de que o material era inofensivo. Bem menos discutido foi o número de pessoas deixadas permanentemente inválidas por essa operação. Grupos em defesa das vítimas relataram 174 mortes e casos de invalidez permanente entre os sobreviventes [8]. O grupo também observou a liquidação de todos os tchetchnos suspeitos de terrorismo, reforçando a visão de que esses compostos podem facilitar a execução sumária, substituindo um processo legal.

Hipótese alarmante: potências militares poderiam terceirizar a pesquisa e produção das novas armas

Os médicos possuem altos padrões para indicar remédios e testes a pacientes. O relatório da AMB identifica uma potencial pressão futura dos fabricantes de armas sobre a indústria farmacêutica, com o objetivo de baixar esses padrões. Há repercussões de um alerta, publicado no Le Monde Diplomatique, em 2003, pela professora Chantal Bismuth e o coronel Patrick Barriot, de que as armas químicas de amanhã possam vir a ser encontradas nos catálogos de medicamentos [9].

A AMB cita um estudo do Centro de Pesquisa Aplicada da Faculdade de Medicina da Universidade de Pennsylvania que pede à indústria farmacêutica para levar em conta as milhares de drogas descartadas ou deixadas em prateleiras sem pesquisa concluída, devido a efeitos colaterais indesejados. O mesmo estudo identifica vários “produtos farmacêuticos órfãos”, com nove tipos diferentes de sistemas como neurotransmissor/receptor e outras classes de compostos, inclusive convulsivantes [10].

O que aconteceria se alguns países decidissem que tais armas químicas não precisam de testes clínicos? E, se esses testes forem realizados, como investigações em idosos, doentes e crianças poderiam ser permitidas por um comitê de ética médica? Uma preocupação de peso é que tal tipo de pesquisa possa ser “terceirizado” para um país onde dinheiro e capital político sejam mais importantes do que a ética médica. Trata-se de um ponto importante. Uma vez que a relutância em usar armas bioquímicas perigosas no contra-terrorismo ou na contra-insurgência tenha sido quebrada, é possível antever uma rápida evolução de novas variantes, com ampla gama de indução de efeitos de imobilização e dor. E o cenário de pesadelo de armas seletivas por etnia já foi apontado pela AMB, que lançou um grande alerta para o fato de estar em curso uma corrida às armas de avental branco. [11].

Sabe-se que pesquisadores militares estão estudando as propriedades da endotelina – uma cadeia de 21 aminoácidos, similar em estrutura a certos venenos de cobra – e toda uma nova classe de biorreguladores, com efeitos potenciais sobre o sistema circulatório. Entre outros compostos em análise, está a chamada “substância P”, uma taquiquinina que pode provocar intensa broncoconstrição.

Em paralelo às drogas, surgem armas para transportá-las: bombas dispersoras, pistolas, micro-cápsulas...

Outros riscos em discussão referem-se a compostos bioquímicos que podem induzir doenças de aparecimento tardio, como o câncer do fígado, favorecendo atos de genocídio retardados por talvez vinte anos. De igual importância neste debate é o fato de que, além de as drogas serem pesquisadas para se tornarem armas, novas armas estão sendo projetadas para transportá-las ao alvo, como seringas voadoras estabilizadas, bombas para a dispersão de grandes quantidades de produtos químicos, pistolas de paintball modificadas, micro-cápsulas que soltam o produto químico quando pisadas, veículos não-tripulados etc. O caso mais recente é o acordo comercial entre as companhias norte-americanas Taser, fabricante de pistolas que dão eletrochoques, e a iRobot, fabricante de veículos de guerra não-tripulados para exploração de terreno [12]. É só uma questão de tempo para que os novos modelos desses veículos incorporem pistolas para lançar armas químicas e que estas armas tenham opções algorítmicas autônomas.

A AMB enfatiza corretamente suas preocupações legais por três razões. As normas legais internacionais que protegem a humanidade de veneno e da disseminação deliberada de doença, adotadas depois de décadas de negociação, correm o risco de ser enfraquecidas. A disponibilidade ampla, mas responsável, de drogas com potencial emprego militar inevitavelmente resultaria na chegada delas às mãos de agentes, estatais ou não, para os quais a mortalidade no meio da população-alvo não teria importância. Usar as drogas existentes como armas, com conhecimento de causa, significa subir ao topo de uma ladeira escorregadia, no fim da qual está o espectro da militarização da biologia, que poderia trazer a manipulação intencional das emoções, memória, resposta imunológica e até a fertilidade das pessoas.

E o horror continua. O Sunshine Project, dos Estados Unidos, revelou documentação de uma pesquisa norte-americana orientada para utilizar a mudança de orientação sexual como tática de luta [13]. Como o mundo reagirá se um Estado militarizado decidir alterar a química do cérebro feminino, para produzir civis hormonalmente receptivas ao estupro militar em massa?

O papel decisivo da Convenção de Armas Químicas, que deverá ser revista em 2008

A visão comum é que, se todas as armas químicas e biológicas são proibidas pelas convenções internacionais, então não há problema, Porém, mesmo aqui, existe uma brecha: a Convenção de Armas Químicas (CAQ), no artigo II(9)d, permite uma exceção para o controle de conflitos internos. Isso era visto, essencialmente, como autorização do uso de armas químicas policiais destinadas ao controle de multidões (como o gás lacrimogênio, por exemplo) e do uso de injeção letal destinada à execução legal. Contudo, o emprego de produtos incapacitantes como armas contra o terrorismo abriu uma significativa janela. A questão agora é saber que tipos de compostos, além do gás lacrimogênio padrão, são permitidos em ações de manutenção da paz. Essa brecha enfraquece potencialmente a Convenção de Armas Químicas [14].

De acordo com o professor Malcolm Dando, da Escola de Estudos para a Paz da Bradford University: “A melhor solução para as dificuldades com o artigo II.9(d) seria os Estados signatários concordarem que não existe permissão para o uso de produtos químicos além dos produtos-padrão para o controle de distúrbios. Contudo, se isso não for possível, os Estados signatários teriam que relatar regularmente quais produtos químicos para esse tipo de ação eles possuem, em que quantidades e com quais os dispositivos de disseminação”.

