"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

terça-feira, maio 21, 2013

A crise pegou a Holanda

estadão - 06 de abril de 2013 | 2h 09

Nenhum país da zona do euro está tão endividado como a Holanda, onde os bancos emprestaram cerca de 650 bilhões


CHRISTOPH SCHULT E ANNE SEITH - DER SPIEGEL
Michael Scheepens está acostumado ao risco. Aos 41, anos, ele acompanha o mercado de energia para o banco holandês ING e é seu trabalho determinar se seu empregador deve financiar projetos como uma fazenda eólica no Chipre ou uma usina movida a gás na Turquia. Até agora, era sempre o dinheiro de outros que estava envolvido.
Há algum tempo, porém, Scheepens vem provando como é um investimento ruim no nível pessoal. Seis anos atrás, este pai de três filhos comprou uma casa geminada para sua família na cidade dormitório de Nieuw-Vennep, perto da costa do Mar do Norte. A construção custou 430 mil (cerca de R$ 1,1 milhão), mas o banco generosamente lhe ofereceu um empréstimo de 500 mil (cerca de R$ 1,3 milhão) para que sobrasse dinheiro para reformas, além das taxas cartoriais e comunitárias. Scheepens pretendia revender a casa após alguns anos, como é comum na Holanda. Mas os preços despencaram depois da falência do Lehman Brothers. Se a família fosse vender a casa hoje, teria de pagar ao emprestador 60 mil (R$ 156 mil). Sua casa está "onder water" como diz Scheepens.
"Debaixo d'água" é uma boa descrição da crise num país onde boa parte do território está abaixo do nível do mar. Ironicamente, a Holanda, que já foi uma economia-modelo, hoje enfrenta o tipo de crise imobiliária que só havia afetado os Estados Unidos e a Espanha até agora. Os bancos na Holanda também injetaram bilhões em empréstimos no mercado imobiliário privado e comercial desde os anos 1990, sem cuidar que os tomadores tivessem garantias suficientes. Os compradores de casas privados, por exemplo, podiam facilmente encontrar bancos para financiar mais de 100% do preço de um imóvel.
Em vez de pagar os empréstimos, os tomadores geralmente investiam parte do dinheiro num fundo de investimento, na esperança de um lucro. O dinheiro era para ser usado eventualmente para saldar o empréstimo, ao menos em parte. Mas se tornou costumeiro esperar o valor de uma propriedade aumentar substancialmente. Muitos poupadores holandeses esperavam que a revenda de suas casas geraria dinheiro suficiente para saldar os empréstimos, e ainda renderia um lucro considerável.
Mais de uma década atrás, o Banco Central Holandês reconheceu os perigos dessa euforia, mas suas advertências foram ignoradas. Somente no ano passado, o novo governo, sob a batuta do primeiro-ministro liberal-conservador Mark Rutte, retificou as generosas brechas fiscais, que gradualmente começaram a expirar em janeiro. Mas agora é quase tarde demais. Nenhum país da zona do euro está tão profundamente endividado como a Holanda, onde os bancos registram um total aproximado de 650 bilhões (R$ 1,7 trilhão) em empréstimos hipotecários em seus livros.
O endividamento do consumidor é de 250% da renda disponível. Em 2011, os espanhóis atingiram 125%. A Holanda ainda é um dos países mais competitivos da União Europeia, mas o estouro de sua bolha imobiliária pode derrubar toda a economia. O desemprego está em alta, o consumo em queda e o crescimento estagnou. Apesar das medidas de austeridade, este ano o governo violará o critério de déficit da UE, que proíbe novas captações de empréstimos acima de 3% do Produto Interno Bruto (PIB).
É um fardo pesado, em especial para o ministro holandês das Finanças, Jeroen Dijsselbloem, que é também o novo chefe do Eurogrupo e se vê no papel de ser tanto um vigilante da união monetária como candidato à crise. Nem mesmo 46 bilhões (R$ 120 bilhões) em medidas de austeridade bastariam para permanecer no limite de endividamento da UE. Apesar de Dijsselbloem ter anunciado mais 4,3 bilhões (R$ 11 bilhões) em cortes de serviços públicos e saúde, eles só entrarão em vigor em 2014.
