viomundo - publicado em 21 de setembro de 2013 às 11:47
Na falta de atendimento local, a ambulancha; os pacientes são avisados pelo médico: faltam luvas descartáveis
por Dario de Negreiros*, de Curralinho, especial para o Viomundo
“Calma! Por favor, tenham calma. Me escutem”, pede o médico a um grupo de cerca de 30 pessoas, no hospital municipal. Ali está um gastroenterologista contratado a peso de ouro: para cada dia de trabalho, recebe R$2 mil. No entanto, diante de dezenas de pacientes que dizem esperar há mais de três horas no local, é obrigado a ficar de braços cruzados. “Prestem atenção: eu não tenho luva. Como eu vou fazer uma endoscopia em vocês se eu não tenho luva?”.
A cena se passa no interior do hospital de Curralinho, no arquipélago do Marajó, região paraense pertencente à Amazônia Legal brasileira e que impressiona tanto pela imponência das águas quanto pela pobreza da população. É aqui que deverão passar três anos de suas vidas as médicas Maria Caridad Rodriguez Driggs, de Santiago de Cuba, e Maria Carmen Ceruto Machado, de Havana.
Nos leitos do hospital, pacientes se queixam da falta de medicamentos. “A minha filha só vai tomar esse remédio porque emprestaram pra ela”, diz uma mãe.
As vacinações foram interrompidas por falta de algodão e as roupas têm de ser lavadas à mão, já que a máquina de lavar está quebrada. Finalmente, trazem ao médico uma caixa de luvas descartáveis. “Pronto, agora eu vou poder começar a atender. Não todos vocês, alguns. Só até a luva acabar.”
A ambulância, com os vidros quebrados e um pneu furado, está nitidamente abandonada.
“Outro dia, um paciente foi levado para o hospital num carrinho de mão”, conta o vigia Eliel de Jesus Benjó.
“Se falta luva? Falta tudo! Algodão, remédios, injetáveis… tudo”, confirma Ana Paula Favacho, há dois dias nomeada diretora do hospital, cargo que concilia com o de psicóloga responsável pelo Caps (Centro de Atenção Psicossocial).
Ao chegar à cidade, imaginei um encontro com o secretário de saúde local, que havia contatado anteriormente. Logo descubro, no entanto, por qual motivo ele não atendia mais minhas chamadas: na sexta-feira passada, a população de Curralinho tomou a Câmara dos Vereadores exigindo melhorais na saúde pública.
Funcionários do hospital, alguns sem receber há meses, pediam a cabeça do então secretário Gérson Sacramento. O movimento foi organizado pelo Conselho Municipal de Saúde.
“Eu não dou conta disso, não”, diz-me o recém-exonerado secretário, confirmando sua saída. “Cansei de ver meus amigos falecendo”, diz. “A saúde é uma bola de neve”.
A vida na região é sempre nas margens dos rios; abaixo, os matapis para pescar camarão
Saneamento básico e desvios de verba
Às margens do rio Pará, crianças nadam, mulheres lavam roupa, pescadores lançam n’água matapis, armadilha de pesca que retorna carregada de camarões. A poucos metros dali, vê-se desembocarem os canos que trazem o esgoto de cada uma das pequenas casas e palafitas do bairro Ponte do Cafezal, um dos mais pobres de Curralinho.
Segundo a prefeitura, cerca de 90% dos domicílios não possuem saneamento básico. E se a coleta de lixo chega a quase 70% da população, o despejo é realizado sem qualquer tratamento, a céu aberto. Abaixo das palafitas, a maré retorna os resíduos à terra, formando pequenos lixões ao lado das águas em que todos se banham.
O lixão e as crianças: próximos
Ao lado do porto principal – distante oito horas de Belém, em viagem de barco – uma grande placa anuncia: PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) – “Implantação do Sistema de Abastecimento de Água”.
A obra previa a construção de tubulações, caixas-d’água elevadas, filtros, bombeamento e sistema de distribuição. Prevista inicialmente para ser concluída no fim deste ano, está completamente paralisada, tendo apenas parte das tubulações sido precariamente instalada. Em terreno descoberto, dois grandes filtros, de cerca de quatro metros de altura, envelhecem abandonados.
