"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quarta-feira, agosto 27, 2014

Balé da energia: Irã, Rússia e o ‘Oleogasodutostão’


Data de publicação em Tlaxcala: 22/08/2014






Um fascinante balé nuclear/de-energia envolvendo Irã, Rússia, EUA e a União Europeia está a ponto de decidir grande parte do que acontecerá adiante, no novo grande jogo na Eurásia.

Comecemos pelo que está acontecendo com o dossiê nuclear iraniano. 

Conselheiro para assuntos de lei do Ministério de Relações Exteriores do Irã Jamshid Momtaz foi forçado a esclarecer que o acordo provisório assinado pelo Irã e os países do P5+1 em novembro de 2013 não é – ainda – acordo internacional. 

No ponto em que estamos, a ravina que separa EUA, Rússia, China, Grã-Bretanha e Alemanha de um lado, e o Irã do outro lado, permanece muito larga. Na essência a ravina que realmente conta é entre Washington e Teerã. E isso infelizmente se traduz em alguns meses a mais, para que uma vasta brigada de sabotadores – de neoconservadores norte-americanos a sortimento variado de fazedores-de-guerra israelenses e da Casa de Saud – empurre o acordo na direção do colapso total. 

Um dos mantras da sabotagem a partir de Washington é a tal “breakout capability” [aproximadamente, “capacidade para converter (qualquer coisa) em arma”][1]; é conceito esquivo, impalpável, que se resume à possibilidade de centrífugas serem ‘adaptadas’ de modo a adquirirem capacidade para produzir urânio enriquecido em quantidade suficiente para uma única bomba. Por causa dessa possibilidade, os EUA concluem que seria necessário impor uma limitação arbitrária sobre toda a capacidade de o Irã enriquecer urânio. 

O outro mantra da sabotagem força o Irã a pôr fim a todo o seu programa de enriquecimento de urânio e, como se não bastasse, a abrir mão também dos seus mísseis. É ridículo: todos os exércitos do mundo têm mísseis, que são item de todas as forças armadas convencionais. Então, Washington muda de assunto e passa a falar só de mísseis que possam transportar ogivas nucleares que o Irã não possui. Por isso, todos os mísseis teriam de ser banidos. 

Moscou e Pequim veem a tal “capacidade para converter (qualquer coisa) em arma” (“breakout capability”) pelo que a coisa é: problema inventado. Enquanto Washington só diz que quer algum acordo, Moscou e Pequim realmente querem um acordo – e afirmam que terá de ser respeitado, mediante monitoramento estrito. 

O Supremo Líder Aiatolá Khamenei já demarcou publicamente a própria linha vermelha, para que não haja mal-entendidos: o acordo nuclear final terá necessariamente de preservar o direito de enriquecer urânio, que é direito legítimo de Teerã – e em escala industrial –, como parte de uma política de energia de longo prazo. É o que os negociadores iranianos dizem desde o início. Assim sendo, impor como ‘condição inicial’ que o Irã extinga seu programa de enriquecimento de urânio não é condição inicial de coisa alguma: é condição para que nada aconteça.

‘Me sancione’, baby, outra vez, outra vez

O enriquecimento de urânio, como se podia prever, é a chave do problema. No ponto em que estão as coisas hoje, Teerã mantém mais de 19 mil centrífugas de enriquecimento instaladas. Washington quer reduzir esse número a umas poucas mil. Desnecessário acrescentar que Israel – que tem mais de 200 ogivas nucleares e os necessários mísseis de transporte para bombardear o Irã, e a coisa toda comprada e montada em negócios ilegais de compra de armas e muita ação clandestina de espionagem – insiste na cláusula de ‘enriquecimento zero’. 

Numa corrente subterrânea simultânea, operam os ‘especialistas’ norte-americanos/israelenses que vivem de prever que o Irã pode produzir uma bomba em dois, três meses, ao mesmo tempo em que acusam Teerã por criar “obstáculos” em defesa de seu programa nuclear “ilegal”. Pelo menos por hora, afinal, a Conselheira de Segurança Nacional dos EUA Susan Rice calou a boca. 

Outro ponto crítico de desacordo é o reator de água pesada de Arak, para pesquisas. Washington quer vê-lo por terra – ou convertido em usina hidrelétrica. Teerã rejeita e argumenta que o reator só produz isótopos para finalidades médicas e usos na agricultura. 

E há também a histeria das sanções. A ONU e os EUA vêm surfando uma maré de sanções desde 2006. Teerã, no início, quis que aquelas pesadas sanções, que equivalem a guerra econômica total, fossem imediatamente levantadas; depois passou a preferir uma abordagem escalonada. Obama talvez até consiga levantar algumas das sanções – mas um Congresso dos EUA comandado de Telavive por controle-remoto tentará manter outras, por toda a eternidade. 

Nesse documento do NIAC (National Iranian American Council), a ser abordado com as devidas cautelas, há uma defesa bem detalhada da alternativa de assinar um bom acordo, em comparação com a alternativa de uma trilha apocalíptica rumo à guerra. 

