Atentos! Há uma nova palavra em órbita. Há somente seis anos, os mesmos da emergência do terrorismo. Foi lançada quase por acaso em março de 2002, num encontro da Unesco em Paris. Hoje voa bem alto e indica uma rota luminosa num caos de desastres, hiper-aquecimentos climáticos, emergentes imundícies, epidemias. Seu nome é “decrescimento”, e parece que tenha um grande efeito pedagógico e libertador. Movimenta, torna-se passe-partout, propicia o contato entre núcleos de resistência, constrói desafios. Seu objetivo é frear, oferecer alternativas criveis à tirania do desperdício. Seu slogan: viver com menos é fácil e até divertido. A reoortagem é de Paulo Rumiz e publicada pelo jornal La Repubblica, 24-02-2008.
De nome Serge, cognome Latouche, de nacionalidade francesa. O profeta do novo verbo global vive entre Paris e uma velha casa de pedra restaurada com suas mãos nos Pireneus Orientais, sob o Pico Canigou, o último “estacionamento de carros” antes do grande ancoradouro dos montes no Mediterrâneo. Desloca-se rigorosamente de trem e gasta muito do seu tempo em giro pela Europa, organizando as patrulhas dispersas do consumo virtuoso. Fascina, conta, escreve panfletos, fustiga a economia globalizada e a infeliz “teologia do Pib”. Insiste, sobretudo, no lado “convivial” de uma austeridade inteligente.
Já no trem, andando com ele, o dique se rompe. Tem como apoio um livro seu sobre a mesinha – intitulado ‘Como resistir ao desenvolvimento’ – e os vizinhos do vagão se aproximam, como que atraídos por uma calamidade. Passageiros de trinta anos, titulares de trabalho precário. Pedem para dar uma olhada, lêem avidamente. Dentro está escrito que o colapso é questão de trinta anos. Dez mil dias, coisa de conto ao inverso, de traz para diante. O petróleo se exaure, os oceanos se erguem, centenas de milhões de homens deverão deslocar-se, o clima enlouquece, o ar se envenena, a esterilidade masculina aumenta ano após ano. Tudo converge para a mesma “deadline”, 2030, ou talvez antes.
Os pendulares insistem, perguntam quem seja Latouche, querem saber dele, dão início a uma discussão. São muito poucas linhas daquele livro a desvelar o pavor submerso mais difuso dos italianos. “Mas que criminalidade”, dizem, “falam-nos de ciganos e romenos para não nos fazer refletir seriamente sobre estas coisas”. Engoliram a ficha, mas não se contentam com um megafone de protesto. Procuram um guia, alguém capaz de assegurá-los e retirá-los do ângulo cego. Pedem principalmente palavras de bom senso. É exatamente o que encontro, quando descubro o meu homem. Aquele que tenho na minha frente, junto a um prato de bacalhau e uma garrafa de Montepulciano de Abruzzo, é o exato oposto do eco-fanático pregoeiro de multidões. Latouche é um tipo simples, tranqüilo, enxuto, esbelto e robusto como um arpoador. Seu rosto é marcado por rugas, tem cabelos cinza-ferro e o olhar de uma aguiazinha. Chegou manquejando com um largo sorriso, apoiado no longo bastão que é seu emblema de viandante. “O que quer, caro amigo, tenho os joelhos calcificados e as plantas dos pés consumidas pelo demasiado caminhar. Mas, é precisamente assim..., não é nada justo deixar ao bom Deus um físico em perfeitas condições, não acha?
- Você pensa que ele tenha fórmulas a revelar: ao invés disso, ele explica que basta concentrar-se na qualidade de vida. Devemos libertar o imaginário, tornado escravo de um fetiche portador de desventuras: a palavra desenvolvimento. Basta dizer aos políticos que, renunciando à mística do crescimento, não perderão eleitores, pelo contrário. Fazer entender às pessoas que, escolhendo o decrescimento, não voltarão à idade da pedra, mas somente a quarenta anos atrás.