No Portal da Transparência, do Governo Federal, Curralinho consta como inadimplente. Segundo o site, os R$ 700 mil previstos foram integralmente repassados ao município, sendo que o último repasse, de R$ 300 mil, foi feito em junho do ano passado. Quase um ano antes, o MPF (Ministério Público Federal) encaminhava à Justiça sete ações por improbidade administrativa contra o então prefeito, Miguel Pedro Pureza Santa Maria (PSDB).
Com a participação do ex-prefeito Álvaro Aires da Costa (PMDB), Pureza teria desviado, de acordo com a Procuradoria, R$ 9,7 milhões de recursos destinados à saúde.
À época, moradores indignaram-se e depredaram o prédio da Câmara Municipal, logo após o término de uma sessão em que os vereadores votaram contra a abertura de processo investigatório sobre os desvios.
A cidade é área endêmica de malária, leishmaniose, hanseníase, tuberculose e doença de chagas, dentre outros males associados à ausência de saneamento básico. Só entre 2009 e 2010, foram mais de 17 mil casos, o equivalente a mais da metade da população.
“Você veio pra cá no barco da companhia Bom Jesus?”, pergunta-me o atual secretário de saúde, Deja Santo. “Vim”, respondo-lhe.
Ficara surpreso com a estrutura da embarcação, que dispunha de três andares, duas lanchonetes, camarotes com ar-condicionado e, na parte superior, uma espécie de discoteca em que um DJ/barman comandava dois freezers e um notebook, ligado a duas grandes caixas de som. “Pois todas as vezes que você deu a descarga, no banheiro do barco, você lançou os dejetos no rio Pará.”
Ana Paula, a diretora do hospital
“Trabajando en equipo”
Voltando do bairro Ponte do Cafezal, saio do meio da rua para ceder espaço a uma caminhonete da Polícia Civil. Quem a conduz é Ana Paula, a diretora do hospital. A viatura lhe havia sido cedida pela delegada para que uma senhora, vítima de um AVC (Acidente Vascular Cerebral), fosse conduzida até a “Ambulancha”. De lá, a paciente seguiria pelo rio para ser encaminhada a Breves, cidade vizinha que dispõe de um hospital de média e alta complexidade.
“Nossa ambulância é pré-histórica, não funciona há muito tempo. Eu sei que dia 15, agora, deveria ter chegado uma nova. Mas não sei o que aconteceu.”
Em outra ocasião, Ana Paula conta ter sido obrigada a pedir emprestado o carro de um vereador. “O município vem sendo depenado há muitas gestões. Só pode ser desvio de dinheiro público. Agora, estamos tentando organizar, mas a gente ainda não acertou o compasso”, diz.
Os mesmos que pediram a cabeça do ex-secretário indicaram o novo: Deja Santos, enfermeiro, especialista em epidemiologia e doutorando em biologia parasitária.
Insistentemente elogiado por funcionários, conselheiros e moradores, Deja pretende reorganizar o sistema e, assim que puder, retornar à academia.
“Depois que as coisas começarem a caminhar, eu pretendo voltar pra docência. A docência é melhor, sabe por quê? Porque infelizmente, na Amazônia, as opiniões políticas prevalecem sobre as opiniões técnicas.” Já teve um “gênio”, exemplifica, que queria lavar e reutilizar as luvas descartáveis.
A verba municipal varia conforme a arrecadação do município e, nos últimos meses, diminuiu de R$ 150 mil para R$ 70 mil.
O governo do Estado do Pará, afirma o secretário, há cerca de um ano não tem realizado repasses à cidade – algo que ocorre, segundo ele, na maioria dos municípios do Arquipélago do Marajó. “E os repasses federais também não são suficientes. Chegam R$300 mil por mês, mas só a folha do hospital dá R$ 200 mil. Então eu não tenho como fazer investimentos, comprar equipamentos novos etc”.
O hospital da cidade e, nos fundos, a casa onde ficarão as duas médicas cubanas (diante dela, Noélio, o único médico fixo da cidade)
Na parte dos fundos do terreno do hospital, em uma pequena casa com dois dormitórios, sala, cozinha e banheiro, serão hospedadas as duas Marias de Cuba.
Pelos termos do programa Mais Médicos, tanto a hospedagem como a alimentação dos profissionais recebidos é de responsabilidade do município. Para comer, cada uma das médicas, promete a prefeitura, deve receber um auxílio mensal de R$700.
