por Claus Peter Ortlieb
[*]
É cada vez mais claro que as medidas de austeridade prescritas para zona
euro apenas agravam ainda mais a crise que pretendem combater. Em todas as
economias nacionais caídas sob o controlo da "troika" do Fundo
Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão
Europeia as medidas de poupança levaram à queda da procura
interna. A recessão assim desencadeada ou agravada leva ao aumento do
desemprego, o que exige maiores encargos sociais, diminuindo ao mesmo tempo o
PIB e a receita fiscal. Como resultado agravam-se os indicadores da
dívida nacional, tanto do stock de dívida como do novo
endividamento, em percentagem do PIB mais reduzido. O que por sua vez é
invocado pela "troika", que pelos seus critérios outra coisa
não pode fazer senão apertar o torniquete e agravar as
exigências de poupança, o que volta diminuir a procura interna e
assim sucessivamente.
Esta espiral de poupança, recessão, mais poupança e
recessão ainda mais acentuada já é conhecida desde a
década de 1930, na Alemanha desde o caso dos decretos de
emergência de Brüning [último chanceler de República
de Weimar], mas também nos EUA, onde o governo do presidente Hoover
seguiu um percurso semelhante. O resultado então obtido pode agora ser
observado de novo nos países do sul da Europa em crise: uma taxa de
desemprego de cerca de 25 por cento, com o desemprego juvenil a rondar os 50
por cento. Mas há uma diferença: enquanto na década de
trinta os governos arruinaram as suas próprias economias, na zona euro
esse trabalho é feito pelo governo alemão, com o resultado de que
quase só a economia alemã cresce (ainda) um pouco, enquanto a
zona do euro como um todo encolhe economicamente.
O keynesianismo, como se sabe, surgiu na década de trinta, como
reacção à crise económica mundial de então e
à política económica desse tempo que agravava a crise.
Correspondentemente perplexos, os seus representantes, em particular o
prémio Nobel Paul Krugman, estão contra a austeridade preconizada
pela política alemã (ver o artigo de JustIn Monday em Konkret
8/12). A crescente "cegueira ideológica" dos políticos
alemães parece a Krugman só poder ser explicada por sua fé
"em que tempos difíceis têm de ser a punição
necessária pelos excessos anteriores", ignorando ele, no entanto,
que os tempos difíceis e os excessos aqui não dizem respeito
necessariamente às mesmas pessoas. Como alternativa à
política de austeridade são promovidos programas de
estímulo económico: "Hoje, os governos precisam de gastar
mais dinheiro e não menos, e durante o tempo necessário
até que o sector privado esteja novamente em condições de
aguentar a retoma". Fora da Europa, na verdade, está actualmente a
ser prosseguida tal política económica, como é o caso do
governo e da Reserva Federal dos EUA, assim como da China.
Mas a coisa não é tão simples como Krugman a apresenta: a
política económica keynesiana pressupõe, na verdade, que o
sector privado de algum modo será capaz de suportar a retoma, caso
contrário seria abrir o famigerado poço sem fundo. Tal
pressuposto, porém, há muito tempo que não existe:
há mais de 30 anos que a economia mundial só é mantida em
actividade através do endividamento (tanto público como privado).
Por isso é que o keynesianismo falhou já na década de
setenta, sendo que já então os programas de estímulo
económico agora de novo exigidos, foram incapazes de dar o
pontapé de saída para uma acumulação de capital
auto-sustentável, levando apenas, pelo contrário, a uma taxa de
inflação por vezes de dois dígitos.
