Nenhum país da zona do euro está tão endividado como a Holanda, onde os bancos emprestaram cerca de 650 bilhões
CHRISTOPH SCHULT E ANNE SEITH - DER SPIEGEL
Michael Scheepens está acostumado ao risco. Aos 41, anos,
ele acompanha o mercado de energia para o banco holandês ING e é seu
trabalho determinar se seu empregador deve financiar projetos como uma
fazenda eólica no Chipre ou uma usina movida a gás na Turquia. Até
agora, era sempre o dinheiro de outros que estava envolvido.
Há algum tempo, porém, Scheepens vem provando como é um investimento
ruim no nível pessoal. Seis anos atrás, este pai de três filhos comprou
uma casa geminada para sua família na cidade dormitório de Nieuw-Vennep,
perto da costa do Mar do Norte. A construção custou 430 mil (cerca de
R$ 1,1 milhão), mas o banco generosamente lhe ofereceu um empréstimo de
500 mil (cerca de R$ 1,3 milhão) para que sobrasse dinheiro para
reformas, além das taxas cartoriais e comunitárias. Scheepens pretendia
revender a casa após alguns anos, como é comum na Holanda. Mas os preços
despencaram depois da falência do Lehman Brothers. Se a família fosse
vender a casa hoje, teria de pagar ao emprestador 60 mil (R$ 156 mil).
Sua casa está "onder water" como diz Scheepens.
"Debaixo d'água" é uma boa descrição da crise num país onde boa parte
do território está abaixo do nível do mar. Ironicamente, a Holanda, que
já foi uma economia-modelo, hoje enfrenta o tipo de crise imobiliária
que só havia afetado os Estados Unidos e a Espanha até agora. Os bancos
na Holanda também injetaram bilhões em empréstimos no mercado
imobiliário privado e comercial desde os anos 1990, sem cuidar que os
tomadores tivessem garantias suficientes. Os compradores de casas
privados, por exemplo, podiam facilmente encontrar bancos para financiar
mais de 100% do preço de um imóvel.
Em vez de pagar os empréstimos, os tomadores geralmente investiam
parte do dinheiro num fundo de investimento, na esperança de um lucro. O
dinheiro era para ser usado eventualmente para saldar o empréstimo, ao
menos em parte. Mas se tornou costumeiro esperar o valor de uma
propriedade aumentar substancialmente. Muitos poupadores holandeses
esperavam que a revenda de suas casas geraria dinheiro suficiente para
saldar os empréstimos, e ainda renderia um lucro considerável.
Mais de uma década atrás, o Banco Central Holandês reconheceu os
perigos dessa euforia, mas suas advertências foram ignoradas. Somente no
ano passado, o novo governo, sob a batuta do primeiro-ministro
liberal-conservador Mark Rutte, retificou as generosas brechas fiscais,
que gradualmente começaram a expirar em janeiro. Mas agora é quase tarde
demais. Nenhum país da zona do euro está tão profundamente endividado
como a Holanda, onde os bancos registram um total aproximado de 650
bilhões (R$ 1,7 trilhão) em empréstimos hipotecários em seus livros.
O endividamento do consumidor é de 250% da renda disponível. Em 2011,
os espanhóis atingiram 125%. A Holanda ainda é um dos países mais
competitivos da União Europeia, mas o estouro de sua bolha imobiliária
pode derrubar toda a economia. O desemprego está em alta, o consumo em
queda e o crescimento estagnou. Apesar das medidas de austeridade, este
ano o governo violará o critério de déficit da UE, que proíbe novas
captações de empréstimos acima de 3% do Produto Interno Bruto (PIB).
É um fardo pesado, em especial para o ministro holandês das Finanças,
Jeroen Dijsselbloem, que é também o novo chefe do Eurogrupo e se vê no
papel de ser tanto um vigilante da união monetária como candidato à
crise. Nem mesmo 46 bilhões (R$ 120 bilhões) em medidas de austeridade
bastariam para permanecer no limite de endividamento da UE. Apesar de
Dijsselbloem ter anunciado mais 4,3 bilhões (R$ 11 bilhões) em cortes de
serviços públicos e saúde, eles só entrarão em vigor em 2014.
