viomundo - publicado em 20 de maio de 2013 às 0:44
Zelig: De tudo um pouco, ao mesmo tempo
Colunistas| 15/05/2013
Lula, ser E não ser
O ex-presidente da República criou um discurso e um comportamento
político capaz de, mesmo em situações polarizadas, contentar lados
opostos, sem se vincular claramente a nenhum deles. Diante de opções
difíceis a saída é não optar. Não se trata de hesitação. É tática
pensada e sofisticada.
Quem se espanta com a incorporação do vice-governador paulista
Guilherme Afif Domingos à administração Dilma Rousseff, achando que o
político oriundo do malufismo e aliado histórico dos PSDB seria um corpo
estranho na seara petista, deve ficar mais atento ao funcionamento do
chamado lulismo.
Não se trata apenas de uma manobra de ocasião para
compor maiorias parlamentares e estreitar o espaço da oposição nas
eleições de 2014.
Estamos diante de uma sofisticada tática política, capaz de contentar
aliados à esquerda e à direita e de se colocar como esquerda e direita
ao mesmo tempo, sem assumir claramente nenhum dos lados.
Um exemplo mais claro desse comportamento pode ser visto no vídeo disponível neste link.
Ele não é novo, dura um minuto e capta um trecho do discurso do
ex-presidente Lula nas festividades de 35 anos da Embrapa (Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária), em abril de 2008.
Nas palavras de Lula, o ex-presidente Emílio Garrastazu Médici, que
governou o Brasil entre 1969 e 1974, fez o país viver “o momento mais
crítico da história do país”. Mas também permitiu que “o Brasil
encontrasse seu rumo”.
A fala pode gerar várias controvérsias, mas, acima de tudo, mostra
como funciona o discurso lulista, seguido pela direção do PT. Parece
atacar alguém, mas não ataca. Parece elogiar, mas também não elogia.
Parece ser de esquerda, mas não se assume como tal. Às vezes soa de
direita, mas, habilmente, não deixa marcas explícitas.
No caso da Embrapa, o ex-metalúrgico parece elogiar a ditadura, mas
faz uma leve ressalva. A ressalva parece crítica, mas tampouco é.
Veja a contradição
Na intervenção, o então presidente diz literalmente o seguinte:
“(…) É
com muito orgulho que de vez em quando as pessoas falam “Lula defende …
elogia o governo Geisel, elogia o não sei das quantas. Pois eu agora –
veja a contradição, Requião – um dos presidentes que permitiu que a
gente vivesse um momento político mais crítico da historia do país, o
presidente Médici, foi o homem que assinou a Embrapa e foi o homem que
assinou Itaipu. (…) Os outros gestos que as pessoas fizeram que
permitiram que o Brasil encontrasse seu rumo. Cada um de nós será
julgado um dia. Cada um de nós será julgado por aquilo que fizemos e
pelo que deixamos de fazer”.
O que Lula quis dizer, exatamente?
Atacar sua fala como sendo uma rendição ao legado da ditadura ou
alienação sobre o período 1964-85 simplifica o problema e não vai ao
âmago da questão.
A conduta ambígua não indica dúvida, hesitação ou falta de clareza
sobre posição a tomar ou rumo a seguir. Trata-se de discurso bem pensado
e sofisticado para o tipo de projeto que o assim chamado lulismo vem
implantando no país há dez anos.
É sofisticado porque dialoga com os
vários interesses em disputa na sociedade.
Contenta progressistas e conservadores, direitistas e esquerdistas e… não toca no status quo.
Inúmeros gestos
Intervenções como essa se desdobraram em inúmeros gestos, falas e
iniciativas ao longo dos dois mandatos de Lula e na gestão de sua
sucessora, Dilma Rousseff (menos competente que seu patrono, nesse
quesito).
Ao mesmo tempo em que usou o boné do MST em manifestação dos
sem-terra, Lula praticamente paralisou a reforma agrária. Deu força à
Secretaria de Direitos Humanos da presidência da República e nomeou um
quadro da direita, como Nelson Jobim, para a pasta da Defesa, o que
freou qualquer investigação sobre os anos de chumbo nos quartéis.
Colocou um desenvolvimentista moderado na Fazenda e soltou as rédeas da
ortodoxia no Banco Central.
Apoiou a gestão de Hugo Chávez na Venezuela, para possibilitar a
entrada de empreiteiras e outras empresas brasileiras no país. Mas
tratou de esvaziar propostas de integração estatal, como as da Telesur,
Gasoduto do Sul, Banco do Sul etc.
