Carta Capital através do Flipboard 06 jan 16
A concentração de riqueza no mundo é hoje semelhante à
da Inglaterra de charles Dickens ou da França de Victor Hugo
por Antonio Luiz M. C. Costa
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publicado
05/01/2016 03h23
Noor Khamis/ Reuters/ Latinstock
Há mais gente, menos posses e mais dívidas na base da pirâmide
Em 2013, com O Capital no Século XXI, Thomas Piketty alertou para o crescimento contínuo da desigualdade de riqueza desde
a década de 1970, contrária à tendência dos 60 anos anteriores e muito
mais acentuada e socialmente relevante que a desigualdade de renda, mais
fácil de pesquisar e na qual se concentrava a maioria dos estudos
anteriores.
Na Europa, a parcela detida pelo décimo superior subiu de
60% em 1970 para 64% em 2010 e a do centésimo superior de 21% para 24%.
Nos EUA, o décimo superior subiu de 64% para 72% e o centésimo superior
de 28% para 34%. Na falta de políticas ativas contra a desigualdade
(como, por exemplo, impostos progressivos sobre o capital), esses países
retornarão em meados do século XXI a um patamar de desigualdade
semelhante àquele do fim do século XIX e início do XX.
Nesse período, o 1% mais rico (“classes dominantes”, na terminologia de Piketty)
detinha metade de toda a riqueza, o décimo superior (“classes
superiores”, sendo os não incluídos no primeiro 1% referidos como
“classes abastadas”) , quase 90%, enquanto o 50% mais pobre (“classes
populares” na terminologia do economista) ficava com meros 5%. A
nostalgia chama esses tempos e de belle époque, mas poucos, mesmo nos países mais ricos, puderam usufruir de sua beleza.
O ano de 2010 foi também aquele no qual o banco Credit Suisse publicou o seu primeiro Global Wealth Report (Relatório da Riqueza Global).
Naquele ano, os 50% mais pobres dos 4,44 bilhões de adultos possuíam
pouco menos de 2% dos ativos mundiais estimados em 194,5 trilhões de
dólares, “embora a riqueza esteja crescendo rapidamente para alguns
membros deste segmento”, acrescentava esperançosamente o relatório. Os
10% superiores possuíam 83% da riqueza mundial e o centésimo superior,
43%. A riqueza média equivalia a 43,8 mil dólares líquidos. Era preciso
possuir 4 mil para deixar de pertencer aos 50% mais pobres, 72 mil para
chegar aos 10% mais ricos e 588 mil para o centésimo superior.
Cinco anos depois, o relatório de 2015,
publicado em 13 de outubro, mostra que a concentração de renda mundial
alcançou níveis tão críticos quanto o do mundo industrializado antes da
Primeira Guerra Mundial. Apesar do relativo otimismo de 2010, a metade
mais pobre dos 4,8 bilhões de adultos ficou ainda mais depauperada:
agora possui menos de 1% da riqueza planetária estimada em 250,1
trilhões de dólares, enquanto o décimo mais alto controla quase 90%
(87,7%, para ser exato) e o centésimo no topo, exatos 50%. A riqueza
média líquida subiu para 52,4 mil, um aumento nominal de 19,6% que se
reduz a 9,3% se descontados 9,5% de inflação do dólar nos Estados Unidos
em cinco anos, mas os níveis de corte passaram para 3,21 mil (27% mais
baixo em termos reais), 68,8 mil (13% mais baixo) e 759,9 mil (18% mais
alto), respectivamente.
Percebeu-se há algum tempo, em vários
países, como a limitada recuperação da economia após a crise de 2008
fluiu para os bolsos dos privilegiados, enquanto as classes média e
popular ficaram ainda mais pobres pela estagnação (ou mesmo redução) dos
salários reais, o aumento do desemprego e o maior endividamento. Na
Espanha, por exemplo, o número de milionários em dólares (pelo critério
do Capgemini e Royal Bank of Canada, que ao contrário do Credit Suisse,
não inclui residência e bens de consumo) cresceu de 127,1 mil em 2008
para 178 mil em 2014, enquanto a renda per capita caiu de 35,6 mil para 30,3 mil, o desemprego subiu de 11% para 26% e a dívida pública saltou de 39,4% para 99,3% do PIB.
