'Nada escapa hoje ao imperialismo teórico e ideológico do individualismo'. Artigo de Vidal-Beneyto
Esqueçamos o social e o coletivo, hoje a sociedade se orienta pelos indivíduos-sujeitos, para quem as obrigações se resumem a si mesmos. A reflexão sobre o crescente individualismo nas sociedades é do filósofo e sociólogo José Vidal-Beneyto. Em artigo para o El País, 24-11-2007, intitulado ‘A esquerda em debandada 3’, Vidal-Beneyto dá continuidade a outros artigos – sobre a derrocada da esquerda e de suas idéias-força na Europa. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Segundo as estimativas mais confiáveis – sondagens e entrevistas – entre 70% e 75% dos franceses criticam a greve de transportes que tornou a Paris numa Armsterdam pelo uso da bicicleta. Os franceses desejam que a greve termine imediatamente. Esta reação abrupta e de falta de solidariedade com a greve, uma das últimas trincheiras que restam ao mundo do trabalho frente à arbitrariedade e aos abusos dos poderes políticos e empresariais, produziu na minoria resistente uma indignada reação.
Mario B., filho de dirigente da FAI catalã durante a guerra civil, exilado na França, hoje especialista em ciência da cognição e velho amigo, se pergunta e me pergunta como foi possível se produzir tão lamentável claudicação. Contesto-o com a análise em que vejo a capitulação institucional francesa, o seu envelhecimento pessoal por muitos dos seus atores e a malversação simbólica do corpus ideológico do que chamamos pensamento único, e que social-liberalismo converteu-se na única via praticável da política convencional.
Corpus cujo eixo central é a consagração do indivíduo-sujeito, que exige o desaparecimento de todos os atores políticos coletivos, como o Estado, os sindicatos, etc, em benefício apenas da entidade comum concebível - a de uma sociedade de indivíduos livres e auto-suficientes sem mais obrigações do que consigo mesmo.
Crawford B. Macpherson elaborou na Teoria política do individualismo possessivo (1962), as bases doutrinas dessa opção que se converte na conceitualização mais consistente da democracia neoliberal. Para o filósofo canadense, os direitos e as obrigações políticas apenas podem fundar-se se derivam dos interesses dos indivíduos que formam parte de uma entidade que chamamos sociedade, não porque tenham uma natureza social, mas sim para proteger a sua condição de proprietários, pois a sociedade humana consiste e se esgota em suas relações de mercado.
Robert Castel, sem suas brilhantes conversações com Claudine Haroche, Propriété privée, propriété sociale, propriété de soi, Fayard 2001, retomando criticamente a problemática e o itinerário filosófico de Macpherson – sobretudo Hobes e de Locke do Segundo Tratado do Governo civil – busca romper o cerco desse individualismo negativo e recriar, baseando-se na categoria da responsabilidade, uma sociabilidade que enlace o indivíduo-ego com o indivíduo-outro formando um continuum, base do vinculo social. Esta convivência de alteridade e mesmidade do processo de individuação é o que faz possível, insiste Castel, o passar da responsabilidade individual à humana em virtude do qual, os seres humanos, enquanto humanos, devem dispor, desde o seu nascimento, de uma renda de subsistência básica e de um reconhecimento universal do direito de voto independente de sua condição nacional.
Ademais, o primado do individualismo, que para muitos autores é indissociável da modernidade, tem na desigualdade uma conseqüência que nas últimas décadas ampliou-se e aprofundou. Patrick Savidan em Repensar a igualdade de oportunidades, Grasset, 2007, entra de cheio no tema partindo da concepção anti-meritocrática da justiça social de John Rawls que é talvez a rejeição mais radical do individualismo possessivo. Para ele, o poder legitimador do mérito é frágil porque os indivíduos não são criadores de suas capacidade e talentos, mas apenas os seus depositários e usuários que exercem em função de determinações/valorações sociais que são as ultimas responsáveis do que chamamos mérito.
A proposta de Savidan, levando até as últimas conseqüências finais a proposição de Rawls, é de desubstancializar o mérito e desindividualizar/desubjetivar a seus detentores, passando de uma concepção ético-pessoal a uma proposição sócio-institucional - é o pagamento da dívida que cada ser humano contrai com a sua comunidade por fazê-lo nascer em seu seio, dívida que deve pagar e cuja quantia e qualidade devem corresponder às capacidades que recebeu.
Mas em um sentido ou noutro, nada escapa hoje ao imperialismo teórico e ideológico do individualismo. Ulrich Beck, um notório autor, em sua obra maior, A sociedade do risco (Suhrkamp 1986), dedica toda a segunda parte a apresentar a natureza da individualização e da desigualdade social sobre a base da lógica dos riscos a que estamos submetidos, não como membros de uma classe ou de um grupo, mas sim como indivíduos de uma sociedade industrial. Esqueçamos, pois o social e o coletivo. Apenas cabem indivíduos-sujeitos. O restante é irrelevante.
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