Ele foi então substituído pelo neoliberalismo que, contra a sua
própria doutrina monetarista, desenvolveu uma política tudo menos
de massa monetária estável. Pelo contrário, a
dívida pública continuou a aumentar (por exemplo, através
dos excessos do keynesianismo armamentista do presidente Reagan dos EUA) e a
desregulamentação do sector financeiro ampliou as possibilidades
de criação de moeda creditícia. A deslocação
de grandes quantidades de dinheiro do consumo de massas e da economia real para
o sector financeiro também fez desaparecer a inflação, ou,
mais precisamente, esta deslocou-se dos mercados de consumo para os mercados de
acções e imobiliário (asset inflation:
inflação de activos), com um efeito bastante oportuno: o
índice Dow Jones, por exemplo, entre 1982 e 2000, deduzida a
inflação, subiu para valores 7 vezes superiores, sem por isso
representar valores reais correspondentemente maiores. Fenómenos
semelhantes se verificaram nos mercados imobiliários, em que os aumentos
dos preços das casas compradas a crédito foram tais que
financiaram o consumo dos seus proprietários, até a bolha
finalmente rebentar.
A conversa sobre o "capitalismo financeiramente induzido", que por um
tempo dominou os discursos como um "novo modelo de
regulação", vista à luz do dia significa apenas que a
economia real tem sido financiada e mantida em actividade através do
endividamento. Uma construção aqui ainda não vinda
à baila é o circuito do deficit que, explicado de forma
simplificada, funciona assim: A concede um empréstimo a B, que o utiliza
para comprar bens produzidos por A, voltando assim o dinheiro a A, que o pode
emprestar novamente a B. Tais operações há décadas
que impulsionam a economia mundial, por exemplo, com a China no papel de A e os
Estados Unidos no papel de B (circuito do deficit do Pacífico), ou
– após a introdução do euro – com a Alemanha no
papel de A e da parte sul da zona euro no papel de B (circuito do deficit da
Europa).
O "capitalismo financeiramente induzido" tem de começar a
falhar ou parar completamente quando os credores têm razão fundada
para suspeitar que os devedores poderão não pagar as
dívidas. Há 30 anos que isso se vem passando a nível local
e, graças à extensão das cadeias de crédito
entretanto construídas, assumiu pela primeira vez
proporções globais com a queda de 2008. Para salvar o sistema
financeiro do colapso total, os Estados, como devedores aparentemente
infalíveis, tiveram e têm de assumir os custos. Além disso,
só no ano seguinte de 2009, foram lançados programas
públicos de estímulo da economia totalizando aproximadamente 3
biliões de dólares em todo o mundo. Assim se impediu uma
depressão como a dos anos trinta (excepções, ver acima),
mas não é possível iniciar assim uma
acumulação real auto-sustentável, tal como já
não era nas décadas anteriores.
A resposta que a revolução neoliberal deu à crise dos anos
setenta consistiu no "mais gigantesco programa de estímulo
económico financiado a crédito que já existiu", como
constata o cientista social conservador Meinhard Miegel. Quem agora, como
verdadeiro conservador, exige o fim dos "excessos" ignora ou esconde
que foram esses "excessos" que mantiveram a economia mundial à
tona durante mais de trinta anos. E quem inversamente apela a mais programas
públicos de estímulo económico prefere ignorar que assim
se mitigam de facto os efeitos da crise, mas a crise em si não pode ser
vencida, pelo contrário, apenas se aumenta a dívida
pública até ao dia em que nada mais funcione.
A pretensa alternativa entre política de austeridade, por um lado, e
programas de estímulo económico, por outro, constitui na
realidade uma situação-dilema, uma escolha entre peste e
cólera, entre poupança ruinosa e falência estatal. Um olhar
mais atento mostra que não se trata de uma escolha, dado que uma
doença implica a outra, porque o Estado está dependente da
valorização do capital com sucesso, para a qual por sua vez tem
de criar as condições.
O capitalismo global não consegue livrar-se da crise de
sobreacumulação que dura desde os anos setenta, pois, com o
advento da microeletrónica e sua aplicação na
produção, uma parte cada vez menor da força de trabalho
global é suficiente para produzir para todos. Ora o "fim da
sociedade do trabalho" a isso associado, ou seja, o desaparecimento do
trabalho do processo de produção em si não seria nenhuma
desgraça, pois a maioria de nós poderia finalmente imaginar algo
melhor do que trabalhar no duro toda a vida. O problema deste desenvolvimento
só surge porque o capitalismo, como é bem sabido, se baseia na
exploração do trabalho, sendo que os lucros sérios do
ponto de vista capitalista e continuados só podem ser gerados
através da utilização do trabalho humano. E os lucros
são, afinal de contas, o sentido e a finalidade da economia capitalista.