A Convenção de Armas Químicas vai ser revista em 2008. O relatório da AMB alcançará seu propósito se os negociadores que se encontrarem em Genebra no ano que vem escutarem o alerta de pôr a mão nesse assunto antes que seja tarde demais.



[1] British Medical Association: “The use of drugs as weapons: the concerns and responsibilities of healthcare professionals”, 2007. Disponível em http://www.bma.org.uk/ap.nsf/Content/drugsasweapons

[2] Benzilato de quinuclidinil, uma droga que pode causar delírio durante dias.

[3] Robinson, Julian Perry: “Disabling Chemical Weapons: A Documentary Chronology of Events, 1945-2003)”, 2004. Documento de trabalho não publicado, Programa de Havard-Sussex.

[4] Em 1955, Bertrand Russel e Joseph_Rotblat criaram, na cidade canadense de Pugwash, uma conferência para trabalhar contra as ameaças de conflitos mundiais.

[5] Wheelis, M. e Dando, M.: “Neurobiology: a case study of the imminent militrarisation of biology”, em International review of the Red Cross, vol.87, no. 859, pp.553-571, 2005.

[6] Parlamento Europeu, Comitê de Assuntos Externos, Segurança e Política de Defesa: Report on the Environment, Security and Foreign Policy (Relatora Mrs. Maj. Britt Theorin), PE 227.710/fin, 14 de janeiro de 1999, p.10.

[7] Para uma excelente análise desta vertente, ver Hayes, B.: “Arming Big Brother: the EU’s security research programme”, TNI/Statewatch, Amsterdam, 2006. http://www.statewatch.org/news/2006/apr/bigbrother.pdf

[8] Burban, L., Gubareva, S., Karpova, T., Karpov, N., Kurbatov, V., Milovidov, D., Finogenov, P.: ‘Investigation Unfinished’, Regional Public Organization for Support of Victims of Terrorist Attacks, Moscou, 2006. Disponível em russo no site: http://www.pravdabeslana.ru/nordost/doklad.zip. Há também uma versão reduzida em inglês (sem apêndices) em: http://www.pravdabeslana.ru/nordost/dokleng.doc-> http://www.pravdabeslana.ru/nordost/dokleng.doc]

[9] Chantal Bismuth e Patrick Barriot, "A falsa retórica da classificação de armas", Le Monde Diplomatique Brasil, maio de 2003

[10] Lakoski, J., Bosseau, M.W., Kenny, JM.: “The advantages and limitations of calmatives for use as a non-lethal technique”, College of Medicine Applied Research Laboratory, Pennsylvania State University, 2000.

[11] Para uma revisão abrangente desses fatos, ver Davison, N., Lewer N.: Research Report no 8, Bradford Non-Lethal Weapons Research Project, 2006.

[12] http://uk.biz.yahoo.com/28062007/290/taser-international-forms-strategic-alliance-irobot.html

[13] http://www.sunshine-project.org/incapacitants/jnlwdpdf/

[14] Para uma análise clara destes temas ver Pearson, A: “Incapacitating bio-chemical weapons: science, technology, and policy for the 21st Century”, Non Proliferation Review, vol. 13, no 2, julho de 2006, pp. 151-179.

Le Monde Diplomatique Brasil - Agosto 07

Muçulmanos contra a Al-Qaeda

Tanto no Iraque quanto no Afeganistão, a rede terrorista de Bin Laden enfrenta oposição crescente de outros grupos armados árabes. Suspeita-se, ao priorizar o combate entre facções muçulmanas, ela esteja fazendo o jogo da Casa Branca

Syed Saleem Shahzad

Dois incidentes ilustram as divergências crescentes no seio dos movimentos islâmicos armados. No Waziristão do Sul, uma zona tribal do Paquistão situada na borda da fronteira afegã, talibãs locais perpetraram, em março de 2007, um massacre de combatentes estrangeiros do Movimento Islâmico do Uzbequistão, filiado à Al-Qaeda. Quase simultaneamente, ferozes combates opunham o Exército Islâmico no Iraque ao ramo local da Al-Qaeda. Duas visões – duas maneiras de conceber o combate islâmico – confrontam-se cada vez mais violentamente.

Desde 2003, voluntários estrangeiros afluem ao Paquistão e ao Iraque. Porém, em vez de satisfazer aos dirigentes dos talibãs e aos grupos de resistência islâmicos autóctones, esse afluxo de combatentes ligados ao takfirismo – uma ideologia que considera os “maus muçulmanos” seus principais inimigos (ler, nesta edição, Takfirismo, uma ideologia messiânica) – provocou mal-estar e sofrimento. Combatendo governos muçulmanos, esses militantes desencadearam o caos nas mesmas populações que diziam defender.

Durante três anos, entre 2003 e 2006, a própria complexidade da situação nesse vasto teatro de guerra, composto pelo Waziristão do Norte, Waziristão do Sul, Afeganistão e Iraque, reforçou a influência doutrinária da Al-Qaeda e reduziu os grupos autóctones ao silêncio. No Waziristão, zelotas takfiristas favoreceram o surgimento de enclaves islâmicos, que escaparam da jurisdição do Paquistão e alimentaram ações armadas nos grandes centros urbanos, com o objetivo último de desencadear um levante contra o regime militar pró-ocidental de Islamabad. Em resposta, o exército paquistanês conduziu operações sangrentas, massacrando centenas de não-combatentes, entre os quais mulheres e crianças, alimentando assim o furor dos extremistas. Já na época, muitos dirigentes talibãs reconheciam, reservadamente, que os takfiristas estavam se desviando, ao abandonar a estratégia exclusivamente anti-ocidental, pregada por Osama Bin Laden nos anos 1990, e ao transformar sua guerra de resistência nacional contra a ocupação estrangeira em um ataque ao poder militar do Paquistão.

No Iraque, tafkiristas visam os xiitas, e esquecem de lutar contra norte-americanos

No Iraque, Abu Mussab Al-Zarkawi, um dos principais dirigentes takfiristas, que deixara o Waziristão para ir a esse país às vésperas da invasão norte-americana, tornou-se o responsável mais visível da resistência. Zarkawi declarara publicamente fidelidade a Bin Laden. Em torno dele haviam-se agrupado militantes, na maioria estrangeiros, que constituíam o ramo iraquiano da Al-Qaeda. A situação no Iraque logo iria se assemelhar às do Waziristão e do Afeganistão.

