Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 25 de outubro de 2012.
Continuando
nossas pesquisas sobre as Comissões de Limites Brasil-peruvianas
chegamos à magnífica biografia do Barão de Tefé escrita por sua nora,
casada com seu filho Álvaro de Tefé. Tetrá de Tefé dedicou ao famoso
parente uma rica obra intitulada “Biografia do Almirante Antônio Luís von Hoonholtz”
editada pelo Centro de Documentação da Marinha em 1977. Reportaremos o
primeiro de dois de seus capítulos que abordam interessantes passagens
de Tefé quando este era Chefe da Comissão de Limites
Brasileiro-peruviana de 1874.
Capítulo XVII
A Questão dos Limites Entre o Brasil e o Peru
Terminada
sua missão no Paraguai, após 4 anos de heroísmos e sacrifícios quase
acima do possível, tendo estado exposto 22 vezes em linha de fogo,
Onóltz parte de Humaitá rumo à pátria, a 30 de agosto de 1868. Nunca
mais aquele viandante das águas tornaria a ver os Rios onde tantas vezes
estivera a um passo da morte e tantas vitórias lhe aureolaram a fronte.
Chegado
à Corte, de retorno da segunda etapa da campanha, igual em importância
no desfecho do Passo do Tebicuari à primeira, reassume incontinenti seu
lugar de Chefe da Comissão Hidrográfica no empenho de prosseguir os
trabalhos de levantamento de toda a Costa do Império, objetivo
intensamente visado por ele havia já 6 anos, desde sua prolongada
permanência em Santa Catarina antes da guerra.
Seria,
no entanto, em outro plano de combatividade — embora hidrográfico e
astronômico — que iria continuar a servir seu País. Plano, aliás, tão
altamente dignificador pelas abnegações que iria dele exigir, como a do
próprio conflito armado no Sul do continente. Este seria bem ao Norte do
Brasil, na longínqua Amazônia, para a demarcação dos limites entre o
Brasil e o Peru. Uma Comissão Científica se dá idéia de que para
solucioná-la as únicas armas a empunhar serão a pena, o lápis,
sextantes, telescópios, cronômetros, balizas etc., torna-se penosíssima
quando — ao penetrar em regiões incultas, sertões indevassados e
habitados por selvagens ferozes e de clima inóspito — se vê em luta
contra todos os elementos sem meios de defesa adequados, principalmente
contra as doenças tropicais.
Antes,
porém, de estar assente a nova e ingente Comissão, deu-se um episódio
digno de nota: certa manhã achava-se Onóltz à cabeceira de sua jovem
esposa (Didila) então adoentada, quando foi avisado que seu amigo Dr.
André Rebouças o esperava no vestíbulo para uma comunicação urgente.
Com o ar estabanado que lhe era peculiar (contava Tefé), Rebouças foi logo exclamando ao vê-lo:
—
O Conde d’Eu anuncia sua nomeação para General-em-Chefe do Exército em
operações no Paraguai e o desejo que tem de levá-lo em seu Estado-Maior.
Pela
primeira vez Onóltz fraqueja, na santa fraqueza do amor e da espera do
1° filho que em breve nasceria. Deve ter-se dado em seu espírito uma
substituição de valores, ao contemplar com os olhos da alma uma paisagem
interior tão bela que lhe entibiou a vontade. Como se fosse uma decisão
libertadora, respondeu meio amuado:
—
Oh! Rebouças, pois não sabes, como o Conde também, que deixei minha
mulher 34 dias depois de casado e parti pela segunda vez para o Teatro
da Guerra? Agora que acabo de chegar, hei de entrouxar de novo minhas
roupas, partir pela terceira vez, servir fora de meu elemento e
representar o papel de oficial de cavalaria? Se fosse para novamente
entrar em combate, partiria incontinenti. Mas esta é apenas uma honraria
e uma distinção...
Um tanto desapontado, Rebouças não o contradisse:
—
É pena — concluiu — Grande pena. A Comissão seria muito promocional.
Mas... estou com o tílburi à porta. Volto já ao Palácio Isabel e
transmitirei ao Príncipe as tuas razões. Certamente, ele não pensou
senão em ter a seu lado um oficial da tua envergadura...
Tílburi:
carro de duas rodas e dois assentos (tilbureiro e passageiro), sem
boléia, com capota, e tracionado por um só animal. Foi inventado por
Gregor Tilbury, na Inglaterra, em 1818, e trazido para o Rio de Janeiro
em 1830. (Nota do Autor)
Quando no dia seguinte, Onóltz foi agradecer ao Conde a subida honra do convite, este lhe cortou a palavra:
—
É a mim que compete pedir desculpas. Compreendo sua situação; mas, como
desejo ao meu lado um Oficial de Marinha capaz de assessorar-me no que
for concernente à Esquadra, peço-lhe que me indique quem pode
substituí-lo.