Durante a entrevista, uma funcionária traz ao secretário um pequeno papel, com um texto em espanhol. “‘Trabajando en equipo e compartiendo nuestros logros’”. O secretário, à caneta, faz uma correção. “É “logros”, mesmo, aqui, tá? ‘Juntos hacemos historia. Agradecemos de corazón’. Isso, está certo. Pode mandar fazer a faixa”.
O camarão e o açaí são duas das principais fontes de renda da cidade
Energia de açaí
A atual administração, do prefeito Leo Arruda (PT), promete realizar esforços para retomar as obras de saneamento, mas diz estar engessada: alega que o mau uso de recursos públicos das gestões anteriores impede-a de receber novas verbas da União, impossibilitando novos investimentos. Um dos exemplos de intenções forçosamente proteladas diz respeito a uma das principais atividades econômicas da cidade: a extração de açaí.
Vastas áreas de plantação de açaizeiros margeiam os rios; na cidade, não se caminham dez metros sem passar por ao menos uma placa indicando a venda de suco de açaí. É, de fato, do extrativismo que vive a ampla maioria da população, que leva diariamente açaí, camarão, farinha de mandioca e peixe a barcos com destino, principalmente, a Macapá e Belém.
Em 2010, Curralinho teve o menor PIB (Produto Interno Bruto) per capita de todo o Brasil; segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), cada habitante produziu, naquele ano, o equivalente a R$ 2,2 mil.
Espalhados por toda a cidade, mais do que as placas que anunciam a venda do suco, estão os caroços de açaí. Pequenas montanhas se acumulam na frente das casas e na beira do rio; bem procurado, no meio das ruas e na sola dos sapatos algum caroço sempre pode ser encontrado.
Kilber Nunes mostra o caroço do açaí; o detrito, que polui toda a cidade, poderia ser usado para gerar energia
“Nós produzimos 4 toneladas deste caroço por dia”, conta-me Kilber Nunes, assessor de gabinete do prefeito, que estava em viagem a Brasília.
Segundo ele, a usina termoelétrica que alimenta a cidade, funcionando à base de óleo diesel, poderia retirar sua energia da queima do caroço do açaí, livrando a cidade do detrito e economizando recursos com combustível.
“Em Ananindeua [na região metropolitana de Belém], já se produz energia assim. Aqui, entretanto, nós não temos dinheiro para comprar os equipamentos necessários.”
Mesmo com os impedimentos de transferência de recursos, este ano uma verba de R$1,5 milhão foi liberada pelo Ministério da Saúde para que a prefeitura construa uma unidade móvel fluvial – cuja entrega está prevista para janeiro de 2014 –, embarcação em que as médicas cubanas devem passar grande parte de seu tempo.
Em Curralinho, apenas 30% da população vive na zona urbana. O restante se espalha ao longo das matas ribeirinhas, numa disposição que dificulta ainda mais a chegada de serviços públicos.
O posto de saúde de Piriá; abaixo, um poço artesiano vizinho a um banheiro
A caminho da vila de Piriá, a cerca de uma hora de lancha da área urbana, paramos em uma das diversas casas de palafita espalhadas ao longo do rio.
Ali, Joana d’Arc de Sousa Silva, grávida de nove meses de seu décimo filho, diz-me ter ido diversas vezes ao hospital de Curralinho durante a gravidez. Só conseguiu, entretanto, uma consulta. “Não tinha médico. Ou, às vezes ele estava muito ocupado, atendendo ainda fichas do dia anterior.”
Em Piriá, um pequeno posto de saúde da família funciona com dois técnicos de enfermagem e sem nenhum equipamento básico. “Ontem eu tive de fazer um parto com as mãos, sem luvas”, conta-me Vanderléia Barros da Costa, agente comunitária e parteira da comunidade.
Vanderléia fez o parto sem luvas; o posto presta atendimento às crianças ribeirinhas
Mais Médicos, mais recursos
“O atual prefeito”, conta o médico Noélio Pereira Raiol, 63, “veio perguntar minha opinião sobre a vinda dos cubanos. Eu disse pra ele: ‘você tem de agarrar isso com unhas e dentes’”.