Supondo-se que venha a haver algum acordo, ponto crucialmente importante é a duração, a vigência do acordo. Washington quer acordo para duas décadas. Teerã, para cinco anos – e então o Irã passaria a ser tratado como qualquer outro dos 189 países signatários do Tratado de Não Proliferação Nuclear – que permite que estados que não tenham armas nucleares desenvolvam programas de energia nuclear para finalidades civis. Para conhecer uma perspectiva iraniana civilizada e bem informada, leiam “Negociações devem ser baseadas em realidades, não em ilusões: notas sobre as complexidades do caso nuclear do Irã”, Gholamali Khoshroo, 20/5/2014, Iranian Review (ing.). 

De fato, é uma tragicomédia. Washington faz-se de The Great Pretender [“O grande fingidor”, The Platters, 1956; tb, ótimo, Fred Mercury (NTs)], fingindo em tempo integral que Israel não tem armas nucleares, ao mesmo tempo em que tenta convencer todo o planeta de que Israel teria direito de armazenar quantas armas atômicas queira, enquanto o Irã não teria direito nem aos meios convencionais para a própria defesa. Isso, sem dizer que Israel, armada com bombas atômicas, já ameaçou invadir e invadiu praticamente todos os países à sua volta, e o Irã nunca invadiu nada.

Dance no balé da energia

Duras que sejam, como realmente são, as sanções não forçaram Teerã a ajoelhar-se e render-se. Khamenei disse repetidas vezes que não era otimista quanto à possibilidade de efetivo acordo nuclear. O que realmente quer, muito mais que algum acordo, é economia melhorada. Agora, com as sanções começando a ruir, depois do acordo inicial de Genebra, há luz no fim do túnel. 

Entram em cena as negociações super turbinadas entre Rússia e Irã. Incluem um negócio de energia de mais de $10 bilhões, com novas usinas térmicas e hidrelétricas e uma rede de transmissão. 

E, claro, o negócio de troca [ing. swap] pelo qual a Rússia pode comprar 500 mil barris de petróleo iraniano por dia. Detalhes serão finalizados no início de setembro. Não surpreende que Washington esteja em fúria; esse negócio eleva as exportações do Irã para mais de um milhão de barris/dia, questão que já havia sido acertada desde anteriormente, em Genebra. 

Com a Rússia agora também sob sanções dos EUA e da União Europeia, Teerã previsivelmente teve de começar a fazer a corte à Europa como fonte alternativa ideal de gás natural. Escrevo há anos sobre isso. A Europa quer desesperadamente livrar-se da dependência da Gazprom russa. O Irã tem tudo para vender gás à Europa, transportando-o especialmente através da Turquia. Mas há muitos bloqueios políticos e logísticos – a começar pela necessidade de um acordo nuclear final –, o que faz desse um cenário de longuíssimo prazo, na melhor das hipóteses. 

O balé da energia em que bailam Irã, Rússia, a União Europeia e os EUA é digno de um neo-Stravinsky geopolítico. Teerã cuida para não antagonizar Moscou – o maior fornecedor de gás natural para a Europa. Mas Teerã também sabe que, com EUA-Irã iniciando uma possível détente, a União Europeia fará absolutamente qualquer negócio, custe o que custar, para conseguir seduzir o Irã e investir no Irã. 

O vice-ministro do Petróleo para Negócios Internacionais e de Comércio do Irã, Ali Majedi, com certeza já viu claramente de onde sopra o vento. Já fala de três diferentes rotas que Teerã pode usar para suas exportações de energia para o ocidente. 

Segundo a Revista Estatística do Mundo da Energia da British Petroleum [orig. BP Statistical Review of World Energy], as reservas comprovadas de gás natural do Irã alcançam enormes-gigantescos 33,6 trilhões de metros cúbicos; as da Rússia estão em 32,9 trilhões de metros cúbicos. São duas usinas-monstro. 

O problema é que o Irã está muito atrasado em relação à Rússia, nos quesitos investimentos e produção. Há poucos anos, em Teerã, especialistas em energia estimaram a meu pedido em cerca de $200 bilhões o investimento necessário para modernizar a indústria iraniana e investir em infraestrutura doméstica de transporte e exportação. 

Assim sendo, em termos realistas, a Rússia permanecerá como fornecedor-chave de gás para a União Europeia no futuro previsível, predominando sobre o valor estratégico do gás do Irã e da Ásia Central. E isso inclui o fato de que muitas das nações da União Europeia, apesar das futricas produzidas em tempo integral em Bruxelas, apoiam a construção do gasoduto Ramo Sul [orig. South Stream] que a Rússia escolheu. 

Mas, agora, Teerã está no jogo – já atraindo um enxame de investidores estrangeiros poderosos e interessados, que chegam da Europa e da Ásia. Recente exposição internacional de produtos petroquímicos, petróleo, gás e refino, montada em Teerã, atraiu nada menos que 600 empresas estrangeiras, de 32 países.

O Supremo Líder já cobriu todas as trilhas

Majid Takht Ravanchi, vice-ministro de Relações Estrangeiras do Irã – e membro da equipe de negociadores do acordo nuclear – anda absolutamente em êxtase: “Naturalmente, Irã e Europa podem trabalhar em cooperação muito melhor no campo da economia, comércio e energia. Acreditamos que há espaço para melhorar muito.” 