Nenhuma política económica de qualquer tipo se aproxima desta
essência da crise. Elas teriam de privar-se da sua própria base e
abolir o capitalismo. Uma vez que isso não parece constituir uma
perspectiva realista, resta aos sujeitos do dinheiro apenas a
opção de manter os efeitos negativos da crise o mais longe
possível de si mesmos e fazê-los recair sobre os outros. O que
isso significa, numa situação em que cada vez menos pessoas ainda
podem ser utilizadas pelo capital e a população de regiões
inteiras se torna supérflua deste ponto de vista, é o que
demonstrou exemplarmente a política alemã da última
década:
A história de sucesso com que foi recuperada a "competitividade
internacional" supostamente perdida começa com o sector de baixos
salários construído no decurso da Agenda 2010 e com a
pressão que lhe está associada também sobre os
salários dos níveis superiores. Na UE, a Alemanha foi o
único país em que os salários reais caíram entre
2000 e 2008, em que o elevado aumento da produtividade já não foi
repercutido nos empregados assalariados, tendo sido, pelo contrário,
promovido o dumping salarial. Além disso, a participação
da produção industrial no PIB é significativamente maior
na Alemanha do que nos outros países e essa relação,
justamente por causa dos custos de trabalho mais baixos, continuamente se
desloca a favor da indústria alemã, porque as indústrias
de muitos outros países e particularmente dos do sul da zona do euro
não são competitivas nestas condições. Assim foi
construído o circuito do deficit europeu já acima delineado. O
desequilíbrio das balanças comerciais na zona monetária
comum constitui a problemática da zona euro que vai para lá da
crise económica mundial geral, até ao seu colapso, que continua a
ser possível.
Tudo visto, é pouco provável que a política alemã
seja alterada, pois com ela o capital nacional ganhou bastante bem no euro, e
também o "modelo alemão de sucesso" naturalmente
não deverá ser abandonado. Em vez disso, toda a UE tem agora de
seguir este modelo. Isso é loucura, mesmo pelos critérios da
lógica maluca do sistema, porque o modelo está baseado numa
assimetria, ou seja, os deficits comerciais dos países do Sul da Europa
em crise são o reverso da medalha dos excedentes da balança
comercial alemã. Isto só tem sentido se o objectivo for tornar a
zona euro "internacionalmente competitiva" na concorrência com
a Índia e a China, o que naturalmente significaria rebaixá-la ao
correspondente nível em termos de condições de vida e de
trabalho. Na Grécia mostrou-se justamente o que isso significa.
Se todos seguem aqueles que ultimamente foram bem sucedidos, o curso
subsequente da crise já está claro: uma vez que sucesso significa
concorrência pela localização do investimento e estar entre
os poucos que conseguem exportar os seus produtos, nesse local os custos
têm de baixar, especialmente os custos destinados a luxos tais como
cuidar dos doentes, dos idosos e de outros que não contribuem para o
sucesso económico. A luta pela competitividade, portanto, só pode
levar a uma espiral descendente que de resto há muito está em
marcha.
É de pouco consolo saber que também os vencedores
temporários desta concorrência dificilmente se poderão
regozijar com a vitória: afinal quem comprará ainda os produtos
às cada vez menos e menores ilhas de prosperidade capitalista?
[*]
Da Universidade de Hamburgo.
O original encontra-se em SPIRALE ABWÄRTS in www.exit-online.org , publicado em KONKRET, 11/2012. A versão em português está em http://o-beco.planetaclix.pt/claus-ortlieb12.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário