“Há mais pessoas que desistem do que pessoas que fracassam”. (Henry Ford)
Acordei às 5h30min e comecei a desmontar o acampamento e arrumar os sacos de viagem. Encontrei a comunidade toda fazendo a higiene matinal. Despedimo-nos e deixei avisado que, se a equipe de apoio aparecesse por ali, eu pretendia pernoitar na comunidade de Maçarabi. Escolhi essa comunidade tendo em vista que o mapa que eu conseguira com o Instituto Sócio-Ambiental (ISA) anunciava que lá eu poderia fazer uso de um telefone, para me comunicar com meus familiares e equipe de apoio em Porto Alegre.
- Partida (26 de dezembro)
O deslocamento solitário nos remete à reflexão. Mergulhado, literalmente, na selva tropical, eu ouvia somente o ruído das pás dos remos golpeando as serenas águas do dolente Negro. As paisagens se sucediam como numa caprichosa exposição fotográfica em que entes celestiais procuravam expor suas mais belas imagens. Tinha arbitrado parar nas lindíssimas praias, e a escolha não estava sendo fácil. As festas de Natal, regadas a muita bebida, tinham deixado, apenas para mim, aquela imensidão aquática. As comunidades ainda se ressentiam das ressacas pagãs dos festejos natalinos.
- Comunidade Maçarabi
A comunidade Maçarabi está encravada em altos rochedos na margem meridional do Negro. A visão do alto das rochas é formidável. As diversas ilhas com suas rochas, vegetação e praias nos remetem a uma Amazônica Polinésia. O ruído das inúmeras corredeiras quebra a monotonia silenciosa que envolve o Negro. Contatei o Capitão, graças a Dona Isabel, e este autorizou que eu me estabelecesse na Casa de Apoio. A Casa de Apoio estava localizada atrás das caprichosas instalações da FUNASA. Infelizmente o telefone não funcionava e não consegui estabelecer contato com o meu pessoal.
- Lenda dos Bares
“A teia aracnídea das lendas amazônicas, vasta e complicada, cômica e trágica, tanto mais extraordinária quanto envolta no mistério, é originária de todos quadrantes do globo. (...) Em cada ponto da planície equinocial, no ocidente ou no oriente, nas colinas do sul ou nas serras do norte, inventadas pelo aborígene, trazidas pelo africano, espalhadas pelo português, divulgadas pelo forasteiro, ingênuas, inverossímeis, risonhas, tenebrosas – as histórias dos animais e das sereias, dos gnomos e dos pajés empolgam a imaginação fecunda, plástica da gente que erra no Vale”. (Raymundo Moraes)
Dona Isabel, da etnia Baré, apareceu, mais tarde, para conversar. Viúva, ela morava com a filha e estava desiludida com a maneira de se festajar o Natal nas comunidades. Provoquei-a, para que me narrasse a lenda da origem do povo Baré. As coincidências de relatos me levaram a eleger uma das lendas coletadas por mim, há algum tempo, cujo autor, Braz de Oliveira França, apresenta com certa coerência a origem do povo Baré.