Reclamou da imprensa, mas não tomou nenhuma iniciativa para formular
uma nova regulação para o setor. Fala como homem de esquerda, mas
abrigou figuras egressas da fina flor do conservadorismo nacional em
seus governos.
Os exemplos são infindáveis e representam a materialização de uma habilíssima política conservadora de novo tipo.
Não se trata de uma modalidade heavy metal do neoliberalismo, como a
dos governos do PSDB (1995-2003). É algo que dá concessões secundárias a
um lado e mantém a essência do modelo estruturado pelo outro.
Governo sofisticado
Com tais diretrizes, Lula construiu o governo mais sofisticado e
complexo no Brasil desde Getúlio Vargas (1930-45 e 1951-54). Obteve
adesões à esquerda e à direita, deixando intocados os interesses
hegemônicos na sociedade.
Para Lula e a maioria petista, ele e sua
sucessora construíram governos de coalizão, montados para superar
desafios históricos do país (como se os desafios não tivessem sido
colocados justamente por uma parcela da sociedade que o PT abrigou em
suas gestões).
Para uma facção mais à esquerda do petismo e para seu tradicional
aliado , o PCdoB, este seria um governo em disputa (como se todos os
governos não o fossem, em maior ou menor grau).
Através desse biombo vernacular, aceitam-se quaisquer manobras para
se manter a chamada governabilidade.
Governabilidade, esclareça-se,
não é uma maneira de se manter o comando para se atingir determinado
objetivo. Governabilidade é aqui um fim em si mesmo.
Para a direita – que disputa com condições muito melhores os rumos da
administração – trata-se de manter espaços nunca perdidos
historicamente.
Os governos petistas incorporaram, sem dizer que o fizeram, políticas
caras aos setores monopolistas e rentistas, como o aprofundamento do
processo de privatizações, de isenções tributárias e fiscais e a
política de franco favorecimento aos grandes grupos privados, via BNDES.
A argumentação de parcela da esquerda lembra que o governo distribuiu
uma parcela do excedente social entre os setores miseráveis e obteve um
crescimento econômico razoável, em comparação com a administração do
PSDB (é possível que as medíocres taxas de crescimento obtidas pelo
governo Dilma quebrem esse parâmetro).
Com tudo isso, uma conclusão é
clara: não é fácil se opor a uma gestão desse tipo.
Ganhos reais
Há ganhos reais para os trabalhadores nas políticas de Lula e Dilma.
Há um aumento da renda individual de forma direta, propiciada pelos
aumentos do salário mínimo e pela elevação do nível de emprego. E há
também, de forma indireta, uma elevação do consumo popular, definida
pela ampliação do crédito pessoal. Como parte das políticas sociais, o
governo lançou o Prouni e o Fies, destinados a financiar a educação de
jovens carentes, através de subsídios indiretos a faculdades privadas e
políticas focadas de transferência de renda, como o Bolsa Família.
São práticas eficientes, mas não desconcentram renda de maneira
significativa. Antes, destinam uma parte do excedente propiciado pelo
crescimento do PIB aos pobres, propiciado por um cenário internacional
extremamente favorável para os países exportadores de commodities.
Cenário atípico
A primeira década do século XXI constituiu-se num cenário atípico em
temos mundiais. A chegada ao mercado internacional de novos países
importadores de produtos primários – China e Índia -, um aumento
significativo da liquidez – e do crédito – internacional, combinados com
taxas de juros extremamente baixas, possibilitou a entrada de grande
volume de capital nos países do sul do mundo.
O Brasil – bem posicionado como exportador de soja, trigo, carne e etanol – soube tirar vantagens expressivas da situação.
As ações governamentais nesse período tiveram como uma de suas metas a
ampliação do mercado interno que alavancou um miniciclo de crescimento,
entre 2006 e 2010.
Versões mais toscas da linha lulista não
prosperaram.
Os exemplos são dois, Gilberto Kassab e Marina Silva. São imitações
que arranham a superfície da orientação ambígua do ex-metalúrgico, mas
não articulam o conjunto de forças sociais que ele – montado na máquina
estatal – soube tão bem fazer.
Todos se lembram do ex-prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab,
fundador do Partido Social Democrático (PSD). Suas palavras foram
sinuosas à época do lançamento de sua agremiação, em fins de 2011: “Não
somos nem de direita e nem de esquerda”. Opinião igual tem Marina Silva,
para quem sua Rede não está nem a esquerda e nem a direita, mas à
frente.
