O livro do francês Thomas Piketty sobre a história do capital e sua repartição passou a ser o mais vendido na Amazon. Encontrou mecanismos que explicam a desigualdade económica e o desenvolvimento de uma sociedade de herdeiros.
I. O que podemos saber sobre a repartição da riqueza e a sua evolução desde que existe o capitalismo? Se é certo que ela é sempre desigual, e se é certo que existem dados seguros para a estudar, pelo menos, desde o século XVIII em França, verificamos que essa desigualdade tem vindo a diminuir nos últimos 200 e tal anos? Ou, pelo contrário, tem vindo a aumentar? Como devemos aferir a justiça ou injustiça da repartição desigual da riqueza no quadro do capitalismo? O que nos diz ela sobre o próprio capitalismo como sistema de produção e distribuição de riqueza? Estas são as perguntas fundamentais do livro de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI.
Quando o li, há umas semanas, estava ainda longe de imaginar o brutal impacto que ele viria a ter. Apesar das quase 700 páginas da edição inglesa, e das quase 1000 da edição francesa, atingiu recentemente a surpreendente condição de ser o mais vendido na Amazon. Paul Krugman chamou-lhe “o livro da década”. Stiglitz, Solow, Milanovic e outros economistas de topo foram igualmente elogiosos. Escreveram-se entretanto dezenas de recensões. Todos os dias aparece uma nova, ou mais do que uma. As recensões mais recentes são quase todas de economistas de direita que procuram pôr em causa as principais teses de Piketty. Outras são igualmente críticas, embora venham de economistas de esquerda. A estes, Piketty parece porventura demasiado favorável ao capitalismo; àqueles, demasiado hostil. De facto, a sua concepção do capitalismo implica, por um lado, prezá-lo como um extraordinário produtor de riqueza, de inovação, de tecnologia, de bem-estar, em suma: de desenvolvimento — mas, por outro, implica condená-lo como um sistema que tende a repartir a riqueza de um modo demasiado desigual e, na verdade, injusto e anti-democrático.
Felizmente, Piketty não escreve apenas para economistas, nem sequer apenas para especialistas das diversas áreas das ciências sociais e humanas. “A repartição da riqueza é uma questão demasiado importante para ser deixada apenas a economistas, sociólogos, historiadores e filósofos. Ela interessa a toda a gente, e ainda bem”, sublinha na introdução. Por esta razão, não há praticamente nada no livro que não esteja explicado de forma bastante elementar e clara — de tal forma, aliás, que o volumoso calhamaço se lê quase como um romance.
II. Para ser mais exacto, o volumoso calhamaço lê-se como um livro de história económica e, em grande medida, é um livro de história económica. Esta é provavelmente uma das razões por que muitas das recensões escritas por economistas são tão negativas e, em muitos casos, distorcem tão gravemente as teses de Piketty (nalguns casos, isso explica-se também pelo facto de os recenseadores fingirem ler um livro que não leram). Alguns dos economistas que escreveram sobre o livro pressupuseram que as teses de Piketty não poderiam não pretender ter o estatuto de verdades a priori de um modelo económico — quando, na verdade, pretendem ter apenas o estatuto de verdades históricas e, portanto, empíricas; outros perceberam bem a sua natureza apenas histórica e empírica — mas consideraram que, precisamente por isso, o livro não prova o que pretende provar, sobretudo quando fala do futuro.
Mas façamos a pergunta que todas as recensões têm feito e devem fazer: estamos, de facto, perante um livro que diz algo de fundamentalmente novo e muda a nossa forma de olhar para o mundo? um livro que faz avançar decisivamente a nossa compreensão do mundo em que vivemos e que, por isso, interessa, não apenas a economistas, e não apenas a sociólogos, historiadores e filósofos, mas, de facto, a toda a gente?
O livro é uma história do “capital”, como o título indica. “Capital”, para Piketty, tem um sentido lato (na verdade bastante conforme com o uso comum do termo), e significa o mesmo que “património”, ou “riqueza”: designa todo e qualquer “activo” (financeiro ou não financeiro, produtivo ou não produtivo) em que seja possível investir e que possa, por isso, proporcionar um retorno, seja este um retorno explícito (sob a forma, por exemplo, de rendas, dividendos, juros, ou lucros), seja um retorno implícito (como, por exemplo, a renda de habitação que não se paga quando se tem casa própria). Segundo Piketty, só este conceito de capital (nada usual na ciência económica) permite compreender o capitalismo e estudar a desigualdade económica no sistema capitalista — só esse conceito de capital permite desenvolver os métodos e explorar as fontes que conduzem à compreensão dos mecanismos da distribuição desigual do património, isto é, dos mecanismos que explicam a desigualdade não apenas (e não tanto) como um fenómeno resultante de diferenças salariais (ou de rendimentos do trabalho) quanto de diferenças na repartição da riqueza (e, portanto, no retorno do capital).
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