Mas quem deu passo gigante à frente foi o vice-ministro do Petróleo do Irã, Ali Mejidi – ao ressuscitar o moribundo gasoduto Nabucco: “Com Nabucco, o Irã pode abastecer de gás a Europa. Somos a melhor alternativa à Rússia.” 

Nabucco, saga do “Oleogasodutostão” é questão que acompanhei já em detalhe, a história de um gasoduto que chegaria à Europa atravessando Turquia, Bulgária, Romênia, Hungria e Áustria carregando gás às vezes do Azerbaijão às vezes do Iraque, antes de naufragar espetacularmente por falta de investimentos. 

Significa que o Irã estaria abrindo uma guerra de energia contra a Rússia. De fato, não. Nabucco é um gigantesco “se”, caríssimo, projeto para muito, muito longo prazo. E o gasoduto South Stream, embora esteja momentaneamente empacado, está pronto para funcionar. 

O que aconteceu nas sombras é que Washington levou ao conhecimento de Teerã que, se desistisse do projeto de gasoduto de $10 bilhões Irã-Iraque-Síria, as sanções seriam ‘aliviadas’, e o Irã poderia ser autorizado a reviver o projeto Nabucco, obsessão europeia apoiada pelos EUA, concebida para rivalizar com o Ramo Sul. 

Falar é fácil. No pé em que estão as coisas, é maior a probabilidade de o gasoduto Irã-Iraque-Síria conseguir financiamento nos próximos dois, três anos, que o Nabucco. 

Paralelamente, por mais que as sanções de EUA e União Europeia contra a Rússia fortaleçam o Irã nas conversações nucleares, sobretudo em relação aos europeus, não significa que Teerã vá descartar a carta russa. Assim como os iranianos tiram proveito máximo da mais recente virada na trama, toda a política iraniana, de fato, já costura laços bilaterais muito mais íntimos com Moscou, para neutralizar ‘por bem’ aquelas sanções contra o Irã. 

E se Washington decidir manter as sanções para sempre, já há à mão um Plano B: cooperação ainda mais íntima com ambos, Rússia e China. Não por acaso, o presidente Rouhani do Irã já descartou qualquer alvoroço sobre dificuldades nas relações Irã-Rússia: “Fortes laços políticos nos domínios de relações bilaterais, regionais e internacionais, além de firmes laços econômicos entre os dois países, demarcam o cenário para promovermos a paz e a estabilidade.” Isso recobre tudo, desde todos usarem o sistema paralelo do Banco da China para pagar pela energia iraniana que comprem, até as trocas acertadas só entre Irã-Rússia. 

Em vários sentidos que se sobrepõem, o dossiê nuclear iraniano é agora como um salão de espelhos. Reflete um sonho nunca declarado de Washington: acesso absolutamente desimpedido, garantido às corporações norte-americanas, a um mercado virgem de 77 milhões de pessoas, inclusive uma jovem população urbana finamente educada, além de bonanza de energia para o “Big Oil” dos EUA. 

Mas naquele mesmo salão de espelhos, vê-se também uma imagem iraniana: o Irã vai realizando seu destino como a maior das superpotências geopolíticas do Sudeste Asiático, a última encruzilhada entre Oriente e Ocidente. 

Assim, em certo sentido, pode-se dizer que o Supremo Líder já cobriu todas as trilhas. Se Rouhani brilhar e acontecer um acordo nuclear final, o cenário econômico melhorará muito, especialmente mediante massivos investimentos europeus. Se Washington abortar o acordo, pressionada peloslobbies corriqueiros, Teerã sempre poderá exercitar toda a sua “flexibilidade heroica”,[2] e seguir adiante – em integração cada vez mais próxima e mais completa com ambos, Rússia e China

Notas

[1] “Breakout capacity” [de CIA Glossary (aqui traduzido): aprox. “capacidade básica para conversão”]: “Conhecimento, infraestrutura e material que comumente permanecem abaixo do nível de tornarem-se suspeitos, mas que podem ser rapidamente adaptados ou reorganizados para permitir que o mesmo processo seja usado para produzir armas. Essa capacidade exige recursos previamente organizados e frequentemente se serve de tecnologia, equipamento ou conhecimento de duplo uso” [emhttps://www.cia.gov/library/reports/general-reports-1/iraq_wmd_2004/glossary.html].

[2] 19/9/2013, Pepe Escobar, “Obama-Rouhani: luz, câmera, ação”, Asia Times Online : “Khamenei avalizou plenamente a ofensiva diplomática de Rouhani, enfatizando – muito clara e explicitamente – dois conceitos: a “flexibilidade do herói”, como o lutador que cede, num momento ou noutro, por interesse tático, mas que jamais desvia os olhos e mantém o rival sempre à vista; e a “leniência do campeão” – que é o subtítulo sutilíssimo de um livro que o próprio Khamenei traduziu do árabe, sobre como o segundo Imã xiita, Hasan ibn Ali, conseguiu evitar uma guerra no século 7º, mostrando flexibilidade na relação com o inimigo.”

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