Na selva do Laos vivem como animais acuados os ex-auxiliares pagos pela Cia nos anos 1960. Washington os abandonou à extinção com crianças e famílias. O regime comunista lhes dá caça. A reportagem é de Vittorio Zucconi e publicada pelo jornal La Repubblica, 18-12-2007.
Eis o artigo.
São o exército dos zumbis esquecidos pela história, os restos de outro naufrágio bélico, criados e depois abandonados pelos impérios que os usam e os abandonam quando não servem mais. No coração mais profundo da selva indo-chinesa, na várzea do Laos junto ao Mekong, fazendo imediatamente ‘Apocalypse Now’, sobrevive um bando de irregulares do povo Hmong que a Cia recrutou nos anos 1960 como auxiliares na guerra do Vietnã e que Washington agora ignora. Abandonou-os à extinção junto com suas crianças e à lenta e cruel caça ao homem que o governo comunista da capital Vientiane conduz para eliminar também este último vestígio de uma guerra que todos, vencedores e vencidos, gostariam de esquecer.
Seguiu-lhes o rastro um enviado do New York Times, seguindo por dias e dias as veredas que os homens da Cia haviam traçado para alcançá-los, armá-los e mobilizá-los na guerra secreta que Washington conduzia contra os comunistas do Pathet Laos, os Vietcong e os Norte-Vietnamitas que, a partir daquelas montanhas, transitavam para reabastecer a guerrilha vermelha no Sul, ao longo da Vereda de Ho Chi Minh.
Por conta da Cia, sem que o Congresso ou a nação americana soubesse de nada, os Hmong do Laos controlavam bases aéreas, articulações viárias e aldeias às ordens de um “senhor da guerra” local, o autodenominado general Van Pao, com o dinheiro e as costumeiras promessas das potências coloniais, quando necessitam de tribos locais para sustentar suas batalhas. Mas, 30 anos após a fuga americana da Indochina e a vitória dos comunistas no Vietnã e no Laos, hoje, junto com a grande China, tornados amigos e parceiros daqueles EUA que haviam em vão procurado exterminá-los, estes poucos milhares de irredutíveis, que escolheram permanecer refugiados na selva, ou não conseguiram juntar-se aos 300 mil Hmong refugiados na América, morrem a lenta morte dos soldados japoneses abandonados nas Filipinas ou na Nova Guiné, após a rendição de Tóquio.
Muitos deles, e todos aqueles que têm menos de 40 anos, jamais haviam visto um “branco”, e um americano, desde quando “Mister Tony”, como era chamado o funcionário da Cia que os controlava, os havia deixado ao voltar para casa.
Desta tribo perdida se conhecia a existência através das investigações da Anistia Internacional e dos relatórios de Médicos Sem Fronteiras, que visitavam e cuidavam daqueles que conseguiam atravessar a fronteira com a Tailândia e refugiar-se nos esquálidos acampamentos onde a ONU e o governo tailandês, agora em ótimas relações com o Laos comunista, os acolhia de má vontade.
Quando o enviado americano os alcançou, ele conta ter assistido a cenas de entusiasmo lancinante, como se ele, um simples jornalista corajoso, fosse o sinal que a ingrata mãe América retornara para resgatá-los e levá-los embora, para os “paraísos” da Califórnia, onde vive a maior parte dos prófugos Hmong. Pelo menos para fazer voltar aqueles bimotores DC3 da Air America, a linha aérea da Cia, que descarregavam sobre as pistas entre as montanhas, hoje devoradas pela selva, comida, roupas, armas e medicamentos.
Esperarão bastante, porque estes dois mil zumbis de uma guerra que ninguém mais tem interesse em ressuscitar, agora que entre os Estados Unidos, a China, o Vietnam, Laos, Camboja e Tailândia se combate a golpes de comércio de brinquedos e de calçados fabricados com salários de fome, eles são um embaraço para todos. Os Hmong emigrados para a Califórnia, onde fatigosamente procuram integrar suas tradições, como os matrimônios com crianças de menor idade combinados entre famílias, que se chocam com as leis americanas, mantêm algum contato com os parentes do outro lado do Pacífico.
Um dos anciãos da aldeia, Xan Yang – os Hmong são uma população chinesa esparramada entre quatro nações vizinhas – diz que umas poucas vezes por ano consegue chegar clandestinamente a um telefone público numa aldeia e falar com a filha, que trabalha como distribuidora de correio em Fresno, na Califórnia, para solicitar-lhe que envie algum dinheiro. Coisa que a filha faz, sofrendo as chantagens e os gravames dos “muambeiros” que embolsam a metade das pequenas somas que ela envia.
São poucas centenas, estes guerreiros esquecidos sem esperança de serem jamais retirados de sua existência mantida pela caridade do arroz oferecido, com grave risco, pelas aldeias vizinhas, pelas batatas doces selvagens, pelos animaizinhos da floresta que caçam com arcos e flechas, reservando os poucos fuzis para os confrontos com o exército regular do Laos que realiza periódicas incursões, mais para atormentá-los do que para eliminá-los. Poucos dias antes da chegada do jornalista, fora sepultado um menino de cinco anos, na fossa de terra removida ainda fofa e muitas crianças trazem as cicatrizes de golpes de arma de fogo e de estilhaços, de fragmentos metálicos dos tiros de morteiro que o exército dispara ao acaso sobre seus acampamentos e suas cabanas.
Ninguém moverá um dedo para salvá-los. O governo americano prefere esquecê-los, como esqueceu os montanheses do Vietnã, os Montagnards que ainda se haviam batido contra os Vietcong com enorme vigor, e recusa reconhecer que eles foram soldados recrutados pela Cia, embora Yang e os velhos ainda recordem muito bem os códigos, as palavras de ordem, as instruções passadas por “Mister Tony”, que recitam como preces e jaculatórias a um Deus indiferente.
Para a China e o Vietnã, os dois maiores vizinhos, eles são um transtorno, mas bem menor em relação à chaga aberta pelo Tibet. E para as novas leis americanas sobre imigração, o infeliz Patriot Act votado no pânico do pós 11 de setembro, este bando de espectros extenuados e de crianças mal-nutridas são “terroristas”, porque, como adverte a lei, pegaram nas armas para combater como irregulares contra um governo reconhecido. O fato de que tivesse sido a própria América a pagar-lhes, a mobilizá-los e a armá-los contra um governo reconhecido, e por conseguinte, a fazer deles terroristas, não perturba Washington. As grandes potências, ensina a história, não têm amigos, têm somente interesses.
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