Nos EUA, o 1% mais rico absorveu 95% do
crescimento após a crise financeira e o empobrecimento da camada
inferior reflete-se até na mortalidade. Em 1960, os 20% de homens com 50
anos mais pobres podiam esperar viver até os 76,6 anos, enquanto, em
2010, esse número caiu para 76,1. No caso das mulheres, a queda foi de
82,3 para 78,3. Enquanto isso, a expectativa de vida para os 20% mais
ricos atingiu 88,8 anos para homens e 91,9 para mulheres.
Na União Europeia, a renda combinada dos
dez mais ricos, 217 bilhões de euros, superou o valor total das medidas
de estímulo de 2008 a 2010, cerca de 200 bilhões. A novidade do
relatório está em oferecer, em números, um panorama sintético dos
resultados desse processo na escala do planeta.
O efeito do crescimento das dívidas na
riqueza líquida foi tão importante que resultou no paradoxo de que agora
há entre os 10% mais pobres (inclusive os de patrimônio negativo) mais
europeus e norte-americanos do que chineses. Nem todos esses vivem na
miséria. Alguns, principalmente nos EUA, são jovens cujo patrimônio foi
zerado por crédito educativo, hipoteca ou cartão de crédito, mas têm
diploma, um padrão de consumo decente e o sonho de um dia chegar ao
topo, mas a precariedade da sua situação ficará evidente se tiverem de
enfrentar uma crise ou uma doença inesperada.
Parte
do aumento recente da desigualdade está relacionada à valorização do
dólar perante a outras moedas do mundo. Quem não vive nos Estados Unidos
ou em países de câmbio fixo ficou, só por isso, mais pobre em dólares.
Em muitos países, esse efeito é neutralizado ou amenizado pela queda do custo
de vida local em moeda estadunidense. Mas quando se refere às relações
internacionais de poder e riqueza, esse empobrecimento é real, como
constata qualquer brasileiro ao viajar para o exterior, pagar por
serviços de internet ou, se está no topo da escala, ao negociar com
bancos como o Credit Suisse.
Para usar a terminologia do banco suíço, o número de
adultos na “base da pirâmide” (com menos de 10 mil dólares líquidos)
cresceu de 3,038 bilhões (68%) para 3,386 bilhões (71%), sua irrisória
fatia no bolo da riqueza mundial caiu de 4,2% para 3% e sua riqueza
média, ou melhor, pobreza média, caiu de 2,7 mil para 2,2 mil, um tombo
de 26% em termos reais.
A camada do meio (10 mil a 100 mil dólares) diminuiu de
1,045 bilhão (24%) para 1,003 bilhão (21%), sua parcela caiu de 16,5%
para 12,5% e sua riqueza média passou de 30,7 mil para 31,2 mil, ilusão
monetária sobre uma queda real de 7,2%. Em 2000, 3,6% dessa camada vivia
na China, em 2010, pouco menos de um terço e hoje, 36%.
Os não milionários da camada superior
(100 mil a 1 milhão de dólares) perderam em termos relativos. Seu
contingente passou de 334 milhões (7,5%) para 349 milhões (7,4%) e sua
participação na riqueza mundial diminuiu de 43,7% para 39,4%. Em tese,
não têm do que se queixar: em termos absolutos, sua riqueza média passou
de 254 mil para 282 mil dólares, com leve aumento real de 1,3%.