Depois da queda de Saddam Hussein, as forças de resistência locais levaram algum tempo para se mobilizar. Precisaram de vários meses para organizar as diversas tribos, grupos religiosos fragmentados, membros do Baas, o antigo partido de Saddam Hussein, e oficiais da extinta Guarda Republicana em unidades eficientes de combate. Nesse ínterim, os combatentes estrangeiros, vindos dos quatro cantos do mundo muçulmano sob os estandartes negros da Al-Qaeda, constituíram um majlis alchoura (conselho) e deram prova de uma eficácia que os grupos locais ainda não demonstravam. Nessas condições, estes últimos não podiam expressar suas reservas à ideologia takfirista. Alguns já haviam tido a oportunidade de deplorar os métodos da Al-Qaeda, que, embora sunita como eles, deixava a luta contra o ocupante norte-americano para atacar lugares sagrados dos xiitas.

No entanto, com o anúncio feito pela Al-Qaeda, no fim de 2006, da criação de um emirado “ideologicamente puro” no Iraque, a estratégia dos grupos autóctones foi totalmente submetida à ideologia takfirista e a seu programa fratricida. A guerra contra a ocupação transformou-se em uma miríade de lutas sectárias. Mas os germes da ruptura entre os combatentes “internacionalistas” e a resistência autóctone estavam semeados.

Divisões têm origem na luta islâmica contra presença soviética no Afeganistão

Para compreender essas divergências, é necessário examinar as circunstâncias particulares que contribuíram para as transformações ideológicas da Al-Qaeda, quando da jihad contra a ocupação soviética no Afeganistão, durante os anos 1980, e depois. Os árabes que haviam afluído àquele país com o intuito de se juntar à resistência local dividiam-se em dois campos: “iemenita” e “egípcio”.

Os zelotas religiosos, enviados ao Afeganistão por seus imãs, pertenciam ao primeiro. Quando não estavam combatendo, passavam os dias em atividades rudes, cozinhando para si mesmos e dormindo logo após a isha, a última prece do dia. Com o fim da jihad afegã, voltaram ao seu país ou se misturaram à população local, no Afeganistão ou no Paquistão, onde muitos se casaram. Nos meios da Al-Qaeda, estes eram qualificados como dravesh – os que gostam da vida fácil.

O campo “egípcio” compunha-se dos mais politizados e ideologicamente motivados. A maioria era afiliada aos Irmãos Muçulmanos [1], mas rejeitava a via parlamentar preconizada por essa organização. Para os partidários dessas idéias, homens muitas vezes instruídos – médicos, engenheiros etc – a jihad afegã constituía um forte cimento. Muitos eram antigos militares que haviam aderido ao movimento clandestino Jihad Islâmica, do doutor Ayman al-Zawahiri (que viria a ser o braço direito de Bin Laden). Foi esse o grupo que assassinou Anuar Sadat em 1981, para puni-lo por ter assinado a paz com Israel em Camp David, três anos antes. Todos estavam convencidos de que os Estados Unidos e os “governos fantoches” do Oriente Médio eram os responsáveis pelo declínio do mundo árabe.

No campo egípcio, depois da isha, debatia-se sem cessar sobre o futuro. Os dirigentes inculcavam nos adeptos a necessidade de investir energia nas forças armadas de seu próprio país e de cultivar ideologicamente os melhores cérebros.

Talibãs afegãos afastam-se da Al-Qaeda e se aproximaram do Paquistão

Nas origens da Al-Qaeda encontra-se o Maktab Al-Khadamat (Agência de Serviços), criada por Abdallah Azzam a partir de 1980, a fim de apoiar a resistência afegã. O fundador veio a falecer em 1989 num atentado [2]. Bin Laden, um de seus principais discípulos, sucedeu-o à frente do movimento, para transformá-lo na Al-Qaeda.

“A maioria dos combatentes ’iemenitas’ – guerreiros bastante rústicos, cuja única ambição era o martírio – deixou o Afeganistão depois da queda do governo comunista”, explicou, durante uma entrevista recente em Amã, o filho do fundador do Maktab Al-Khadamat, Hudaifa Azzam. “Os ‘egípcios’ ficaram, pois suas ambições políticas continuavam insatisfeitas. Mais tarde, juntaram-se a Bin Laden, que voltara do Sudão em 1996, e começaram a convertê-lo à visão takfirista — pois, até então, seu pensamento era inteiramente voltado para a luta contra a hegemonia norte-americana no Oriente Médio”.

Hudaifa Azzam passou quase vinte anos junto aos militantes árabes no Afeganistão e no Paquistão. “Quando encontrei Bin Laden em Islamabad, em 1997, ele estava acompanhado do somaliano Abu Obadia e dos egípcios Abu Haf e Saiful Adil, os três pertencentes ao campo ‘egípcio’. Percebi então que as idéias extremistas destes últimos tinham influência sobre ele. Em 1985, quando meu pai pediu a Bin Laden que fosse ao Afeganistão, ele respondeu que iria apenas com a permissão do rei Fahd, da Arábia Saudita, que, na época, ele ainda honrava com o título de Wali al-Amr (“Autoridade Suprema”). Depois do 11 de setembro, quando denunciou os dirigentes sauditas, pude medir o quanto o campo ‘egípcio’ o havia influenciado”.

Era essa, portanto, a situação quando, no início de 2006, mais de 40 mil combatentes aguerridos de origem árabe, tchetchna e uzbeque, ao lado dos waziristaneses e de outros militantes paquistaneses vindos das cidades, reuniram-se no Waziristão do Sul e do Norte. A liderança talibã viu-se diante de um dilema, pois a maioria desses militantes preferia combater as forças armadas paquistanesas na zona tribal a lutar contra a ocupação do Afeganistão.

Novos confrontos pareciam inevitáveis. A cúpula talibã entendeu que o conflito punha em risco a grande ofensiva contra as forças da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), preparada para a primavera de 2006, e que era preciso desmontá-lo o mais rapidamente possível. O mulá Muhammad Omar, chefe em fuga dos talibãs, enviou o mulá Dadullah (um dos melhores comandantes do sudoeste do Afeganistão, morto em maio de 2007) para persuadir os talibãs paquistaneses e as facções da Al-Qaeda a se concentrarem nessa ofensiva, em vez de desperdiçarem suas forças. A mediação resultou, sim, num acordo de paz, mas entre os talibãs da zona tribal e as forças armadas paquistanesas. Tal acordo, firmado em 5 de setembro de 2006, previa, principalmente, a dispensa de todos os combatentes estrangeiros. O cessar-fogo permitiu ao poder paquistanês tecer sólidos laços com os líderes talibãs nos dois Waziristãos. Esses líderes receberam quantidades consideráveis de armas e dinheiro, além de lisonjeiros convites em Islamabad.

