"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, agosto 02, 2010

São Sumé, um andarilho na Amazônia

Por Cel Hiram Reis e silva, Porto alegre, RS, 09 de julho de 2.010.

"É na tradição, nas antigas narrativas, nesses arquivos universais chamados erroneamente de lendas, é nos velhos contos que o homem poderá encontrar a sua verdadeira identidade mágica". (Mario Mercier)


São muitas as lendas e mistérios que povoam o imaginário popular amazônico, mas, talvez, nenhuma delas seja mais intrigante do que a passagem do Apóstolo São Tomé pela região. O mito Sumé é um enigma que abrange todo Continente Americano. Possui muitos nomes: Sumé, Xumé, Pai Abara entre nossos índios, Quetzalcoatl na América do Norte, Sommay entre os Caríbas; no Haiti era Zemi, na América Central era Zamima, e muitos outros, mas a figura é sempre a mesma, homem branco, longa barba, portando uma ‘borduna trovejante’, saía das águas para catequizar e mostrar aos nativos como construir casas, a se organizar, a cultivar frutas, verduras e legumes e outras técnicas.


A lenda indígena caia como uma luva para os missionários europeus. As suas atitudes e vestimentas faziam com que os nativos associassem a eles a imagem de São Tomé levando-os a crer que os religiosos estavam dando prosseguimento à obra do apóstolo.


Em São Gabriel da Cachoeira, AM, no Morro da Fortaleza, existe uma ‘pegada’, em baixo relevo que alguns atribuem a São Gabriel e outros ao Santo Apóstolo Tomé.


Pegada de Sumé no Morro da Fortaleza


- No alto dessa colina, o chão é de pura pedra. Ali estão gravadas umas figuras que o povo diz serem as partes do boi (ou anta). Também tem a marca de uma pegada na pedra, onde as pessoas deixam flores, velas e fazem preces. O povo diz que é a pegada de um anjo.


- Ora, acho que isso deve ser algo relacionado com as famosas pegadas de Sumé ou Pai Tomé! Exclamei admirado”. (MAUSO)


O Profeta Andarilho


“Vi com meus próprios olhos, quatro pisadas muito significativas com seus dedos, as quais algumas vezes cobre o Rio quando enche”. (Manuel da Nóbrega)


Sumé, por sua vez, aparece citado pelo Padre Manuel da Nóbrega em suas Cartas do Brasil (1549). É uma figura misteriosa, que surgiu ‘antes do Descobrimento - informa o mestre Câmara Cascudo - e ensinou aos índios o cultivo da terra e as regras morais’. Uma curiosidade especifica de Sumé é ele ser um branco e ter desaparecido ‘caminhando sobre as águas do mar’, em direção à Índia. As características apontam para um pajé de raça branca. A tradição tupi-guarani fala de um homem sábio e milagreiro que veio até eles há muito tempo: um provável precursor dos missionários, a quem chamou Sumé (tupi) ou Pay Zumé (guarani). É possível que seja uma corruptela de Tomé, o apóstolo incrédulo. Tomé foi designado para levar o Evangelho de Cristo aos gentios, aos selvagens”. (PEREIRA)


“Eles têm lembrança de São Tomé (...) Queriam mostrar aos portugueses pegadas de São Tomé no interior do país. Quando falam de São Tomé chamam-no de pequeno deus, mas dizem que havia outro deus maior (...)”. (anônimo europeu - 1514)


O Pastor calvinista Jean de Léry pregou para os Tupinambás nas cercanias do Rio de Janeiro na década de 1550. Um velho agradeceu a Léry as explicações que ele dera sobre as maravilhas do cristianismo, mas disse: ‘Seu sermão me fez recordar aquilo que ouvimos tantas vezes nossos avós relatar, isto é, há muito tempo - há tantas luas que já não conseguimos mais contá-las - um ‘mair’ (que significa forasteiro) vestido e barbudo como alguns de sua gente veio a esta terra. Ele esperava conduzir nossos ancestrais à obediência de seu Deus e dirigiu-se a eles na mesma língua que vocês empregam conosco hoje. No entanto, conforme ouvimos dizer de pai para filho, eles se recusaram a acreditar. Chegou, então, outro homem que, como sinal de maldição, deu-lhes de presente uma espada. Como resultado, desde aquela época sempre nos matamos uns aos outros (...) a tal ponto que (...) se agora abandonássemos esse costume e desistíssemos, todas as tribos vizinhas zombariam de nós”. (HEMMING)