"Enfiar a faca ainda mais fundo" seria "muito, mas muito irracional", disse o social-democrata Dijsselbloem ao diário alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung, numa tentativa de justificar o atraso. É o tipo de retórica ouvida em países meridionais europeus encrencados.
Os efeitos adversos de viver além dos próprios meios se tornaram visíveis desde que a crise financeira começou. Muitos dos modelos financeiros rigidamente calculados já não estão funcionando, e os cidadãos mal conseguem pagar suas dívidas. Os preços de imóveis comerciais e privados, que ficaram absurdamente altos durante algum tempo, estão afundando de maneira dramática. A economia, que já esteve em plena expansão, hoje se encontra estagnada.
"Desenvolve-se um círculo vicioso nessas situações", diz Jörg Rocholl, presidente da Escola Europeia de Administração e Tecnologia em Berlim. "Os consumidores estão endividados demais e não conseguem pagar os juros dos empréstimos. Isso causa problemas aos bancos, que já não estão fornecendo dinheiro suficiente para a economia. Isso causa uma retração econômica e aumento do desemprego, o que dificulta ainda mais o pagamento dos empréstimos."
A taxa de desemprego oficial já alcançou 7,7%, Na verdade, ela deve ser muito maior, mas isso foi mascarado até agora por um grupo demográfico chamado ZZP. Os "zelfstandigen zonder personeel" (empregados autônomos sem empregados) são remotamente relacionados com o modelo alemão do "Ich-AG" (Eu & Cia). Cerca de 800 mil trabalham atualmente na Holanda.
"Para as companhias, vale a pena deixar seus empregados permanentes partirem e depois contratar trabalho temporário", diz Rob Huisman, 47 anos, especialista em TI. "Elas economizam os custos de seguridade social." Há uma competição mortal entre os autônomos, que estão baixando seus preços para conseguir empregos ocasionais. "Se você não aceita um emprego, alguém o abocanha", diz Huisman. De mais a mais, ele já não consegue pagar as contribuições para seu fundo de aposentadoria. "Estamos vivendo em grande parte de nossas poupanças."
Os holandeses estavam há muito tempo entre os mais diligentes poupadores da Europa, e, na crise, muitos estão se agarrando ainda mais ao seu dinheiro, o que é péssimo para a economia. "Um dos principais problemas é a queda do consumo", diz Johannes Hers do Centraal PlanBurreau em Haia, o conselho de especialistas do Ministério da Economia.
Seu escritório espera queda de 0,5% no crescimento em 2013. Cerca de 755 empresas pediram concordata em fevereiro, o número mais alto desde 1981. O setor bancário também está dispensando milhares de empregados. Por causa dos muitos empréstimos hipotecários, os ativos totais dos bancos são quatro vezes e meia maiores que a produção econômica.
Em fevereiro, o governo foi obrigado a nacionalizar o SNS Bank, o quarto maior do país, porque ele tinha um grande portfólio de empréstimos podres a imóveis comerciais. Os demais bancos querem securitizar parte de seus gigantescos portfólios de empréstimos e revender os papéis por meio de um banco hipotecário especial - principalmente para os fundos de pensão do país, nos quais os holandeses depositaram grandes somas para sua aposentadoria.
Famílias jovens como os Scheepens, que compraram uma casa recentemente, esperam poder pelo menos conservar seus empregos. Apesar de a casa ter perdido valor, eles ainda conseguem pagar as prestações. Mas os cortes estão chegando perto. Um vizinho perdeu recentemente o emprego, e pessoas bem formadas já não conseguem encontrar trabalho. "Não há um fim à vista para a crise", diz Scheepens. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK 
 
Mais um que cai. Será que a troika vai se impor na Holanda como fez na Grécia?

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