Depois de um instante de reflexão, Onóltz respondeu:
— Se V. A. levar o Salgado não se arrependerá.
Eis
como no lugar que lhe fora reservado, figura o eminente Comandante João
Mendes Salgado a cavalo junto do Príncipe General-em-chefe em um quadro
a óleo do fim da guerra do Paraguai.
Aliás,
mantendo sua promessa, Didila não dissera palavra, nem usou do ardil de
lágrimas silenciosas. Deixou o marido em completa liberdade de escolha.
A prioridade dada ao amor fez Onóltz ganhar uma partida, que no fundo
foi uma perda. (Muito mais tarde, quando Tefé se referia a esse quadro,
no qual não figura, repontava em sua voz certo laivo de arrependimento).
Por que terá ele agido assim na hora exata da recompensa a tantas
lutas? É que em toda existência humana atua repentinamente o impessoal,
ou antes o mais forte do que o pessoal, o cósmico, que obedece
exclusivamente ao impulso momentâneo, O como? e o por quê? serão sempre
um impenetrável arcano.
Preparava-se
Onóltz com empenho para levar a efeito por fim em larga escala os
trabalhos hidrográficos da costa brasileira, quando foi inesperadamente
nomeado pelo Ministro de Estrangeiros de então, que era ao mesmo tempo
Presidente do Conselho — o Visconde de São Vicente — para Chefe da
Comissão de Limites entre o Brasil e o Peru.
Tolhia-lhe
um pouco a liberdade de ação o fato de que outro Oficial da Armada
tivesse iniciado essa mesma incumbência. Daí certa relutância às
instâncias de São Vicente e aos contínuos chamados ao Palácio de São
Cristóvão. Não queria dar corpo àquela hesitação mais semelhante a uma
premonição de que iria pisar num campo minado. Mas às suas justas
ponderações que a Comissão era antes da competência de um engenheiro do
que de um Oficial da Armada, respondeu-lhe o Imperador, numa das
audiências:
—
Lá, nesse sertão, preciso de um homem de guerra que não se deixe
massacrar pelos bárbaros selvagens, e preciso, ao mesmo tempo, de um
hidrógrafo para levantar as Cartas dos Rios e de um astrônomo que saiba
determinar as coordenadas dos Marcos. A Comissão é sua.
Platão
não admite o ego como centro de uma esfera de atividades
transcendentes. Já para Kant esta concepção é uma necessidade interior.
Por cético que se seja há, geralmente, na vida, um ponto onde a análise
emudece e a fé começa. O destino de Onóltz estava traçado. Não era uma
autodeterminação; era uma predestinação. Em seu horizonte projetara-se a
Amazônia.
Assim,
depois dos riscos de uma prolongada guerra, inerentes ao seu “métier”,
apontava-lhe o Monarca uma entrada bandeirantista em impenetradas
regiões amazônicas de há um século passado! Aliás, com uma frase-luz
Cassiano Ricardo dogmatizou:
— Quando entra no mato a primeira Bandeira, termina a História de Portugal e começa a do Brasil.
O fragor do bandeirantismo reboa através dos séculos XVI, XVII e XVIII,
durante os quais os homens de coragem vivem em função da busca de
terras interioranas e das minas de ouro, prata, brilhantes e esmeraldas
que — diziam as lendas — elas contêm. Fanatizados pelo mito, lá se iam
os bravos mata a dentro, não sem antes fazerem suas invocações:
— Peço ao Anjo Gabriel e ao Santo de meu nome e ao Anjo de minha guarda que me queiram acompanhar.
Assim,
fundindo mitos e crenças no mesmo fascínio, partiam devorados pela fome
do ouro, para muitas vezes morrerem de fome. Mas os que resistiam aos
perigos, seguiam em frente sua trilha construtiva, desbastando florestas
virgens e criando à sua passagem Aldeias e Vilas que seriam as
placentas comunicadoras entre aquele presente e as grandes cidades do
futuro. À mensagem de Portugal: “Tropa de gente de São Paulo, que vos achais às margens do Tocantins, eu, o Príncipe, (D. Sebastião), vos envio muito saudar”, respondem desafiantes e orgulhosos: “Iremos a pé de São Paulo ao Peru; e isto não é uma fábula”. Realmente, a marcha prosseguiu incontida até as regiões andinas, barragem intransponível que os obriga a estacar.