Compare-se, porém, com o que aconteceu com os milionários:
seu número aumentou de 24,2 milhões (0,5%) para 34 milhões (0,7%) e sua
riqueza passou de 2,86 milhões para 3,32 milhões, o que significa um
aumento real de 6,1%. Sua fatia, já grande, aumentou de 35,6% para 45,2%
e passou a ser a maior de todas. A parte do Leão, por qualquer
critério. O perfil geográfico desse grupo também se concentrou. Cinco
anos atrás, 41% viviam nos EUA, hoje são 46%. Os únicos outros países
com ganho perceptível de participação foram o Reino Unido, que ao passar
de 5% para 7% tomou o segundo lugar por muito tempo ocupado pelo Japão,
a China (de 3% para 4%), a Suíça (de 1% para 2%) e a Suécia (idem).
Alguns caíram muito, inclusive Japão (de 10% para 6%), França (de 9%
para 5%) e Itália (de 6% para 3%).
O relatório não faz uma estimativa independente do número de bilionários, mas, segundo a revista Forbes,
ele aumentou de 1.011 com uma riqueza total de 3,6 trilhões para 1.826
com um valor agregado de 7,05 trilhões. Em 2010, esse grupo possuía
praticamente o mesmo que a metade mais pobre da humanidade. Cinco anos
depois, açambarca mais que o triplo. Basta juntar num ônibus os 85 mais
ricos (com 13,4 bilhões ou mais, incluídos os brasileiros Jorge Paulo Lemann
e Joseph Safra), para usar a imagem do Nobel de Economia Joseph
Stiglitz, para igualar a metade de baixo da pirâmide, 3,7 bilhões de
seres humanos (2,4 bilhões das quais adultos), cujos patrimônios somados
igualam os mesmos 2,1 trilhões de dólares.
O relatório de 2015 do Credit Suisse
inclui também pela primeira vez um estudo da “classe média global” com
critérios não diretamente comparáveis ao da pirâmide acima. Esta foi
definida como possuidora de riqueza líquida de 50 mil a 500 mil dólares
nos EUA em meados de 2015 e valores equivalentes em outros países
segundo o poder aquisitivo local do dólar conforme a estimativa adotada
pela instituição – por exemplo, de 13,7 mil a 137 mil dólares na Índia,
28 mil a 280 mil no Brasil ou na China e 72,9 mil a 729 mil na Suíça, de
forma a obliterar o efeito da variação cambial. Em todo o mundo, 664
milhões se encaixam nessa definição, com um patrimônio total de 80,7
trilhões (32% do total mundial), média de 121,5 mil per capita.
Acima deles estão 96 milhões, com 150 trilhões (60% do total), 1,56
milhão por proprietário. As duas camadas juntas detêm, portanto, 92% de
todos os bens do mundo.
É só nos países ricos que esse conceito
de “classe média” se aproxima daquilo que Piketty entende pelo termo, ou
seja, aqueles cujas posses estão acima da mediana, mas abaixo dos 10%
superiores. Nos menos desiguais (Austrália, Cingapura, Bélgica, Itália e
Japão) chega a constituir 60% da população ou mais. Mas no contexto
mundial soma só 13,9% da população (com outros 2% no topo) e é na
realidade mais comparável às “classes abastadas”
de Piketty. Isso é verdade também para quase todos os países pobres e
emergentes. Qualificam-se como “classe média” 3% dos indianos, 4% dos
argentinos, 8,1% dos brasileiros, 10,7% dos chineses e 17,1% dos
mexicanos. No Brasil, em especial, essa “classe média” abrange quase
toda a camada conhecida pelos pesquisadores de mercado como A2 (3,6%) e a
metade superior da B1 (9,6%), ou seja, é a maior parte do que
chamaríamos de “elites”. Acima dela, só a classe dominante no sentido
estrito, 0,6% dos brasileiros (a camada A1 conta com 0,5%).