“Também da vinda do Apóstolo São Tomé à América e que os ensinara o modo de cultivar as suas sementeiras, que todas se cifram na mandioca e farinha-de-pau, e poucas outras”. (DANIEL)


“(...) ‘o antigo’, cabeleira ruiva e estatura maior que a dos outros homens, anda à tona nas águas ou sobre as nuvens. Essa criatura portentosa ensinou os homens a servirem-se da natureza, ‘inventou’ o bodoque e as danças e fere com flecha invisível, o coração dos inimigos”. (RAMOS)


“(...) disseram que, de acordo com a informação que possuíam, era um homem alto com roupa branca que chegava até seus pés, e que sua veste tinha um cinturão, e trazia o cabelo curto com uma tonsura na cabeça, à maneira de um Padre, e que carregava na mão uma certa coisa que parecia lembrar o breviário que os Padres trazem nas mãos”. (BETANZOZ)


O profeta andarilho era estimado por todos, até que resolveu estabelecer normas moralizadoras, condenando a antropofagia e a poligamia, provocando a ira dos indígenas. Tentaram matá-lo por diversas vezes, mas Sumé sempre conseguia escapar ileso. Por fim, cansado de ser atacado traiçoeiramente por eles retirou-se andando sobre as águas de onde havia surgido. Prometeu que voltaria para cumprir a missão que recebera.


“Misterioso personagem que veio do mar (...) e nessa direção desapareceu depois que, molestado por alguns, se desgostou e deu por terminada a sua missão de legislador e mestre de todos eles”. (STADEN)


“(...) pregou-lhe a palavra do bem e censurou sua imoralidade. Furiosos por verem seus excessos censurados, os camponeses se apoderaram de Tonapa, flagelaram-no e amarraram-no a três pesadas pedras. Subitamente, três magníficas águias desceram dos céus; com o bico serrado, cortaram as amarras e libertaram o prisioneiro. Tornou à praia, estendeu seu manto sobre as ondas e, vagando nele, como num barco, rumou para a praia...” (HUBER)


Foram vistas por Nóbrega, Montoya e muitos outros, pegadas em rochas, que dariam o testemunho da passagem e das viagens do apóstolo São Tomé pelas Américas. Estas pedras gravadas em baixo relevo e sobrepintadas identificam pontos importantes do caminho pré-histórico. Inscrições no mesmo estilo são encontradas na Bolívia e Peru, atestando a presença do herói mítico, que teria partido do Brasil em direção aos Andes.


Relato do Padre João Daniel


“O haver tradição de ter evangelizado a Fé na América o Apóstolo São Tomé é já hoje, sem controvérsia de dúvida, porque além de outros muitos fundamentos, de que cremos vendo pelo discurso desta obra alguns, há e se conserva em alguns tapuias esta tradição; pois perguntados por alguns outros fundamentos quem lhos ensinou, respondem que um homem chamado Sumé, cuja resposta com os mais fundamentos claramente convence desta verdade. Chamaram-lhe Sumé, e não Tomé é pequena corrupção do vocábulo, que nos índios é muito desculpável pela falta de livros, e memórias, que não têm, porque criados à lei da natureza, sem aprenderem a ler, e escrever; e também os desculpa o longo tempo de tantos séculos. Por isso se não deve estranhar em gente tão rude a pequena mudança do ‘T’ para o ‘S’, especialmente ficando tão semelhante o som das duas palavras ‘Tomé’ e ‘Sumé’; quando nos mesmos europeus, e nos mais literatos homens se estão achando a cada passo estas corrupções de vocábulos, como se vê na palavra ‘Portugal’, que antes era ‘Portus Calis’, Setuval - ‘Coetus Tubalis’, Santarém - ‘Santa Iria’, e em milhares de outras palavras. Acresce mais para confirmação de que os índios na palavra ‘Sumé’ querem dizer ‘Tomé’, a pronúncia do ‘T’ ou ‘Taf’ dos hebreus, a que estes lhe dão o distinto som de ‘T’, como nós os portugueses, mas uma pronúncia muito semelhante a ‘S’, ou mais propriamente entre ‘T’ e ‘S’. De sorte que, com serem os caracteres os mesmos em todas as nações, nem em todas as línguas têm o mesmo som; seja prova, além de outras, a pronúncia do mesmo ‘T’ na linguagem inglesa, porque não o proferem os seus naturais com o som de ‘T’, mas de ‘D’; ou um meio entre ‘T’ e ‘D’, mais parecido a D; e o mesmo sucede a outros caracteres. Da mesma sorte na língua hebraica tem o ‘Taf’ uma pronúncia, como média entre ‘T’ e ‘S’, antes mais semelhante, e parecida a ‘S’; e como São Tomé, de quem o ouviram era hebreu, lhe daria a sua própria pronúncia muito semelhante a ‘S’; e por isso na tradição dos índios ficou perpetuada como Sumé.