O acordo assinado resultava da constatação feita pela direção dos talibãs: depois de cinco anos de colaboração com a Al-Qaeda, a resistência no Afeganistão estava num impasse. Certamente ela havia se tornado mais forte. Mas os talibãs não puderam atingir nenhum objetivo estratégico maior, como teria sido a tomada de Kandahar ou o cerco de Kabul. Os comandantes talibãs perceberam que sua organização não podia esperar ganhar uma batalha contra o poder do Estado. A solução consistia, portanto, em encontrar outros recursos, de origem governamental. Voltaram-se então, naturalmente, para seu antigo protetor, o Paquistão. Daí o acordo de 5 de setembro.

O acordo resiste, apesar das provocações dos partidários de Bin Laden

Os líderes talibãs, tanto no Waziristão quanto no Afeganistão, estavam satisfeitos com o compromisso e pouco criticaram a expulsão dos combatentes estrangeiros. Supunha-se que eles fossem se juntar em massa à resistência afegã. Não estavam descontentes tampouco por se livrarem da Al-Qaeda e dos elementos que desenvolviam uma estratégia global, desviando-os do combate contra as forças da OTAN.

Em contrapartida, o acordo era inaceitável para os “guerreiros planetários” da Al-Qaeda, que sonhavam com um conflito regional em várias frentes, conduzido a partir das bases novamente estabelecidas no Waziristão. A perspectiva de pequenas escaramuças no Afeganistão pouco compensava seu sonho de uma vitória brilhante sobre a direção paquistanesa, muçulmana não-praticante. Além disso, a Al-Qaeda pensava em se beneficiar com novos trunfos.

Os dirigentes da rede terrorista logo entenderam que os acordos entre o Paquistão e os talibãs constituíam uma ameaça. Temiam também que os talibãs fossem emboscados pelos serviços de informações paquistaneses. Procuraram, então, sabotar a trégua, explorando divergências entre os signatários. Uma dessas oportunidades lhes foi oferecida pelo bombardeio de um campo de treinamento no Waziristão do Sul pela aviação paquistanesa, em 17 de janeiro de 2007, causando a morte de vários combatentes estrangeiros. Baitullah Mehsud, um dos raros dirigentes talibãs no Waziristão do Sul, denunciou os acordos, considerando que o Paquistão os havia violado. Tahir Yaldeshiv, conhecido militante uzbeque e ideólogo takfirista baseado no Waziristão do Sul, logo lhe deu apoio, despachando mais de uma dezena de grupos de kamikazes a fim de espalhar o terror nos centros urbanos paquistaneses. O balanço foi pesado para a população civil, mas os acordos sobreviveram, apesar das preocupações do presidente Pervez Musharaff com o seminário da Mesquita Vermelha (Lal Masjid) de Islamabad, que procurava impor uma islamização ao estilo talibã na capital.

Se os acordos sobreviveram foi porque convinham a ambas as partes. Eles permitiam aos dirigentes paquistaneses construir uma estratégia capaz de fazer face à ação da Al-Qaeda na zona tribal. Por outro lado, eram uma resposta à desilusão dos talibãs, cansados da estratégia global da Al-Qaeda, considerada monomaníaca, que servira apenas para enfraquecer a resistência afegã. Haji Nazir, comandante talibã pouco conhecido, cortejado e alimentado com dinheiro e armas pelos serviços de segurança paquistaneses, tornou-se rapidamente o homem forte do Waziristão do Sul. Nazir deixou a escolha aos combatentes estrangeiros: serem desarmados ou irem reforçar a ofensiva contra as tropas da OTAN no Afeganistão. Como se podia prever, eles rejeitaram a oferta. E um confronto armado, em março de 2007, fez mais de 140 mortos, na maior parte originários da Ásia central. No Waziristão do Norte, houve incidentes do mesmo tipo.

Os comandantes talibãs precisaram levantar o cerco aos militantes estrangeiros e permitir-lhes seguir qualquer destino de sua escolha. Estes preferiram ir para o Iraque, nova terra prometida, em vez de para o Afeganistão.

Suspeita: ao dividir os árabes no Iraque, a Al-Qaeda estaria trabalhando para os EUA?

A Al-Qaeda começou a enviar combatentes dos dois Waziristão para o Iraque imediatamente depois da invasão norte-americana de 2003. Esse movimento foi acelerado pelas divergências ideológicas e estratégicas que a opunham aos talibãs. “Logo que foi nomeado administrador do Iraque, Paul Bremer [3] dissolveu todas as forças de segurança do país”, lembra Muhammad Bashar Al-Faidy, dirigente da Associação dos Ulemas Muçulmanos, um dos atuais integrantes da resistência anti-norte-americana. “Fomos então visitá-lo em delegação e o alertamos contra essa decisão, que iria permitir que todos atravessassem nossas fronteiras. Deveríamos ter preservado ao menos os guardas de fronteira. Bremer não concordava: para ele, todas as forças de segurança estavam com Saddam. Logo, os iraquianos assistiram, impotentes, a um afluxo de todo tipo de indivíduos sem escrúpulos, terroristas da Al-Qaeda ou vindos do Irã, que se juntaram no Iraque em torno de objetivos próprios”. Ele conclui: “Hoje, creio que essa política de Bremer era conscientemente destinada a atrair os militantes da Al-Qaeda para o Iraque, onde ele pensava que fosse mais fácil matá-los ou capturá-los do que no Afeganistão ou no Waziristão [4].

Todavia, enquanto a Al-Qaeda se esforça para tomar a direção da luta e convertê-la à sua visão global, os dirigentes iraquianos da resistência, movidos antes de tudo por objetivos nacionalistas, preocupam-se cada vez mais e gostariam de se livrar desses combatentes estrangeiros. Indícios dessas dissensões foram recentemente relatados pela mídia árabe. A rede de televisão Al-Jazira transmitiu, em abril de 2007, as palavras de Ibrahim Al-Shammari, porta-voz do Exercito Islâmico, sobre sua ruptura com a Al-Qaeda. Os objetivos dos dois movimentos são tão diferentes, afirmou, que, em certas circunstâncias, o Exército Islâmico preferiria tratar com os Estados Unidos.