"Enfiar a faca ainda mais fundo" seria "muito, mas muito irracional",
disse o social-democrata Dijsselbloem ao diário alemão Frankfurter
Allgemeine Zeitung, numa tentativa de justificar o atraso. É o tipo de
retórica ouvida em países meridionais europeus encrencados.
Os efeitos adversos de viver além dos próprios meios se tornaram
visíveis desde que a crise financeira começou. Muitos dos modelos
financeiros rigidamente calculados já não estão funcionando, e os
cidadãos mal conseguem pagar suas dívidas. Os preços de imóveis
comerciais e privados, que ficaram absurdamente altos durante algum
tempo, estão afundando de maneira dramática. A economia, que já esteve
em plena expansão, hoje se encontra estagnada.
"Desenvolve-se um círculo vicioso nessas situações", diz Jörg
Rocholl, presidente da Escola Europeia de Administração e Tecnologia em
Berlim. "Os consumidores estão endividados demais e não conseguem pagar
os juros dos empréstimos. Isso causa problemas aos bancos, que já não
estão fornecendo dinheiro suficiente para a economia. Isso causa uma
retração econômica e aumento do desemprego, o que dificulta ainda mais o
pagamento dos empréstimos."
A taxa de desemprego oficial já alcançou 7,7%, Na verdade, ela deve
ser muito maior, mas isso foi mascarado até agora por um grupo
demográfico chamado ZZP. Os "zelfstandigen zonder personeel" (empregados
autônomos sem empregados) são remotamente relacionados com o modelo
alemão do "Ich-AG" (Eu & Cia). Cerca de 800 mil trabalham atualmente
na Holanda.
"Para as companhias, vale a pena deixar seus empregados permanentes
partirem e depois contratar trabalho temporário", diz Rob Huisman, 47
anos, especialista em TI. "Elas economizam os custos de seguridade
social." Há uma competição mortal entre os autônomos, que estão baixando
seus preços para conseguir empregos ocasionais. "Se você não aceita um
emprego, alguém o abocanha", diz Huisman. De mais a mais, ele já não
consegue pagar as contribuições para seu fundo de aposentadoria.
"Estamos vivendo em grande parte de nossas poupanças."
Os holandeses estavam há muito tempo entre os mais diligentes
poupadores da Europa, e, na crise, muitos estão se agarrando ainda mais
ao seu dinheiro, o que é péssimo para a economia. "Um dos principais
problemas é a queda do consumo", diz Johannes Hers do Centraal
PlanBurreau em Haia, o conselho de especialistas do Ministério da
Economia.
Seu escritório espera queda de 0,5% no crescimento em 2013. Cerca de
755 empresas pediram concordata em fevereiro, o número mais alto desde
1981. O setor bancário também está dispensando milhares de empregados.
Por causa dos muitos empréstimos hipotecários, os ativos totais dos
bancos são quatro vezes e meia maiores que a produção econômica.
Em fevereiro, o governo foi obrigado a nacionalizar o SNS Bank, o
quarto maior do país, porque ele tinha um grande portfólio de
empréstimos podres a imóveis comerciais. Os demais bancos querem
securitizar parte de seus gigantescos portfólios de empréstimos e
revender os papéis por meio de um banco hipotecário especial -
principalmente para os fundos de pensão do país, nos quais os holandeses
depositaram grandes somas para sua aposentadoria.
Famílias jovens como os Scheepens, que compraram uma casa
recentemente, esperam poder pelo menos conservar seus empregos. Apesar
de a casa ter perdido valor, eles ainda conseguem pagar as prestações.
Mas os cortes estão chegando perto. Um vizinho perdeu recentemente o
emprego, e pessoas bem formadas já não conseguem encontrar trabalho.
"Não há um fim à vista para a crise", diz Scheepens. / TRADUÇÃO DE CELSO
PACIORNIK
Mais um que cai. Será que a troika vai se impor na Holanda como fez na Grécia?
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