recebido por e-mail - 27 fev 2012
O
namoro do Chico Buarque com a cantora ruiva Thais Gulin rendeu para o público brasileiro um blues: ESSA PEQUENA. Mas
rendeu também a interessante crônica UM TEMPO SEM NOME da escritora
Rosiska Darcy de Oliveira sobre “o novo conceito de envelhecer”.
Um tempo sem nome
Rosiska Darcy de Oliveira, O Globo,
21/01/12
Com
seu cabelo cinza, rugas novas e os mesmos olhos verdes, cantando
madrigais para a moça do cabelo cor de abóbora, Chico Buarque de
Holanda vai bater de frente com as patrulhas do senso comum. Elas
torcem o nariz para mais essa audácia do trovador. O casal cinza e
cor de abóbora segue seu caminho e tomara que ele continue cantando
“eu sou tão feliz com ela” sem encontrar resposta ao “que será que
dá dentro da gente que não devia”.
Afinal, é o olhar estrangeiro que nos faz estrangeiros a nós
mesmos e cria os interditos que balizam o que supostamente é ou
deixa de ser adequado a uma faixa etária. O olhar alheio é mais
cruel que a decadência das formas. É ele que mina a autoimagem, que
nos constitui como velhos, desconhece e, de certa forma, proíbe a
verdade de um corpo sujeito à impiedade dos anos sem que envelheça o
alumbramento diante da vida .
Proust, que de gente entendia como ninguém, descreve o
envelhecer como o mais abstrato dos sentimentos humanos. O príncipe
Fabrizio Salinas, o Leopardo criado por Tommasi di Lampedusa, não
ouvia o barulho dos grãos de areia que escorrem na ampulheta. Não
fora o entorno e seus espelhos, netos que nascem, amigos que morrem,
não fosse o tempo “um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho“,
segundo Caetano, quem, por si mesmo, se perceberia envelhecer?
Morreríamos nos acreditando jovens como sempre fomos.
A vida
sobrepõe uma série de experiências que não se anulam, ao contrário,
se mesclam e compõem uma identidade. O idoso não anula dentro de si
a criança e o adolescente, todos reais e atuais, fantasmas saudosos
de um corpo que os acolhia, hoje inquilinos de uma pele em que não
se reconhecem. E, se é verdade que o envelhecer é um fato e uma
foto, é também verdade que quem não se reconhece na foto, se
reconhece na memória e no frescor das emoções que persistem. É assim
que, vulcânica, a adolescência pode brotar em um homem ou uma mulher
de meia-idade, fazendo projetos que mal cabem em uma vida
inteira.
Essa
doce liberdade de se reinventar a cada dia poderia prescindir do
esforço patético de camuflar com cirurgias e botoxes — obras na casa
demolida — a inexorável escultura do tempo. O medo pânico de
envelhecer, que fez da cirurgia estética um próspero campo da
medicina e de uma vendedora de cosméticos a mulher mais rica do
mundo, se explica justamente pela depreciação cultural e social que
o avançar na idade provoca.
Ninguém quer parecer idoso, já que ser idoso está associado
a uma sequência de perdas que começam com a da beleza e a da saúde.
Verdadeira até então, essa depreciação vai sendo desmentida por uma
saudável evolução das mentalidades: a velhice não é mais o que era
antes. Nem é mais quando era antes.
Os dois ritos de passagem que a anunciavam, o fim do
trabalho e da libido, estão, ambos, perdendo autoridade.
Quem se aposenta continua a viver em um mundo irreconhecível
que propõe novos interesses e atividades. A curiosidade se aguça na
medida em que se é desafiado por bem mais que o tradicional choque
de gerações com seus conflitos e desentendimentos. Uma verdadeira mudança de era nos
leva de roldão, oferecendo-nos ao mesmo tempo o privilégio e o susto
de dela participar.
A
libido, seja por uma maior liberalização dos costumes, seja por
progressos da medicina, reclama seus direitos na terceira idade com
uma naturalidade que em outros tempos já foi chamada de despudor.
Esmaece a fronteira entre as fases da vida. É o conceito de velhice
que envelhece. Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser
uma profecia que se autorrealiza. Sem, no entanto, impedir a lucidez
sobre o desfecho.
”Meu
tempo é curto e o tempo dela sobra”, lamenta-se o trovador, que não
ignora a traição que nosso corpo nos reserva. Nosso melhor amigo,
que conhecemos melhor que nossa própria alma, companheiro dos
maiores prazeres, um dia nos trairá, adverte o imperador Adriano em
suas memórias escritas por Marguerite Yourcenar.
Todos
os corpos são traidores. Essa traição, incontornável, que não é
segredo para ninguém, não justifica transformar nossos dias em sala
de espera, espectadores conformados e passivos da degradação das
células e dos projetos de futuro, aguardando o dia da traição.Chico, à beira dos
setenta anos, criando com brilho, ora literatura , ora música,
cantando um novo amor, é a quintessência desse fenômeno, um tempo da vida que não se parece em
nada com o que um dia se chamou de velhice. Esse tempo ainda não
encontrou seu nome. Por enquanto podemos chamá-lo apenas de
vida.
ROSISKA DARCY
DE OLIVEIRA é
escritora.
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