“Os poderes fortes nos chantageiam, mantêm como refém a nossa imaginação. Dizem-nos que com o decrescimento cairá sobre nós a tristeza de uma infinita quaresma. Nada disso é verdade. Inverter a corrida ao consumo é a coisa mais alegre que existe”. Este é, de resto, o tema de seu próximo livro que sairá na Itália na metade de março pela Boringhieri: intitula-se: Breve tratado sobre o sereno decrescimento. Latouche também contesta o terrorismo mental dos ecologistas anunciadores de penitência. Sorri sob a barba: “Ah, o masoquismo protestante, o senso do dever, os dez mandamentos... Mas não! A única regra é a alegria de viver”.
Há quarenta anos atrás se dizia: o desastre começa agora. É ali que se desencadeia a corrida ao desperdício. Em quarenta anos nosso impacto negativo sobre a biosfera triplicou e não para de crescer. Parece impossível, não é? No fundo, não comenos o triplo, não fazemos o triplo de viagens, não usamos o triplo de roupas... Como se explicam estes números apocalípticos?
É simples: em nossa vida fez irrupção o Usa e Joga fora, a obsolescência programada dos bens. Uma loucura. Os trinta por cento da carne dos supermercados vão diretamente ao lixo... Um automóvel é velho após três anos, um computador pior ainda... E se não o substituis, és “out”... Vivemos de águas minerais que vêm de longíssimo, em meio a desperdícios energéticos dementes, com a Andaluzia que come tomates holandeses e a Holanda que come tomates andaluzes...
E o que dizer dos bifes, que há quarenta anos tinham o sabor dos pastos. Hoje os animais são engordados com ração de soja, cultivada a milhares de quilômetros de distância, em campos conquistados pelos desmatamentos da Amazônia. “Uma vez eu era um devorador de carne. Hoje a como com conta-gotas. Mas não para negar-me algo. Faço-o para divertir-me descobrindo as novas fronteiras do alimento. Meu amigo Carlo Petrini diz que um gastrônomo não ecologista é um imbecil, e um ecologista não gastrônomo é uma pessoa triste. Pense nisso: é mais que verdade”.
Para o lixo a regra base do bem-estar não muda. “É inútil fazer como os alemães, para os quais a coleta diferenciada se tornou obsessão. Basta comprar de maneira diversa, vivendo de modo convival. Não há incinerador que dê conta... O melhor lixo é aquele não produzido... E atenção, digo-o aos amigos italianos, o assédio da imundície não é uma questão napolitana. É uma questão mundial, o livro de Saviano di-lo claramente. Os Estados Unidos mandam à Nigéria oitocentos navios por mês de rejeitos tóxicos não recicláveis”!
Enfrentemos com alegria o milho, o pão e o vinho e o discurso de Latouche é como uma ladainha franciscana que te obriga a soletrar sem medo o abc da renúncia. Os e-mails, por exemplo. “Escrevo com freqüência cartas a mão, mas não para voltar à vela e ao pergaminho. Faço-o pelo simples prazer de demonstrar a mim mesmo que posso caminhar sem as próteses artificiais impostas pelo sistema, de modo atóxico. Entendo o correio eletrônico e todo o resto. Meu modo de agir é uma forma de treinamento ao jejum da tecnologia. Um tecno-jejum”.
E depois a bicicleta. “Não a uso porque se deve pedalar, mas somente porque é belo. Se na minha casa na montanha pedalo quilômetros cada manhã para procurar-me os croissants para a colação, significa que isso me faz viver melhor, ponto final. Encontro pessoas, falo, aprendo, e o dia começa com o pé certo. Ivan Illich, grande fustigador do desperdício, dizia que este mundo de alto consumo de energia é, inevitavelmente, um mundo de baixa comunicação entre os homens. Eis, pois, a bici é o símbolo do contrário. Uma vida de baixa energia gera alta comunicação”.
