As regalias dos poderes
Elite de 74 mil servidores tem diversas mordomias e ganha cinco vezes mais que a dos EUA
José Casado
'Álamo a caminho', avisa o chefe da segurança.
O comboio engole rapidamente os dois mil metros de asfalto que separam a residência do escritório. Entre a escolta e a ambulância, sob o sol matinal, reluzem os apliques cromados de um portentoso sedã escuro. Blindado potente, é capaz de passar da imobilidade aos 100km/hora em apenas oito segundos. Como sempre, estaciona na garagem. Quando o motorista destrava as maçanetas internas, de prata acetinada, o passageiro desliza do banco revestido de couro em direção ao elevador privativo. Lá fora, uma nova bandeira começa a escalar o mastro frontal do Palácio do Planalto. Para os agentes, missão cumprida: "Álamo", como chamam o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chegou à "base".
Presidentes ditam a moda em Brasília. Três anos atrás, Lula começou a desfilar a bordo de um Chevrolet Ômega e, desde então, o carro fabricado na Austrália virou símbolo de poder na capital da República. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, gastou R$5,4 milhões na compra de 37 deles - 33 para seus juízes e mais quatro para a diretoria. O Senado, a Câmara e alguns ministérios adotaram o estilo.
Cada sedã importado custa US$81 mil (R$146 mil). O modelo só consome gasolina - e muita, à média de um litro para cada seis quilômetros.
Sua inclusão na frota pública é paradoxal, sobretudo num governo que faz propaganda dos biocombustíveis como alternativa para um mundo ameaçado pelo efeito estufa. Mas esse é apenas um detalhe nas despesas da administração federal com energia: a conta de luz das repartições federais já soma R$3,9 milhões por dia útil. Gasta-se R$954 milhões por ano para iluminar os prédios públicos - 200 vezes mais que o investimento governamental realizado no programa Luz para Todos. Esse valor é, também, superior à soma dos dispêndios em proteção ambiental, no período janeiro-outubro.
Vantagens compõem 37% dos salários
O dinheiro dos tributos paga tudo, dos desperdícios aos privilégios de um grupo de 74 mil pessoas que detém os altos cargos do governo, do Legislativo e do Judiciário.
É a elite civil do contingente de 2,2 milhões de servidores públicos (17,5% do total de assalariados), entre os quais 1,1 milhão ativos.
Essa minoria é a principal beneficiária da folha de pagamentos da União, que abriga nada menos que cinco dezenas de itens de remuneração monetária do funcionalismo - entre salários diretos, indiretos e gratificações eventuais, como um certo "adicional de atividades penosas".
Bem remunerada, tem ganho mensal 24,5 vezes acima da renda média dos brasileiros, informa um estudo realizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo Centro Latino-Americano de Administração para o Desenvolvimento (Clad).
Destaca-se entre as mais bem pagas do mundo: ganha proporcionalmente cinco vezes mais que a chefia burocrática dos Estados Unidos e da Espanha e três vezes mais que a da Argentina - se tomada como referência a renda média (PIB per capita) desses países, segundo a pesquisa.
As vantagens monetárias extra-salariais compõem 37% dos ganhos totais de ministros, juízes, parlamentares e assessores diretos - bem mais do que se registra em nove países latino-americanos analisados pelos pesquisadores do BID/Clad.
As despesas com gratificações por cargos e funções federais ultrapassaram R$13 bilhões no ano passado, conforme dados do Ministério da Fazenda. Oito vezes mais que os investimentos em saneamento previstos pela União para este ano.
Com capacidade de se autogovernar e arbitrar o destino dos recursos no Orçamento da União, a cúpula do serviço público brasileiro se distingue, também, pelo contínuo aumento das regalias.
Amparadas por leis ou costumes, as mordomias estão disseminadas e já alcançam o terceiro nível hierárquico do governo, do Legislativo e do Judiciário.
A lista de despesas que os três Poderes diariamente registram no sistema de administração financeira do Tesouro Nacional é pródiga em exemplos.
Inclui, entre outras coisas, a moradia gratuita (para os dirigentes da burocracia em Brasília), em apartamentos reformados e decorados, com enxoval completo, louças e aparelhos eletrodomésticos, periodicamente renovados. É possível a opção por receber o auxílio-moradia (R$3 mil mensais, em média, quantia suficiente para a compra parcelada de um apartamento em hotel-residência na capital federal).
Em Brasília, agora tem até massagem
E mais: carro e motorista à disposição, do próprio órgão público ou alugado - em geral, modelos de luxo e sem identificação funcional. Gabinetes de trabalho equipados com frigobar, microondas e aparelhos de televisão de plasma ou LCD - com permanente serviço de copeiragem. Telefone celular pós-pago, sem limite para chamadas nacionais ou internacionais. Uma novidade são os contratos de serviços de massagens, prestados nos prédios públicos.
Nem sempre foi assim. Até o fim dos anos 50, privilégios do gênero eram vetados. A legislação admitia alguns gastos peculiares à rotina da Presidência da República, exceto despesas pessoais. O presidente Café Filho, por exemplo, morava em casa própria na Zona Sul carioca.
Na transferência da capital do Rio para Brasília, nos anos 60, foram criados "incentivos" à mudança dos altos dirigentes do setor público. Em 1975, o presidente Ernesto Geisel tentou por decreto restringir aos ministros o acesso aos imóveis funcionais disponíveis no Distrito Federal. Até impôs limites aos gastos nessas residências com o dinheiro dos contribuintes.
Meses depois, foi surpreendido pela publicação de uma série de reportagens no jornal "O Estado de S.Paulo" com relatos sobre a dimensão das regalias: Arnaldo Prieto, ministro do Trabalho, tinha 28 servidores à disposição. Desde o fim dos anos 90, a Câmara dos Deputados mantém 21 apenas para cuidar da residência oficial do seu presidente. Nos longínquos anos 70 houve escândalo quando o tribunal de contas descobriu que o governador Elmo Serejo, do Distrito Federal, comprou 47 vidros de laquê. Virou rotina: no mês passado o Comando da Aeronáutica debitou na conta do erário a aquisição de 15 porta-perfumes "em aço inox com gravação a laser", em sacos para presente, a R$2.180 cada, o equivalente a 5,7 salários mínimos.
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