A esse respeito, Al-Faidy não tem meias palavras: “Todos os elementos estrangeiros que se integraram às milícias irregulares são uma maldição para a resistência. Eles se obstinam em querer controlar o Iraque para levar à frente seu próprio projeto. A Al-Qaeda foi infiltrada por numerosos serviços de informações, sem falar de seus desvios religiosos, como o takfirismo. Afinal de contas, é o povo iraquiano que está pagando um pesado tributo. O mesmo se dá com as milícias xiitas apoiadas pelos serviços iranianos. Elas querem dominar o sul do Iraque e já assassinaram, até o momento, cerca de trinta xeques. Os xeques dessa região gostariam de se juntar à resistência contra o ocupante, mas as atividades dessas milícias apoiadas pelo Irã os impedem”.

Segundo o dirigente da associação dos ulemas, a maior parte das operações de envergadura montadas no Iraque é realizada pelos grupos nacionais de resistência. Mas, como estes são lentos em reivindicá-las, os meios de comunicação internacionais os atribuem freqüentemente à Al-Qaeda. “Até mesmo James Baker [5]”. ]] admite que a Al-Qaeda é apenas um elo modesto da resistência. Pagamos hoje o preço de ter aceito a Al-Qaeda dentro da resistência, num primeiro impulso de entusiasmo. Depois da invasão norte-americana, queríamos convencer todo mundo a se juntar à luta contra o invasor. Quando chegaram ao Iraque os primeiros combatentes da Al-Qaeda, nós os recebemos de braços abertos. Mas, hoje, tudo o que eles fazem prejudica seriamente a resistência”.

Seja a resistência iraquiana sejam os talibãs ou outros grupos que aceitaram a Al-Qaeda em suas fileiras, todos agora pagam o preço.



[1] A Organização dos Irmãos Muçulmanos foi criada em 1928, no Egito, por Assam Al-Banna. Disseminou-se depois pelo mundo árabe. Ler «Une internationale en trompe-l’œil”, de Wendy Kristianasen, Le Monde Diplomatique, edição francesa, abril de 2000.

[2] O assassinato continua um mistério. Segundo alguns, Bin Laden teria sido o mandante, depois de divergências surgidas entre os dois homens.

[3] Paul Bremer foi procônsul dos Estados Unidos no Iraque, entre maio de 2003 e junho de 2004.

[4] Outra possibilidade a ser considerada é que Bremer pretendesse se valer da Al-Qaeda para debilitar a posição dos xiitas no Iraque – o que, de fato, viria a ocorrer. As relações entre a Al-Qaeda e o governo Bush ainda estão por ser esclarecidas (nota da edição brasileira impressa)

[5] Alusão às conclusões do Relatório Baker-Hamilton, The Irak Study Group Report, publicado nos Estados-Unidos em dezembro de 2006, que levanta uma série de propostas para a política norte-americana no Iraque. Representantes democratas e republicanos participaram da redação, mas suas principais conclusões foram rejeitadas pelo presidente Bush. Pode ser consultado em: www.usip.org/isg/iraq_study_group_report/report/1206/index.html

Instituto Humanitas Unisinos - 09/08/08

Governo Bush prepara 'Plano México'

O governo americano está preparando uma espécie de 'Plano Colômbia' para o México. O projeto, segundo deputados e fontes da Casa Branca, seria a maior ofensiva dos EUA contra o narcotráfico no exterior depois do programa de ajuda financeira, cooperação técnica e militar desenvolvido em parceria com o governo colombiano em 2000, que já recebeu US$ 5 bilhões. A reportagem é do Washington Post, Christian Science Monitor e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 9-08-2007.

A versão mexicana incluiria desde o uso de helicópteros Black Hawk até o treinamento de forças de segurança e o repasse de equipamentos como escutas telefônicas e radares para detectar aviões suspeitos de carregar droga. 'Serão centenas de milhões de dólares', disse ontem o deputado democrata Henry Cuéllar, acrescentando que o custo do projeto será divulgado em breve pelo Congresso. 'Se queremos ter sucesso em acabar com esse câncer (o narcotráfico), temos de investir pesado.'

O Departamento de Estado negou-se a divulgar informações sobre o novo plano, mas, segundo um funcionário ligado aos órgãos de combate ao narcotráfico nos EUA, as negociações com o governo mexicano estão avançadas. A mesma fonte disse que algumas partes do projeto devem ser divulgadas no dia 20, quando o presidente mexicano, Felipe Calderón, e seu colega americano, George W. Bush, participarão da reunião dos países membros do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) no Canadá.

A ajuda americana viria em momento oportuno. Calderón está organizando uma das maiores ofensivas contra o tráfico da história do Mexico, em resposta a um aumento da narcoviolência. Desde 2006, mais de 3 mil pessoas já morreram em disputas entre os cartéis da droga mexicanos. Faz pelo menos 20 anos que não se via uma situação tão crítica. A violência, que antes se concentrava na região próxima à fronteira com os EUA, se espalhou pelo país. Além disso, os traficantes estão adotando técnicas cada vez mais cruéis - como torturas, mutilações e decapitações.

Para combater as quadrilhas, depois que assumiu o poder, em dezembro, Calderón enviou mais de 20 mil soldados e policiais federais para nove Estados nos quais a situação é grave. Em junho, ele afastou quase 300 chefes da polícia, numa tentativa de desmantelar as redes de cooperação com o crime.

A proposta de um 'Plano México', porém, ainda sofre grande resistência no país latino-americano. 'Queremos fazer isso com cuidado'', disse Cuéllar. 'Existe um incômodo no México quando se trata de receber ajuda dos EUA.' Para boa parte da população mexicana, a idéia de uma cooperação militar estreita cheira a ingerência. A aversão tem raízes históricas, ligadas ao fato de os EUA terem tomado quase metade do território original do México no século 19.

Numa tentativa de reverter esse quadro, deputados dos EUA viajaram para o México recentemente para discutir o projeto com parlamentares.