“Antigamente, ainda no início do mundo, entrou no rio Negro, vindo do rio maior, um grande navio, cheio de gentes no seu interior, e cada um com seu par. Apenas um homem viajava nesse mesmo navio, pelo lado de fora, pois ele não foi aceito na sua parte interna por não estar acompanhado. Ao passar pela foz do rio Negro, viajava tão próximo das suas margens que os passageiros viram que havia muitas pessoas na beira, inclusive o homem que viajava pelo lado de fora, que, não resistindo à tentação, logo se jogou para fora e nadou para aquele local. Ao alcançar o solo, ele foi agarrado por um grupo de mulheres guerreiras que tinham o costume de aceitar apenas mulheres em seu grupo. Quando tinham necessidade de ter filhos, aprisionavam machos de outras tribos e dessa relação, se nascesse filha mulher, elas criavam, e, se fosse homem, elas o matavam. Esse seria o destino do homem que nadou até a margem, para quem deram o nome de ’Mira-bóia’ (Gente-Cobra), se não fosse sua estrutura física ser um pouco diferente das que elas já conheciam. Por isso, resolveram poupar-lhe a vida depois de terem submetido ‘Mira-bóia’ a um rigoroso teste de masculinidade. As guerreiras, então, prepararam uma grande festa na primeira Lua Cheia. Enorme fogueira no centro do pátio foi feita, muitas frutas e mel silvestre foram coletados. A festa com os seus rituais rolaram durante oito dias. No seu final, o grupo tomou a seguinte decisão: ‘Mira-bóia’ ficaria morando com um grupo com a condição de gerar um filho com cada uma delas. Teria que dormir três noites com uma mulher que estivesse na época do seu período fértil. Terminada essa missão, ele seria executado, assim como todo filho que nascesse homem. ‘Mira-bóia’ então passou a conviver com o grupo por um longo período, nessas condições, até que gerasse filho com a última mulher, e essa última era a ‘Tipa’ (Rouxinol), uma jovem muito bela que estava no primeiro período de menstruação. Ela, por ser a mais nova, a mais bonita e muito querida pelo grupo, teve o privilégio de morar com Mira-bóia até que sua gestação aparecesse visualmente para o resto do grupo. Devido a isso, Tipa e Mira-bóia passaram a viver a dois e, quando ela se percebeu gestante, descobriu-se também perdidamente apaixonada pelo companheiro. O mesmo aconteceu com Mira-bóia. Como o destino do nosso herói seria a morte, ela conseguiu convencer o seu já considerado marido para uma dupla fuga. No primeiro período de Lua Nova, ele e ela fugiram, aproveitando o momento em que as guerreiras saíram para caçar e coletar mel e frutas que serviriam de consumo nos dias da festa de execução do homem, aquele que dera para o grupo muitas guerreiras de sua geração. Foram viver distante dos demais grupos. Acredita-se que esse local tenha sido nas proximidades de Muram, no baixo rio Negro. Depois de mais ou menos 30 anos, a família já estava grande. Tipa e ‘Mira-bóia’, todos os dias, pela tarde, curtiam sua felicidade juntos com os filhos e as filhas de sua geração. Com isso, eles viram que podiam ser uma família muito maior. Foi, assim, que Tupana ordenou que viesse até eles o seu mensageiro, Purnaminari, para lhes dizer o seguinte: ‘Aquilo que vocês estão pensando agrada a Tupana. Por isto, ela me enviou, para ensinar vocês a trabalhar e a garantir a comida de todos os dias’. Purnaminari, então, passou a morar com eles por um longo período, ensinando-os a fazer canoa, remo, roça, armadilha para pegar caça, peixe e treinar o novo grupo para guerra. Quando o pequeno grupo já sabia de tudo que lhe foi ensinado, ele organizou uma grande festa com Dabucury, Adaby e Curiamã, a fim de preparar o povo na sua caminhada, dizendo: ‘Agora que vocês já sabem de tudo que eu lhes ensinei para viver, voltem para a terra de Tipa e tomem todas as mulheres do seu antigo grupo, para serem mulheres de vocês. Dessa forma, vocês serão grandes, respeitados e conhecidos por Baré-mira (povo Baré)’. Purnaminari, o mensageiro de Tupana, voltou várias vezes para visitar e instruir seu povo. O grupo cresceu bastante a ponto de dominar totalmente a região do baixo e médio rio Negro. Ao chegarem a Cachoeira de Tawa (São Gabriel), permaneceram ali até que Purnaminari decidisse o novo destino do seu povo. No entanto, nessa cachoeira Kurukui e Bururi desentenderam-se e brigaram muito entre si. Por isso resolveram separar-se, ficando Kurukui de um lado e Buburi de outro lado do rio. Essa separação acabou provocando desobediência às regras de Purnaminari, que ordenou ao povo não se misturar com outros grupos, porém Kurukui e Baburi acharam que, para poder aumentar os seus grupos, eles tinham que ter muitas mulheres. Foi quando eles guerrearam com grupos menores, para tomar suas mulheres e se multiplicarem. Assim Tipa e ‘Mira-bóia’ fizeram e conseguiram serem pais de um grande povo que, até a chegada dos ‘brancos’, habitava o rio Negro, desde a foz até as cachoeiras. (Braz de Oliveira França)
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