É certo que há ainda outros muitos fundamentos desta verdade, e não é pequeno a imagem da Virgem Senhora Nossa com o Santo Menino Jesus nos braços, que se achou no império do México, por certo que naquele império não consta que entrasse alguém, como em toda a mais América primeiro que os castelhanos e portugueses; logo não há fundamento para atribuir a outrem o levar àquela tão distante região a notícia, e conhecimento da Senhora senão a algum Santo Apóstolo, porque - ‘In omnem terram exivit sonus eorum, et in fines orbis terrae verba eorum’ (Por toda a Terra espalhou-se o som de sua voz, e sua palavra pelos confins do Orbe). Que os espanhóis fossem os primeiros intrusos na América também parece ser evidente, porquanto nas histórias não se acha notícia alguma de todo aquele Novo Mundo, antes deles; razão por que alguns cuidaram ser ele a Ilha Atlântica, de que falam as histórias. E se alguém repara o como podia São Tomé correr tanto mundo em tão distantes regiões, como são Partos, Medos, Persas, Hircanos, Índios e Chinas; e depois vir a evangelizar outro Novo Mundo na América, quando só para o correr apenas chega a vida do homem, segundo a grande distância que vai do México ao Brasil. Respondo que assim é naturalmente; mas por virtude divina, não só podia correr todas as sobreditas províncias, mas todo o mundo uma, e muitas vezes. Que isto não só era factível ‘virtute ex alto’ (por virtude do alto), mas que na verdade assim sucedeu aos Santos Apóstolos, consta das histórias eclesiásticas e ainda das Divinas Escrituras; e do mesmo glorioso São Tomé o contam os índios na sua tradição, dizendo que lhes apareceu aquele varão santo; e pregou, mas vendo que eles o não queriam acreditar, nem ouvir, se apartou deles caminhando a pé enxuto pelo mar, como, além de outros, refere o grande Padre Vieira, escrevendo esta tradição dos índios do Brasil. Mas para que se veja quão grandes, e muitos são os fundamentos que ‘solidam’ (confirmam) esta verdade, continuarei em apontar outros, que ainda existem, talvez para memória dos vindouros, e para abono dos índios.


Seja o primeiro a Capela do Bom Jesus no Rio São Francisco. Entre as cousas mais notáveis que acharam os portugueses naquele Rio, foi uma Capela cavada, e lavrada em um rochedo nas margens do Rio; descobriu-se por ocasião de um ermitão, que saindo do povoado para buscar algum deserto, onde fazendo rigorosa penitência de seus pecados, cuidasse só na sua salvação eterna, deu com uma paragem, que lhe pareceu bem acomodada ao seu intento, e chegando a ela, viu um côncavo por modo de Capela, ou Templo, entrou dentro, e indo a pôr uma imagem do crucifixo no altar, achou feito nele um buraco, como se tivera sido aberto de propósito para o intento. Divulgou-se o caso, e principiando a concorrer já romeiros, e já moradores, se começou a povoar, e desde então está servindo de Igreja, e cuido que também de freguesia, porém ainda no distrito do mesmo Amazonas temos mais templos.


Deságua no mesmo Rio Xingu o Rio Jaracu da banda de Oeste, e por ele dentro cousa de 15 dias de viagem, já pelo Rio, e já por terra nas terras, e sítios dos índios Averãs, se admira outro templo, que segundo algumas circunstâncias, não é obra da natureza, mas artifício, ou natural, ou sobrenatural, porque afirmam aqueles índios que tem valvas de pedra com suas dobradiças, como os nossos portais, e que sempre estão fechadas. Perguntados pelo que tem dentro, respondem que nem sabem, nem podem saber; porque assim que alguém intenta abrir aquelas portas, sai ou vem de dentro um grande ‘resplandor’ (resplendor - claridade intensa) tão respeitoso, que obriga a fechar não só os olhos, mas também as portas; por esta razão carecemos de saber as suas miudezas, e que respeitoso resplendor seja aquele, donde sai, ou de que se origina. Nem posso deixar de estranhar aos missionários daquele Rio o descuido de não procurarem averiguar pessoalmente as circunstâncias, e miudezas daquele templo; e talvez que aquele resplandor seja misterioso, e para se manifestar, só espere algum ministro evangélico, que com a sua pregação faça idôneos, e capazes aqueles miseráveis selvagens de que Deus lhes manifeste os seus mistérios, e o misterioso daquele resplandor.