Apesar disso, hoje é a China o
país com o maior número de indivíduos na “classe média”: nada menos de
109 milhões, ante 92 milhões nos EUA. Onze outros países têm mais de 10
milhões: Japão, com 62 milhões; França, Itália, Alemanha, Índia, Espanha
e Reino Unido, com 20 milhões a 30 milhões; Austrália, Brasil, Canadá e
Coreia do Sul, com 10 milhões a 17 milhões.
Que ninguém se engane: essa “classe
média” é uma elite em termos planetários, vive com conforto, tem em
geral uma educação superior e é muito relevante como consumidora, talvez
também como contribuinte. Porém, do ponto de vista do poder econômico e
político e do interesse de grupos financeiros internacionais, são os
29,8 milhões de milionários, no mínimo, que contam. Aqueles com 5
milhões a 10 milhões de dólares são 2,5 milhões e com 10 milhões a 50
milhões, 1,3 milhão, mas o foco visível do interesse do Credit Suisse
está nos ultrarricos com mais de 50 milhões, que cresceram de 81 mil em
2010 para 124 mil em 2015 ou 0,0026% dos cidadãos do mundo. Destes, 59
mil vivem nos EUA (48%), 30 mil na Europa (24%), 9,6 mil (9%) na China e
Hong Kong e 1,5 mil (1%) no Brasil. A Suíça tem 3,8 mil nessa
categoria, mais que a França (3,7 mil).
Esses
multimilionários são o equivalente aproximado, quanto ao seu número
relativo, à classe senatorial da Roma antiga (600 senadores, mais os
filhos adultos, em uma população de 60 milhões) ou à alta nobreza
titulada nas grandes monarquias europeias do
século XVIII (algumas centenas em populações de dezenas de milhões). Os
meros milionários podem ser equiparados à classe curial da antiga Roma
(mercadores, conselheiros e funcionários municipais) ou à pequena
nobreza não titulada da Europa pré-revolucionária, ambas perto de 1% da
população da época.
Conforme Piketty, as grandes novidades do
século XX, atribuídas por ele aos choques políticos e econômicos das
duas guerras mundiais, foram a redução da participação da classe
dominante na riqueza, para cerca de 20% do total em vez dos 50%
tradicionais até 1913, e o surgimento de uma verdadeira classe média,
formada por algo como 40% da população e 35% ou
40% da riqueza. Sua parcela é constituída fundamentalmente de residência
e bens de consumo e poupanças, representando pouco poder econômico, mas
uma razoável segurança. Nas sociedades mais antigas, os 90% inferiores
formavam uma massa pouco diferenciada e possuíam 10% ou menos da riqueza
social.
O relatório do Credit Suisse mostra uma
sociedade global cada vez mais próxima desses padrões antigos e
medievais, e mais distantes daqueles atingidos pelos países mais
desenvolvidos nos anos do pós-Guerra. Desde o início da era neoliberal, a
riqueza acumula-se cada vez mais no topo, enquanto as maiorias
empobrecem em termos relativos e até absolutos. As crises mostraram-se,
sobretudo, oportunidades de radicalizar esse processo: para conter as
falências em massa que agravariam a crise, valores imensos são
mobilizados pelos Estados para financiar os poderosos, cuja
incompetência é premiada também com cortes de impostos, salários e
direitos trabalhistas, enquanto as massas pagam a conta com um salário
congelado ou reduzido e impostos mais altos, quando não perdem o emprego
e se endividam ainda mais.
O crescimento de alguns países emergentes, principalmente a
China, foi o único fator importante a contrariar essa tendência geral,
ao incorporar camadas maiores da população à “classe média” mundial
(apesar de, no caso chinês, isso também aumentar sua desigualdade
interna em relação às massas camponesas). Mas esse fator está em
desaceleração, ao passo que as pressões para privilegiar ainda mais os
ricos e lhes dar maior liberdade de ação estão em alta em quase toda
parte e as crises em formação só tendem a reforçá-las.
*Reportagem publicada originalmente na edição 873 de CartaCapital, com o título "No mundo de 'Os miseráveis"
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