“O modelo ocidental está sendo sacrificado nas mãos de especuladores vorazes e bancos super-poderosos. É imprescindível devolver ao trabalho a parte do produto social que lhe foi retirado pelo capital e restabelecer o vínculo saudável entre a função financeira e as funções de produção”. A opinião é do sociólogo Alain Touraine (foto) em artigo publicado no Clarín, 31-05-2010. A tradução é do Cepat.
Segundo Touraine, “a nova etapa de construção europeia tropeça apenas em um obstáculo: o neoliberalismo, cujos centros estiveram e estão nos Estados Unidos e no Reino Unido, países que tiraram da Europa toda autoridade e a transferiram para os bancos”.
Eis o artigo.
As recentes críticas de Obama à União Europeia são compartilhadas por um grande número de europeus. A participação da União Europeia nas decisões que impediram que a crise atual degenerasse em catástrofe foi quase invisível, ainda que tenham tomado iniciativa, a título individual, países como Reino Unido, Alemanha e França. Os europeus demonstraram que não queriam desempenhar um papel ativo na política mundial ao escolher como presidente e como ministra de Assuntos Exteriores da UE personalidades pouco conhecidas e, no que diz respeito à segunda, pouco preparada para assumir esse papel.
Tudo se desenrolou como se os europeus tivessem decidido deixar que os EUA continuassem se ocupando dos assuntos mundiais, enquanto eles se dedicavam à tarefa quase infinita de terminar sua integração, agora mediante a incorporação dos países balcânicos, sem que se quer examinar seriamente os sólidos argumentos apresentados por muitos favoráveis a entrada da Turquia, país que, sentindo-se indesejável na Europa, esforça-se para se voltar às sociedades islâmicas.
Se considerarmos que o frágil crescimento previsto para a Europa num futuro provavelmente prolongado irá minguar sua presença no mundo, no qual numerosos países caminham a passos largos, cabe perguntar se a Europa não entrou num declínio que será doloroso a partir da geração de nossos netos ou de nossos bisnetos. Um objetivo que é imprescindível alcançar é adotar, na economia e no social, uma política que rompa com o neoliberalismo que nos têm arrastado para a grave crise que vivemos.
No terreno internacional, o mais urgente é escolher um plano de ação comum com países do mundo islâmico, mas que não sejam árabes, porque estes estiveram colonizados durante muito tempo e seus Estados são frágeis e quase sempre autoritários. Se a Europa quer demonstrar que pode atuar no sentido oposto ao que escolheu os Estados Unidos quando atacou o Iraque, tem que acolher a Turquia e escolher uma política de reorientação do mundo muçulmano e eliminar as posições carregadas de ódio que conduziram ao terrorismo.
Muitos pensam, assim como eu , que a teocracia iraniana e sua frustrada política podem ser derrotadas por uma oposição interna que se veria reforçada se os ocidentais se mostrassem dispostos a apoiá-la. Uma coalizão europeia, turca e iraniana nesse país, uma vez que a oposição interna houvesse conseguido o seu objetivo, poderia por fim ao enfrentamento atual entre o mundo islâmico e o Ocidente.
Cabe pensar que o êxito dessa nova política permitirá o reconhecimento mútuo entre um Estado palestino e o Estado de Israel, sem o qual, o retorno da paz não é possível. A um nível ainda mais vagamente definido, é necessário que a Europa assuma a direção de um combate contra os regimes autoritários que têm condenado grande parte de sua população à violência interna, ao autoritarismo e à guerra. A Europa tem se demonstrado demasiada débil para ser considerada candidata a essa hegemonia mundial que ficou nas mãos dos Estados Unidos.
No que se refere às realidades econômicas e sociais, é preciso restabelecer prioridades que possam levar a uma defesa mundial contra os ataques dos especuladores. Em todo o mundo se experimenta a necessidade de devolver ao trabalho a parte do produto social que foi retirada pelo capital e, mais ainda, de restabelecer o vínculo entre a função financeira e as funções de produção, impedindo ao mundo financeiro lançar-se de novo à busca exclusiva do seu máximo benefício e afastando-se do seu papel de investimento e crédito.
Pode-se pensar que o mundo europeu está naturalmente orientado para tais objetivos. Não construiu um ambicioso sistema de seguridade social? Não sonha com uma reconciliação e um co-desenvolvimento com os países que colonizou? Não mostrou um duplo apego à existência de Israel e a um Estado palestino? De onde vem, pois, este fracasso em todos os aspectos da Europa, sua perda de crescimento, o desaparecimento de seu papel mundial e sua impotência para apoiar as democracias?
Nós podemos buscar as causas nas “debilidades” da Europa. Mas, em vez de ser a sua debilidade material o que acarreta a sua perda de confiança em si mesma e em seu futuro, é essa perda de confiança que leva a impotência da Europa e inclusive a sua reação ao se propor novos modelos e ao mundo.
Essa impotência apenas explica-se pela diversidade e inclusive as contradições dos interesses nacionais na Europa e a construção desta. Por acaso sua construção não se baseou, antes de mais nada, na vontade de pôr fim as guerras internas, suicidas e destrutivas de uma Europa presa aos regimes militaristas e totalitários? Por isso, a Europa consciente de ser a autora de sua própria desgraça, e querendo atuar mais sobre si mesma do que sobre o mundo, encerrou os interesses nacionais em regras econômicas, jurídicas e inclusive políticas comuns. A obra empreendida teve êxito e a queda do império soviético permitiu aos países da Europa central e oriental restabelecer os seus vínculos históricos com a Europa do oeste.
Mas agora, quase cumprida essa grande tarefa, a Europa deve se voltar para o mundo e recuperar a influência que seus próprios erros a fizeram perder. Esta nova etapa de construção européia tropeça apenas em um obstáculo: o neoliberalismo, cujos centros estiveram e estão nos Estados Unidos e no Reino Unido. Países que lhe tiraram toda autoridade e a transferiram para os bancos, cujo poder sobre as empresas aumenta.
Os Estado Unidos também estão submetidos a esse capitalismo financeiro, mas tem unidade política e uma forte confiança em si mesmos, o que faz dos europeus – e quem sabe também do Japão – as vítimas mais graves da crise atual.
Como podem os europeus, que inventaram o espírito das Luzes e a crença na razão e nos direitos humanos, aceitar passivamente aquilo que corre o risco de se transformar no fim do modelo ocidental, ou seja, da associação do progresso científico e do técnico, a destruição dos privilégios e o reconhecimento dos direitos fundamentais de cada um?
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