Secretário de saúde, diretora do hospital, técnicas de enfermagem, moradores, pacientes e – vejam só – o médico do hospital municipal: não foi possível a este repórter encontrar em Curralinho nenhuma pessoa que não considerasse positiva a vinda das médicas estrangeiras.
“A crítica das entidades médicas foi precipitada. Porque o governo determinou a finalidade do médico, que é a atenção básica”, diz Noélio. Ana Paula, a diretora do hospital, concorda: “A gente está encaminhando pacientes de atenção básica. Nós deveríamos encaminhar apenas casos de média e alta complexidade.”
Mas não seria mais eficiente, barato e urgente investir recursos na compra de medicamentos e materiais essenciais? Não ficará o médico estrangeiro de mãos atadas, tal como aquele gastroenterologista que não tinha luvas descartáveis? Não é preciso, enfim, investir antes em estrutura do que em pessoal qualificado?
“Evidentemente que só o profissional não é suficiente”, diz Noélio. “Mas o programa vai ajudar, porque ajuda financeiramente os municípios.”
O secretário Deja concorda: “Não ia adiantar a gente colocar o médico em um posto sem estrutura. Mas, com essa economia, eu tenho mais dinheiro pra comprar medicamentos e materiais, por exemplo”.
Os municípios se queixam de que a bolsa de R$ 10 mil, paga pelo governo federal aos médicos, é descontada do valor total da verba que lhes é repassada mensalmente. Na prática, contudo, este corte orçamentário representa menos de um terço do valor atualmente gasto por Curralinho para manter Noélio, seu único médico fixo.
Para estas prefeituras, carentes de recurso, o programa do governo federal funcionaria, então, como uma estratégia astuta por meio da qual as pequenas cidades do interior passariam a contratar médicos por preços muito inferiores aos atualmente praticados. Livra-as, assim, desta difícil negociação em que o outro lado da mesa, sabendo-se tão raro quanto necessário, dita os termos do acordo.
“Os conselhos e entidades de medicina nunca quiseram debater conosco essa situação. Ao contrário, sempre a utilizaram como moeda de troca”, diz Kilber. “No seu município, falta o quê? Falta isso, falta aquilo? Então o médico, aí, vai custar “tanto” [diriam as entidades]. É quase uma extorsão”.
O governo federal afirma que as prefeituras cadastradas no Mais Médicos contarão com uma verba de R$ 15 bilhões, no total, para melhorias estruturais. Ocorre que, ao menos por aqui, manter os equipamentos públicos funcionando adequadamente, com todos os materiais de que eles necessitam, parece ser um problema muito maior do que captar verbas para construí-los ou ampliá-los. O mesmo hospital que não tem algodão ou luvas descartáveis possui aparelhos de raios-X e de ultrassom.
Em Curralinho, notam-se esforços para ampliar os mecanismos de participação da população na gestão de saúde – estratégia que é considerada um dos principais modos de se dar transparência e eficiência ao trato dos recursos públicos. O maior exemplo é a existência do Conselho Municipal de Saúde.
“O conselho se resume a uma dúzia de pessoas preocupadas com o município”, conta o conselheiro e agente comunitário de saúde Reginaldo Pontes. “Mas, aos trancos e barrancos, ele funciona. Nós derrubamos o secretário. Se a saúde daqui não está pior, é por causa do conselho.”
Reginaldo se queixa do déficit de participação da comunidade. “Estou há três anos como conselheiro e nunca vi uma reunião com participação popular.” Para além da implementação de dispositivos participativos, como o conselho, a garantia da gestão coletiva parece exigir a criação de uma cultura política democrática. Se esta é inexistente, há de se compreender as raízes históricas de tal ausência.
Havia dias que tentava, em vão, me recordar do nome de um famoso político, ex-governador biônico do Pará, cuja ascensão se deu durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985).
Ministro do trabalho de Costa e Silva e ministro da educação de Médici, assinou o Ato Institucional nº 5 – símbolo do período mais sombrio do regime golpista. Lembro que, na reunião que precedeu a edição do ato, pronunciara a célebre frase: “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”. Mas não me lembro de seu nome.
Enfim, percebendo que estou na via principal e mais movimentada de Curralinho, pergunto como ela se chama. Ao que me respondem: “Essa é a avenida Jarbas Passarinho.”
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