Enviado por luisnassif, qui, 11/07/2013 - 14:30
Por IV Avatar da Bacia do Parnaíba
Da Revista Fórum
A ideia da volta do sorteio na política vem ganhando fôlego e
surpreendendo muitos daqueles que num primeiro momento desconfiam desse
saber profano
Por André Rubião
As recentes manifestações deixaram claro que os cidadãos não confiam
mais no modelo político atual. Reivindica-se uma democracia radical, com
uma política de baixo para cima e novos espaços institucionais. Nesse
contexto, é interessante retomar uma afirmação de Aristóteles que
identifica o uso do sorteio na política com a democracia e a eleição com
a oligarquia. Essa frase nos parece estranha: primeiro porque a
modernidade transformou os políticos, indicados pelo voto, no paroxismo
do regime democrático; segundo porque poucas sabem o que significou o
uso do sorteio na antiguidade e o que essa ideia traz de novo no mundo
contemporâneo. Seria uma alternativa para a crise de confiança no modelo
político atual?
Na Grécia Antiga, havia três formas
de se ingressar no poder: por eleição, por indicação e por sorteio.
Isso mesmo, os cidadãos podiam ser escolhidos, de forma aleatória, para
exercer cargos transversais ao que hoje chamamos de Legislativo,
Executivo e Judiciário. Para Aristóteles, o sorteio era a forma mais
democrática, já que qualquer cidadão podia exercer um cargo no poder.
Mais tarde, os fundadores das repúblicas modernas rejeitaram esse
mecanismo. A tese mais famosa é de que eles não queriam a volta da
“verdadeira democracia” grega e sim uma nova aristocracia eletiva.
Mas eis que o sorteio está de volta. A partir da segunda metade do
século XX, alguns intelectuais, descrentes com os rumos da democracia,
criaram novos mecanismos, reintroduzindo o método aleatório. De forma
resumida, a ideia é constituir uma amostra representativa da sociedade –
ou seja, como é feito nas pesquisas de opinião, sendo a amostra mais
reduzida – e fazer com que esses cidadãos selecionados possam se reunir e
deliberar sobre determinado assunto. Esse é o principio básico dos
júris de cidadãos, das pesquisas deliberativas e das conferências de
consenso, que já foram feitas sobre temas como planejamento urbano
(Alemanha), saúde (Inglaterra), ciência (Dinamarca), identidade nacional
(na Austrália) etc.
O grande mérito dessas iniciativas, que não pretendem substituir as
instituições tradicionais, é trazer para os espaços de decisão o cidadão
comum, não contaminado pelas redes de interesse. Além disso, o método
da amostra representativa – respeitando critérios de gênero, idade,
raça, classe social – traz um fundamento de legitimidade suplementar.
Num júri de cidadãos clássico, cerca de cinquenta pessoas são sorteadas
(nada impede que se exija um grau de escolaridade mínima para questões
mais complexas) e, após analisarem diferentes propostas e interrogarem
os especialistas, esse grupo decide a respeito de determinada questão.
Apesar de esses mecanismos ainda serem experimentais, a ideia da volta
do sorteio na política vem ganhando fôlego e surpreendendo muitos
daqueles que num primeiro momento desconfiam desse saber profano. Na
crise islandesa de 2008, duas assembleias cidadãs de cerca de mil
pessoas sorteadas foram convocadas para decidir os valores sobre os
quais o país deveria ser reformulado. O documento extraído dessas
experiências serviu de base para um Conselho constituinte, eleito pela
população, responsável por redigir um novo texto constitucional, que
depois foi referendado à população.
Já o Canadá teve uma experiência com a reforma política da província
da Colúmbia Britânica em 2004. Uma Assembleia cidadã de cerca de
duzentos e cinquenta pessoas sorteadas debateu com especialistas no
assunto (acadêmicos, políticos, membros da sociedade civil organizada
etc.), durante nove fins de semana, em sessões abertas, com ampla
cobertura televisiva, e depois deliberou a respeito de uma proposta de
lei. Essa ainda precisava ser referendada, mas acabou obtendo 57% e não
60%, percentual exigido para a aprovação. De toda forma, a experiência
canadense foi muito elogiada, surpreendendo até mesmo os analistas mais
céticos que acompanharam o processo. Ela revelou o potencial do uso do
sorteio, sobretudo no caso de uma reforma política, para evitar que os
parlamentares legislem em causa própria. Pensando no caso do Brasil, não
seria uma alternativa muito mais ousada e com efetiva participação
popular do que as hipóteses de referendo ou o plebiscito que vêm sendo
discutidas? Além disso, diante de um statu quo insatisfatório, alguém pode negar que a experimentação democrática seja necessária?
Num dos livros mais completos sobre o uso do sorteio, o teórico Yves
Sintomer faz alusão ao “método de Morelli”. No século XIX, depois de
seguir carreira médica, Giovanni Morelli aventurou-se na scienza dell’arte.
Com base nos seus conhecimentos fisiológicos, ele propôs uma técnica
original, chamada de indiciária, para identificar falsificações ou
quadros de atribuição incerta. Para Morelli, ao avaliar uma obra de
arte, era preciso observar os detalhes, os fatos marginais, os traços
imperceptíveis. Não se tratava de encontrar a solução no sorriso de um
Da Vinci, mas na forma da orelha de um Botticelli. Seria o sorteio, nos
pergunta Sintomer, o lóbulo da orelha da aventura democrática?
André Rubião, Doutor em Ciência Política (Universidade Paris 8), é
membro do Centro de Estudos Sociais da América Latina (CES-AL/UFMG) e
professor da Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC). Traduziu para o
português O poder ao povo: júris de cidadãos, sorteio e democracia
participativa, de Yves Sintomer, Editora UFMG, 2010.
Ideia bem interessante essa do sorteio. Se não ficar limitada a temas específicos como citado no artigo, e sim em questões mais amplas como no caso da Islândia. É um avanço em relação ao que temos hoje e se gosta de chamar de democracia.
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