Não falamos dos telefones. “Poderia dizer que fazem mal, que, para construí-los, se usa um mineral raríssimo e altamente tóxico, ou que detrás de cada celular está o sangue das guerras tribais fomentadas pelo Ocidente em lugares como o Congo. Digo, ao invés, o seguinte: sem telefones se vive melhor. A ânsia cala. A alegria aumenta. Não há mais o Grande Irmão que te vigia. A gente o entende até sem saber nada de economia e sem incomodar a geopolítica.”
Desenvolvimento: a confusão já está contida na própria palavra. Esconde o desfrutamento e a rapina, o desenraizamento em massa de indivíduos, a morte da diversidade, a evidência de uma humanidade apática, infeliz, obesa, precária, insegura e, observando bem, também pouco pobre. “A idéia de desenvolvimento resiste obstinadamente à evidência de sua falência. Por isso deixou a tempo de ser uma coisa científica. Tornou-se mística, mitologia, religião. Um fetiche enganador que anestesia suas vítimas. O verdadeiro ópio dos povos”.
Dizem-nos que para sair da crise econômica devemos trabalhar mais. Tornar-nos chineses. Que a China vá ao desastre e se afogue na poluição, são objeções irrelevantes. Vai-se em frente da mesma forma. “É desta cegueira que devemos libertar-nos”, diz o francês. Sim, mas então, qual é o modelo correto? “Anos atrás encontrei um cidadão laociano. Estava sentado à beira de um campo e não fazia nada. Perguntei-lhe: o que faz? Respondeu: escuto o arroz que cresce. ‘J’écoute le riz pousser’. Reencontramos o prazer da vida, antes da ânsia de fazer”.
É tão óbvio: uma sociedade que tem como único escopo o desenvolvimento econômico é como um indivíduo que quer apenas ser obeso. Além disso, as pessoas têm o mesmo medo de mudar, temem perder o bem-estar. “Aqui os alarmes das últimas décadas, coisas como Chernobyl ou a epidemia da vaca louca, foram utilíssimos. Colocaram questionamentos às pessoas. Fazem o jogo do partido do decrescimento. Por isso, mais que imaginar a Grande Catástrofe Final, prefiro construir uma pedagogia das pequenas catástrofes intermediárias. Não há nada melhor para fazer entender às pessoas o apocalipse que virá”. E a lentidão? “A guerra da Valsusa contra a linha ferroviária de alta velocidade é sacrossanta e foi uma pilastra na história do partido do decrescimento. É ali que os movimentos saíram da floresta e começaram a soldar-se entre eles. Aquele anti-Tav, aquele contra a megaponte de Messina ou a central de Civitavecchia”.
Latouche tem razão: os poderes fortes temem a opinião pública. Por isso nos mantêm na escuridão. Na União Européia bloquearam todos os referendos sobre as grandes obras e os ogm, porque sabem muito bem que as pessoas votariam contra, como sucedeu na Suíça. José Bové teve que fazer a greve da fome para que o governo francês, por temor de reações populares, mantivesse a prometida moratória sobre os organismos geneticamente modificados. “Se um político fosse à TV e dissesse: senhores, estamos viajando num trem sem condutor, a partir de amanhã devemos mudar de vida... Se aquele político desse novas regras de comportamento virtuoso à nação, não duvido que seria assassinado no giro de uma semana”.
É um sinal de temor. Por isso a economia global acelera, ao invés de reduzir. Por isso as imundícies se tornam montanhas, o fosso entre ricos e pobres se alarga, os subúrbios se incendeiam. Por isso a corrida aos últimos recursos se torna rapina, guerra, e o sistema entre no túnel do absurdo. “Absurdistã”, chamava-o Illich. E, já que pavor e consumo aumentam de modo paralelo, eis que a construção de um partido do decrescimento se torna um desafio de velocidade, uma corrida contra o tempo.
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