No Rio Coroa está uma grande concavidade por modo de templo, e igreja; tem um grande portal bizarreado com seus frisos, e por cima arquitetado com seus ‘arquitraves’ (parte da trave que repousa sobre os capitéis), que representam um frontispício. Fora da porta de um, e outro lado tem uma grande pedra, e ambas rematam com uma cabeça alguma cousa toscas de modo, e feitio de cabeças de pretos, e representam duas estátuas das quais só permanece uma, porque uns índios mansos, que costumavam ir àquele Rio ao provimento do cravo, degolaram a outra; mas nem eles, nem os brancos que iam por cabos tiveram a curiosidade de o medirem, segundo as suas proporções, e mais miudezas, ou ao menos de o delinearem com algum rascunho.


Mais curiosos foram os que mediram outra semelhante no Rio Tapajós, que com grande ‘cabedal’ (caudal) deságua acima do rio Coroa. Entre os mais Rios, e Ribeiras, que recolhe o Tapajós é um o Rio Cuparis, a pouca mais distância de três dias, e meio de viagem da banda de Leste no alegre sítio chamado Santa Cruz; é célebre este Rio, mais que pelas suas riquezas, de muito cravo, por uma grande lapa feita, e talhada por modo de uma grande Igreja, ou Templo, que bem mostra foi obra de arte, ou prodígio da natureza. É grande de cento e tantos palmos no comprimento; e todas as mais medidas de largura, e altura são proporcionadas segundo as regras da arte, como informou um missionário jesuíta, dos que missionavam no Rio Tapajós, que teve a curiosidade de lhe mandar tomar bem as medidas. Tem seu portal, corpo de Igreja, Capela-mor com seu arco; e de cada parte do arco uma grande pedra por modo de dois Altares colaterais, como hoje se costuma em muitas Igrejas; dentro do arco, e Capela-mor tem uma porta para um lado, para serventia da sacristia. O missionário que aí quiser fundar missão, já tem bom ‘adjutório’ (auxílio) na Igreja, e não o desmerece o lugar, que é muito alegre. Bem pode ser que nos mais Rios e Distrito do Amazonas, e seus colaterais haja algumas outras Igrejas, ou Capelas; nestes três Rios Tapajós, Coroa e Xingu se descobriram estas, por serem mais frequentados.


Mas quando não haja outros sinais, bastam estes para se inferir ser moralmente certa a pregação de São Tomé na América. Nem é pequena conjectura, e congruência a fruta das bananas, chamada na Ásia figos, e na América pacovas de São Tomé, como também a mandioca, ou farinha-de-pau, que é o pão usual de todos os americanos, nos quais se conserva alguma tradição, de que também da vinda do Apóstolo São Tomé à América e que os ensinara o uso dela, talvez porque antes só comiam frutas do mato, à maneira de feras, como ainda hoje fazem muitos”. (DANIEL)


Fontes:


BATANZOS, Juan de. Narrative of the Incas - USA - Texas, 1996. Ed. Dana Buchanan - University of Texas Press.


DANIEL, Padre João. Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas - Brasil - Rio de Janeiro, 2004. Contraponto Editora Ltda.


HEMMING, John - Ouro Vermelho - A Conquista dos Índios Brasileiros - Brasil, São Paulo, 2007 - Editora da Universidade de São Paulo.


HUBER, Siggfried - Au Royaume des Incas – França, Paris, 1958 - Monde entier.


MAUSO, Pablo Villarrubia - Mistérios do Brasil: 20.000 Quilômetros Através de uma Geografia Oculta - Brasil - São Paulo, 1997 - Editora Mercuryo.


PEREIRA, Franz Kreuther. Painel de Lendas & Mitos da Amazônia - Brasil - Belém, 2001. Editora Academia Paraense de Letras.


RAMOS, Arthur - Introdução à Antropologia Brasileira - Brasil, Rio de Janeiro, 1943/1947. Casa do Estudante do Brasil.


STADEN, Hans - Duas Viagens ao Brasil - Brasil - Belo Horizonte, 1974 - Editora Itatiaia.



Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva

Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional.
Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br

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