Quais os limites da política lulista?
Essa é a grande pergunta, depois de dez anos de governo. Os limites
são dados pela estrutura do Estado, que segue a serviço dos interesses
rentistas e dos grandes monopólios.
O que significa mudar a estrutura do Estado em termos econômicos?
Significa embutir custos adicionais ao seu funcionamento, transferindo
efetivamente renda de uma classe a outra.
O Estado brasileiro sofreu quatro grandes reformas ao longo do século
XX. Ou seja, por quatro vezes rompeu-se o círculo das mudanças sem
mudanças.
A primeira se deu entre 1930 e 1945. Getúlio Vargas alterou a
política fiscal, direcionando parte da arrecadação para iniciativas
industrializantes, para a adoção de políticas sociais permanentes – CLT e
previdência social – e para a reforma da própria máquina pública. Criou
um Estado com maior poder de intervenção na economia.
A segunda reforma do Estado aconteceu por obra da ditadura militar
(1964-1985).
Embora seus governos não tenham sido uniformes, ela
aumentou o poder de intervenção na economia, através da criação de
centenas de empresas estatais e órgãos públicos.
A terceira não chegou a ocorrer totalmente. Foi esboçada pela
Constituição de 1988, através da ampliação de direitos sociais
universais, especialmente nas áreas de saúde (SUS) e previdência social.
Havia na Carta uma tentativa de se criar uma versão nacional de Estado
de Bem Estar Social. No capítulo da ordem econômica, a Constituição
estabelecia diferenças entre empresa estrangeira e nacional, retiradas
no governo FHC.
A quarta e radical mudança veio nos anos de 1990, nos governos Collor
de Mello e Fernando Henrique Cardoso. Ela pode ser sintetizada como uma
tentativa de desconstrução da primeira (Vargas) e terceira (Carta de
1988) intervenção.
Essa mudança começa com a aprovação do Programa Nacional de Desestatização, em 1990, renovado em 1997.
A lei pretendia “reordenar a posição estratégica do Estado na economia,
transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas
pelo setor público”.
Ela possibilitou uma radical alteração do papel do Estado. Juntamente com 34 emendas constitucionais, aprovadas entre 1995 e 2002, o governo Cardoso ajustou o país à nova ordem mundial, pautada pelos preceitos do Consenso de Washington.
O papel de Lula
O governo Lula não apenas manteve todas essas mudanças – inclusive o
Programa Nacional de Desestatização -, como tomou iniciativa de realizar
mais 28 emendas constitucionais, que não se contrapuseram às diretrizes
da administração anterior. No caso, por exemplo, da reforma na Previdência Social, de 2005, a intenção foi de aprofundar o modelo liberal.
O mesmo pode ser dito de iniciativas na legislação ordinária,
começando pela Lei de Falências (2003), até as privatizações realizadas
pelo governo Dilma, sob o eufemismo de “concessões”, sem contar as
dezenas de setores que foram agraciados com desonerações na folha de
salários.
Assim, as melhorias sociais – que são reais – em vários aspectos da
vida da população mais pobre, obtidas nos governos petistas, foram
alcançadas graças a um cenário de crescimento econômico, sem tocar na
organização do Estado, sem ampliar serviços públicos universais – como
saúde e educação públicas -, que se constituem em ganhos indiretos, mas
universais.
Aliás, na saúde pública, o que se nota é um avanço dos planos de
medicina privada, das organizações sociais e um paulatino sucateamento
do SUS, estabelecido na Constituição de 1988.
Cabe tudo
Repetindo: a justiça social lulista se faz via mercado, via crédito e
aumento da massa salarial que dependem de cenários de crescimento
econômico.
Para esse tipo de modelo, não é necessário uma nova repartição de
renda e da riqueza social. O discurso político para essa situação não
deve incentivar o confronto e a luta de classes, pois não é um discurso
mudancista. É o discurso que exalta ganhos, ao mesmo tempo em que mostra
o valor da estabilidade.
Aliás, é a apologia da estabilidade que possibilita ganhos.
Cabe
tudo nessa formulação, desde avaliações incompreensíveis sobre o período
mais pesado da ditadura até o líder do movimento das pequenas e médias
empresas.
É uma fala marcadamente ambígua, sofisticada e, sobretudo, conservadora.
Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é professor de
relações internacionais da Universidade Federal do ABC. Doutor em
história pela Universidade de São Paulo, é autor de “A Venezuela que se
inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora
Fundação Perseu Abramo).
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