Na novela da CPMF, tudo foi dito sobre o cenário e os personagens, mas nada sobre o que está por trás da cena. A opinião é de Fábio Konder Comparato, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da OAB, no artigo "Marinheiro sem rumo nem vento ajuda", publicado no jornal Folha de S. Paulo, 22-11-2007. Comparato pergunta: "Sobre quem recai o maior peso dos impostos, indispensáveis para fazer face ao serviço da dívida pública? Sobre os empresários? Não".
Segundo ele, "o Brasil fez nesse particular uma opção preferencial pelos pobres: 70% da massa de impostos e assimilados são indiretos, vale dizer, regressivos e transmissíveis ao consumidor final. O que significa que os despecuniados contribuem muito mais do que os ricos para financiar os gastos públicos".
Eis o artigo.
Na novela da CPMF que se arrasta há mais de ano, tudo foi dito sobre o cenário e os personagens, mas nada sobre o que está por trás da cena.
O governo federal demonstra matematicamente que, sem a prorrogação da falsa contribuição provisória, o Orçamento da União de 2008 será deficitário. Os empresários, por sua vez, deblateram contra o peso excessivo da carga tributária.
Mas ninguém -no governo, na oposição ou na imprensa- aponta a verdadeira causa desses desconchavos; menos ainda denuncia os vilões da história e identifica as vítimas.
Tomemos o exercício financeiro de 2006. O serviço da dívida pública (amortização do capital e pagamento de juros) custou ao país R$ 158 bilhões; vale dizer, quase o quádruplo do (falso) déficit da Previdência Social que o governo atual e o anterior sempre apontaram como a causa do nosso descontrole financeiro. Analogamente, entre 2002 e 2006, as despesas orçamentárias da União no campo da saúde, para o qual se destinariam integralmente os recursos arrecadados com a CPMF quando foi criada, representaram menos de um quarto do total dos gastos com a dívida pública. As referentes à educação, pouco mais de 10%.
Quem ganha e quem perde com isso?
De um lado, como ninguém ignora, a maioria absoluta dos brasileiros depende, para sobreviver, da Previdência Social, do SUS (Sistema Único de Saúde) e da escola pública.
De outro lado, os clientes exclusivos do sistema de dívida pública são os bancos e um punhado de aplicadores. Dentre estes, ocupam lugar de destaque os que possuem domicílio fiscal no exterior, pois são simultaneamente beneficiados com juros dentre os mais elevados do mundo, com a desvalorização contínua do dólar e com a isenção tributária. Realmente, o brasileiro não é xenófobo.
Será necessário indagar qual dos dois grupos, o de cima e o de baixo, arca com as inevitáveis reduções de verbas para alcançar o equilíbrio do Orçamento?
Examinemos o sistema tributário.
Sobre quem recai o maior peso dos impostos, indispensáveis para fazer face ao serviço da dívida pública? Sobre os empresários? Não. O Brasil fez nesse particular uma opção preferencial pelos pobres: 70% da massa de impostos e assimilados são indiretos, vale dizer, regressivos e transmissíveis ao consumidor final. O que significa que os despecuniados contribuem muito mais do que os ricos para financiar os gastos públicos.
Diante desse quadro, como explicar a paz social e política que reina entre nós, em contraste com a turbulência verificada na Venezuela, na Bolívia e no Equador?
Entra aí o talento sem par do nosso chefe de Estado. Lula encontrou a fórmula genial para contentar os dois extremos da sociedade brasileira: submeteu a política econômica do país ao controle do presidente (perdão, "governor") do Banco Central e criou ao mesmo tempo o Bolsa Família, com extraordinária economia de recursos e marcantes efeitos eleitorais. O programa de auxílio aos pobres representou, no ano passado, 5% dos juros pagos aos detentores de títulos da dívida pública. Cumpriu-se assim, grotescamente, a palavra evangélica: a todo aquele que tem, muito mais lhe será dado.
Vale a pena, no entanto, ainda aí, enxergar atrás da cena. Há mais de um quarto de século, a média de crescimento econômico do Brasil é inferior à da América Latina, o que constitui um fato inédito em nossa história. A classe média desagrega-se rapidamente: entre 2002 e 2006, a renda dos que ganham de três a dez salários mínimos decresceu 46%. Entre 1992 e 2004, o desemprego formal aumentou 80%. A subserviência ao capitalismo financeiro internacional deu início a um processo de desindustrialização precoce.
Dir-se-á, porém, que a recente descoberta de um extenso lençol petrolífero no litoral santista mudará em pouco tempo esse panorama sombrio. Pura ilusão! Sem a quebra de nossa oligarquia política e econômica, reproduziremos, na melhor das hipóteses, o destino dos países petrolíferos do Oriente Médio: ricos por fora e dilacerados por dentro.
Eis por que, diante do desnorteamento do Estado, entidades prestigiosas, como a OAB e a CNBB, em associação com movimentos populares, têm insistido na urgência de uma reforma política republicana e democrática, que atribua enfim ao povo uma soberania efetiva, e não apenas simbólica, e ponha o bem comum da nação brasileira sempre acima dos interesses particulares.
Reencontraremos o rumo perdido ou continuaremos a navegar à deriva?
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