Plano Colômbia

Valor: US$ 5 bilhões em 7 anos

Pacote: Pelo plano, EUA fornecem helicópteros - incluindo Black Hawk -, tecnologia para coleta de informações de inteligência e treinamento militar, policial e de espionagem para o país

Plantações: Governo dos EUA também enviou aviões de fumigação para erradicar plantações de folha de coca

Instituições: Plano também prevê financiamento para reforma do sistema jurídico da Colômbia. Após o 11 de Setembro, o plano estendeu-se para apoio ao combate aos grupos armados

Plano México

Valor: Auxílio pode chegar a centenas de milhões de dólares

Pacote: Helicópteros, equipamentos de escuta telefônica, radares para rastrear movimentação aérea de traficantes e aviões para transportar equipes mexicanas de combate ao narcotráfico

Treinamento: Soldados mexicanos continuarão sendo treinados nos EUA. Não se prevê que americanos atuem diretamente em solo mexicano

Instituto Humanitas Unisinos - 09/08/08

Brasil pode perdoar dívida nicaragüense

"Hidrelétrica, sim. Etanol, não!" é a manchete do jornal nicaragüense La Prensa, 9-08-2007, ao informar que "Daniel Ortega não aceitou discutir a possibilidade de produzir etanol a partir do milho, ainda que Lula falasse do etanol de cana de açúcar".

No dia anterior, Daniel Ortega afirmara que na Nicarágua é "completamente inadmissível e um crime" produzir etanol derivado do milho, apesar de sobre este tema haver discordância com Luiz Inácio Lula da Silva.

Segundo o jornal nicaragüense, Daniel Ortega confirmou que foi assinado um memorando de entendimento para que o Brasil perdoe a dívida de 5,9 bilhões de dólares. Os recursos seriam aplicados em projetos sociais e de desenvolvimento. Ortega também afirmou que falou com Lula sobre a possibilidade da Nicarágua se integrar no Mercosul e na União de Nações do Sul - Unasur.

Instituto Humanitas Unisinos - 09/08/08

O neoliberalismo à brasileira. Artigo de Ricardo Luiz Chagas Amorim

"O governo Lula aparece numa encruzilhada. O continuísmo da era FHC no primeiro mandato manchou as esperanças da mudança. Porém, reeleito por assistir aos desassistidos, o presidente iniciou esforços com o PAC e reforçou os programas de distribuição de renda, incluindo aí a Previdência e o salário mínimo", escreve Ricardo Luiz Chagas Amorim, professor da Universidade Mackenzie, pesquisador ligado ao Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), membro da Sociedade Brasileira de Economia Política e autor, com outros pesquisadores, da série "Atlas da Exclusão Social no Brasil", em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, -08-2007. Segundo ele, "o problema é saber se estamos ante um governo capaz de evitar a sangria de bilhões em juros pagos aos mais ricos e se ele vencerá o desastroso neoliberalismo à brasileira".

Eis o artigo.

"O Brasil dos anos 1980 não era para principiantes. Aqueles anos não foram só de crise ou difíceis. Ali se modificou algo mais profundo e grave para o futuro do país. A esperança do Brasil grande, país do futuro, a segurança com que se olhava o porvir e o quase atrevimento ao enfrentar pressões estrangeiras, de um momento para o outro, viraram fumaça e quase uma culpa.

A partir dali, passamos a duvidar de nós, da capacidade do país progredir, da nação. O Estado, guia daquele progresso, viu-se endividado e enfraquecido. Houve incerteza sobre o destino antes declarado e desapareceu o projeto nacional. A análise, levada a cabo pelo ex-ministro Reis Velloso ("O Último Trem para Paris)", mostra a perplexidade do Brasil ao viver a primeira crise importante após décadas de elevado crescimento.

Contudo, cabe reparar que, por trás desse sentimento, havia grupos sociais fortes que reagiam aos constrangimentos da vida nacional empurrando o país na direção do seu interesse.

Esses grupos fortes eram os proprietários do capital e da mídia, capazes de espalhar suas idéias, desejos e visões de mundo por toda a sociedade. Ao formarem opinião, legitimavam sua aspiração, que passava a traduzir-se em "vontade nacional" - um formato ideológico para seus desejos.

Assim, divergindo do ex-ministro Velloso, o que se divisou à época foi a perplexidade desses proprietários que percebiam desmoronar um arranjo social que lhes garantia lucros e ganhos claramente sustentados nos gastos e investimentos do Estado.

Em outras palavras, 1980 assistiu ao esgotamento - talvez precoce - do processo de substituição de importações apoiado e dirigido pelo Estado.

Ali, após forte endividamento e em meio a conturbada transição política, o Estado se viu inerte e pesado, abrindo espaço para a crítica oportunista e o renascimento de um pensamento liberal muito especial: o neoliberalismo à brasileira. Ou seja, um neoliberalismo que buscava apenas o desmonte de uma ordem que não mais permitia a continuidade dos lucros anteriores e, portanto, já não agradava as camadas proprietárias do país.

Em outras palavras, os evocados princípios liberais eram só uma desculpa que não ia além dos editoriais jornalísticos e do palavrório dos discursos. Todo o necessário contraponto liberal-conservador formado pela igualdade de oportunidades, pelo rigor da lei pairando sem distinção sobre todos e pela fundamental democratização do poder para além do voto foram esquecidos. Os privilégios e a perpetuação do status quo, repisando os sobrenomes aquinhoados de sempre, não foram questionados.

A repetição constante de discursos e reportagens sobre a "ineficiência do Estado" e seu "elevado custo" transmutou o mantra em "verdade". O que ainda manteve o Estado com força naquele momento crítico foi a emergência do combate à inflação e a delicadeza da transição política. Mas foi nos anos 1990 que o neoliberalismo à brasileira se materializou. Primeiro com Fernando Collor e, depois, com Fernando Henrique, o Brasil viveu importantes transformações de corte neoliberal que, longe de reforçar a produção e o progresso social, consolidaram um novo padrão de capitalização no país, crescentemente financeiro e menos produtivo. Os investimentos produtivos privados, por exemplo, se estabilizaram bem abaixo do pico do final dos anos 1980, abrindo um novo caminho para obtenção de lucros por meio dos ganhos financeiros.

Isso é novo? Não. Os ricos até os anos 1980 dependiam do planejamento e da indução econômica dos gastos do Estado para garantir seus lucros. Agora, quando fazem cara feia para eles, escondem que ainda precisam do Estado.

É o Estado que continua a alimentar a acumulação de capital, mas de uma forma cada vez mais líquida, menos presa a máquinas e equipamentos. Hoje, os ganhos dos grandes proprietários são sustentados não pela demanda de bens e serviços, mas pelos volumosíssimos juros pagos pelo erário aos donos da dívida pública. De outra maneira, Sérgio Buarque de Holanda ("Raízes do Brasil") já falava sobre a apropriação que as elites fazem do Estado em benefício próprio.

É nesse ponto que o governo Lula aparece numa encruzilhada. O continuísmo da era FHC no primeiro mandato manchou as esperanças da mudança. Porém, reeleito por assistir aos desassistidos, o presidente iniciou esforços com o PAC e reforçou os programas de distribuição de renda, incluindo aí a Previdência e o salário mínimo. O problema é saber se estamos ante um governo capaz de evitar a sangria de bilhões em juros pagos aos mais ricos e se ele vencerá o desastroso neoliberalismo à brasileira."

segunda-feira, agosto 06, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 06/08/07

Pesquisa descobre 50 novas espécies de peixe

Depois de dois anos de estudos, pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de São José do Rio Preto, a 440 quilômetros de São Paulo, começam a catalogar 50 novas espécies de pequenos peixes de água doce descobertas na bacia do alto Rio Paraná, nos Rios Grande, Tietê, Paranapanema, Paranaíba e Paraná, entre os estados de Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul. A reportagem é de Chico Siqueira e publicada no jornal O Estado de S. Paulo, 6-08-2007.

Além de revelar que a diversidade de espécies na região é maior do que se imaginava, a descoberta mostra que há peixes pequenos adultos que sobrevivem à degradação de nascentes, riachos, ribeirões e pequenos lagos marginais a estes grandes rios.

“Pode-se imaginar que são filhotes, mas não. São peixes adultos que sobrevivem nesses pequenos ambientes que sofrem uma grande carga de ataque, como o soterramento dos mananciais pela agricultura e o corte das matas ciliares”, explica o professor Francisco Langeani, do Departamento de Zootecnia da Unesp de Rio Preto e autor do projeto Ictiofauna da Região do alto Rio Paraná. O estudo conta com 20 pesquisadores da Unesp, da Universidade de São Paulo (USP) e das Universidades Estaduais de Londrina e Maringá.

A descoberta também pode auxiliar no desenvolvimento de estudos sobre a genética e reprodução dos peixes e também nas pesquisas de ecologia.

“O mais importante é que podemos mostrar à população que é necessário preservar esses ambientes, pois no ritmo em que vai, essa degradação do meio ambiente pode extinguir muitas espécies antes mesmo de serem conhecidas”, afirma Langeani.

Os exemplares, todos de no máximo 20 centímetros de comprimento (a maioria de 2 a 3 centímetros), foram coletados em pequenos ambientes marginais dos rios da bacia. Vinte e cinco espécies foram retiradas de coleções científicas disponibilizadas aos pesquisadores e outras 25 encontradas em 30 a 40 coletas feitas por meio de pesca elétrica em vários riachos da bacia.

Entre as espécies encontradas, algumas despertaram mais a atenção e estão sendo chamadas popularmente de novo canivete, novo bagrinho, novo cascudinho e novo lambarizinho, por serem semelhantes a peixes da região. Os nomes científicos oficiais ainda serão determinados pelos pesquisadores.

Depois de catalogadas, as descobertas serão publicadas e em seguida, iniciada uma nova etapa do projeto, que prevê coletas em outras porções menos exploradas da margem direita do Rio Paraná (MS), e de riachos do Rio Paranaíba (PR).

Instituto Humanitas Unisinos - 06/08/07

México quer Brasil em Alca sem EUA e Canadá

O México quer se aproximar dos países da América Latina, e começou a consultar os maiores da região sobre a possibilidade de uma negociação regional, uma espécie de Área de Livre Comércio das Américas (Alca) sem Estados Unidos ou Canadá, como definiu um importante diplomata argentino que tratou do tema com autoridades mexicanas, durante a visita ao México do presidente Néstor Kirchner, na sexta-feira. O governo brasileiro já foi informado de que deve receber essa sondagem, na visita de Luiz Inácio Lula da Silva ao México, nesta semana. A reportagem é de Sérgio Leo e publicada no jornal Valor, 6-08-2007.

"É perfeitamente razoável", comentou, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, que confirmou ter notícia do interesse mexicano em retomar negociações para um futuro acordo de livre comércio regional. "Já existe uma base, uma resolução aprovada pelos membros da Aladi (Associação Latino-Americana de desenvolvimento e Integração) com o compromisso de buscar um espaço econômico comum".

Em entrevista ao Valor, por meio eletrônico, ainda antes da visita de Kirchner e Lula, o ministro da Economia do México, Eduardo Sojo, reiterou que seu país está interessado em "participar como membro associado" do Mercosul, e que o governo mexicano, "muito interessado" em ampliar a liberalização do comércio entre as duas maiores economias latino-americanas, pretende buscar "todas as modalidades possíveis" para ampliar o acordo de reduções tarifárias existente entre o México e o Brasil. A visita de Lula ao México é "de vital importância para o México", garante o ministro.

O acordo comercial existente, chamado ACE 53, tem um número limitado de produtos com menores tarifas no comércio entre os parceiros e há resistências do setor agrícola mexicano e de indústrias brasileiras, como a de eletroeletrônicos, para sua expansão ou transformação em acordo de livre comércio. "Serão os próprios setores empresariais que recomendarão quais produtos e setores serão incluídos nas negociações" de ampliação do acordo, diz o ministro Sojo.

O interesse na aproximação com o Brasil provoca uma reação enfática do ministro mexicano quando lhe perguntam sobre a disputa entre México e Brasil nas negociações multilaterais da Organização Mundial do Comércio - onde o México e aliados como Colômbia e Chile reivindicam maior abertura para o comércio de bens industriais, contra a posição defensiva de Brasil, Índia, Argentina e outras nações em desenvolvimento. "De nenhuma maneira", diz Sojo. Os laços históricos entre os dois países "impossibilitam ver-nos como adversários", diz.

"Temos trabalhado conjuntamente como membros do G-20", garante o ministro, referindo-se ao grupo de países em desenvolvimento favoráveis à maior abertura dos mercados agrícolas. Brasil e México tentam, juntos, criar pontos de convergência e aproximar "posições extremas", argumenta. Amorim, conciliador, também evita polemizar, e fala até em buscar alguma fórmula para permitir maior integração do México ao Mercosul, já que a condição de membro associado só é possível a países com quem o bloco já tenha acordo de livre comércio.

"O México já é observador em nossas reuniões, podemos pensar em uma categoria de observador especial, uma maior institucionalidade a essa participação", especula Amorim. Na visita ao México, Kirchner chegou a defender o ingresso do México no Mercosul, idéia impossível porque exigiria que o país abandonasse o Nafta, acordo de livre comércio com EUA e Canadá. Mas o convite foi visto na comunidade internacional como gesto político de Kirchner, no esforço de maior aproximação com um dos governos mais à direita no espectro político regional.

O ensaio de acercamento do México com os latino-americanos, na tentativa de vencer a imagem de satélite dos Estados Unidos, é evidente, e faz com que o ministro da Economia faça questão de falar também da agenda política bilateral. "Brasil e México estão convocados a desempenhar um importante papel na construção de uma ordem internacional mais justa, pacífica e segura, fincada no multilateralismo", discursa Sojo, que defende "ações conjuntas em fóruns internacionais".

Ele dá como exemplo a questão climática. "Já começamos conversas para troca de experiências para enfrentar a mudança climática, reduzir a emissão de gases que provocam efeito estufa, aproveitar energia renováveis e produzir e usar biocombustíveis". O México apóia o esforço brasileiro de criação de padrão único para o etanol e quer usar o memorando de cooperação em bioenergia, que prevê ação conjunta no setor.

No campo comercial, ainda, segundo Sojo, "uma área de grande oportunidade" é o setor de serviços, que representa 66% da riqueza do país e 60% dos empregos. "Tanto México quanto Brasil temos desenvolvido empresas fortes na exportação de informática, software, consultoria, construção, turismo e telecomunicações", exemplifica, ao prever mais investimentos no setor. O México, lembra, já tem investimentos superior a US$ 15 bilhões no Brasil, o mais recente, de US$ 400 milhões, pela Femsa, fabricante da cerveja Sol.

Por enquanto, os dois países só capricham em manifestações de boa vontade, que coincidem com uma aparente guinada ao exterior por parte também da Argentina. A mais forte candidata à sucessão de Kirchner, sua mulher, Cristina, é vista como mais interessada em temas internacionais - ainda que a competência da candidata seja uma incógnita, alimentada pelo assessores que a protegem de contatos potencialmente reveladores com a imprensa. A visita de Kirchner ao México foi vista por diplomatas da região, porém, como um importante indício de mudança na introvertida política externa argentina.

A idéia de aproveitar a Aladi como base para um acordo ainda terá de superar obstáculos como a resistência interna nos países e a heterogeneidade desse arranjo regional, que tem a comunista Cuba entre seus integrantes. É, no entanto, uma novidade na agenda regional, onde a agitação do presidente venezuelano Hugo Chávez tem tido mais êxito em impor os temas de discussão.

Instituto Humanitas Unisinos - 06/08/07

Capital estrangeiro nos negócios fundiários pode atrasar reforma agrária, diz Incra

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) teme que o aumento dos negócios fundiários que se verifica no País , com a injeção de capital estrangeiro, dificulte o avanço da reforma agrária. Acredita-se que as áreas disponíveis para a criação de assentamentos rurais tendem a ficar mais escassas, mais caras. Segundo o presidente da autarquia, Rolf Hackbart, esse movimento está associado à expansão da cultura da cana-de-açúcar, para a produção de etanol, mas não só. A reportagem é de Roldão Arruda e publicada no jornal O Estado de S. Paulo, 6-08-2007.

“Estamos diante de uma realidade que vai além da matriz energética”, diz ele. “Investidores internacionais, por meio de empresas brasileiras, compram terras como reserva de valor a médio e a longo prazo. Fazem isso porque há escassez de terras e porque o preço tem subido de forma significativa nos últimos anos. Na região Centro-Oeste, houve uma valorização de 24% na última década.”

Outra preocupação do Incra é com os pequenos e médios produtores rurais - que ficam numa situação desvantajosa perante os detentores de dólares e euros na hora de negociar terras. Daí o fato de a autarquia estar articulando, juntamente com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, uma revisão das leis que tratam da compra de terras por estrangeiros.

De acordo empresas de consultoria na área do agronegócio, a maior parte dos investidores estrangeiros que desembarcam no País atrás de negócios com etanol e biodiesel destina quase todo o seu capital para a compra de usinas. Poucos compram imóveis. Preferem arrendá-los, seguindo o exemplo dos usineiros brasileiros.

Uma das exceções é a Adecoagro, empresa de capital argentino e americano e que tem o multimilionário George Soros entre seus acionistas. Proprietária de quase 30 mil hectares de terras no País, nos quais produz soja, milho, algodão e café, a Adecoagro investe agora na compra de uma área de 150 mil hectares em Mato Grosso do Sul, para a produção de cana.

Os negócios com terras são mais freqüentes nas regiões de fronteira agrícola, onde a possibilidade de valorização imobiliária é maior. É o caso do extremo oeste da Bahia, de partes de Mato Grosso e do Maranhão.

No oeste baiano, fazendeiros americanos compram terras em áreas sem energia elétrica e onde as estradas são precaríssimas. Apostam na capacidade de produção da região - especialmente de soja, milho e algodão - e na valorização dos imóveis.

De acordo com Oziel de Oliveira, prefeito de Luís Eduardo Magalhães, a mais próspera cidade da área, a 900 km de Salvador, os estrangeiros formam a terceira leva de colonizadores. “A primeira foi com o pessoal do Sul do País, que veio plantar arroz e soja. Depois vieram os paulistas e mineiros, com café, fruticultura e pecuária. E, agora, os americanos, australianos, holandeses, com algodão, milho...”

Ainda segundo Oliveira, que é paulista, cerca de 1,5 milhão de hectares já estão produzindo na região: “Mas ainda existem outros 3 milhões para serem explorados, já considerando todas as áreas que devem ser preservadas.”