Mas,
o bandeirantismo — perspectiva em profundidade na audaciosa paisagem
brasileira —, com seu conteúdo dinâmico para o sentido histórico, já que
a distância no Tempo é uma forma de energia, por mostrar-nos de quanto
foi capaz o homem em suas realizações, o que impulsiona as novas
gerações, o bandeirantismo não morre ali ao sopé dos Andes, durante a
centúria de XVIII. Apenas muda de estilo. No século seguinte, o de
Onóltz, no país em plena evolução sócio-geográfica, chega a vez de os
cientistas serem os bandeirantes das demarcações dos limites ao Norte do
Império numa luta com o meio ambiente, tão encarniçada quanto a dos
desbravadores primitivos.
Foi com o Peru que o Brasil teve as maiores dificuldades em demarcar seus limites divisórios, máxime
(especialmente) em face da histórica questão do domínio lusitano e
espanhol no Novo Mundo. Muitas preocupações, atritos diplomáticos e
perdas de vidas preciosas já haviam causado a ambos os países os
delineamentos das fronteiras sem que nenhum trecho ficasse solidamente
demarcado.
Isso
porque, até quase quatro séculos após a descoberta do Brasil, nenhum
homem civilizado ousara penetrar na região superior do misterioso Rio
Javari na Amazônia, o verdadeiro Rio limítrofe com o Peru.
Em
1866, querendo os dois países pôr termo à secular questão, decidiram
enviar uma Comissão Mista, chefiada por cientistas de grande valor:
Soares Pinto pelo Brasil, D. Manuel Rouaud y Paz Soldan pelo Peru, que
deveriam explorar o Rio Javari, por cujo álveo corria a fronteira, até
sua principal nascente. Malgrado
(a despeito de) cuidadosamente organizada essa Expedição, não puderam,
entretanto, os mal-aventurados demarcadores subir o Rio em canoas por
mais de oito dias. Subitamente atacados por ambas as margens pelos
índios bravios, Mangeronas e Cataquinos, que dominavam toda essa imensa
região, a devastação foi tremenda.
Da
encarniçada luta, somente um terço dos expedicionários logrou fugir,
salvando-se o chefe peruano Paz Soldan, gravemente ferido por 5 flechadas
(4 ou 5?), enquanto caíam massacrados o Chefe brasileiro e toda sua
escolta, bem como as tripulações indígenas mansas que os seguiam nas
canoas, das quais os silvícolas se apoderaram e levaram tudo que
continham: armas, roupas, instrumentos científicos e todos os víveres.
Por não estarem ervadas as flechas que feriram Paz Soldan, este pode
salvar-se amputando uma perna em condições dramáticas.
Algum tempo depois desta Expedição, partiu para o Norte o Comandante José da Costa Azevedo que — diz Lery Santos:
durante
cerca de cinco anos exerceu o cargo de demarcador do qual fora
exonerado sem nunca ter conseguido estabelecer definitivamente uma só
das linhas da fronteira.
Costa
Azevedo alcançou apenas o Rio Japurá e lá — segundo seus cálculos —
fincou um marco divisório. Como, entretanto, o Peru não se tinha feito
representar, não o considerou válido. Daí ter o Imperador insistido em
formar outra Comissão chefiada por Onóltz, já então uma sumidade em
Hidrografia e Astronomia.
Pelas
vias diplomáticas, encarregou-se o Governo do Peru de formar ao mesmo
tempo a sua Comissão, que seria chefiada ainda desta vez por quem já
estivera na Amazônia: o renomado astrônomo D. Manuel Rouaud y Paz Soldan
que, com seus assistentes, viria ter ao Rio para da Corte partirem
juntas ambas as Comissões.
Costa
Azevedo, muito envolvido em questões políticas no Partido Liberal,
desde que se elegera Deputado quando de sua permanência na Amazônia,
mesmo estando no Rio não procurou Onóltz. Por seu lado, este não
considerou de bom tom visitá-lo, visto ser notório que o Governo perdera
nele a confiança desde que escolhera substituto para a mesma
finalidade. Deu-se assim o caso estranhável de partir um Oficial para
prosseguir trabalhos encetados por um camarada que nem de vista
conhecia, e do qual nenhum apontamento recebera.
Munido
apenas do Mapa Geográfico da região do Solimões, que compreendia a
Linha Geodésica da fronteira Setentrional entre Tabatinga e Apaporis,
traçado em grande escala por Costa Azevedo, sem a presença dos
demarcadores peruanos, e na qual se lia, em letras garrafais, de um
lado: Império do Brasil, e do outro: República do Peru, persuadiu-se
Onóltz de que nesse trecho nada mais teria o chefe peruano a fazer senão
verificar a exatidão do marco extremo, plantado em frente à Boca do
Apaporis. Isto posto, restar-lhes-ia forçar a selvagem barreira humana
que desde a passagem de Orellana pela Boca do Javari tapava esse Rio
temível, de forma a que nenhum explorador ou flibusteiro conseguira
navegar em canoa por mais de três dias sem ser massacrado. Confiante em
seu dinamismo e na bravura dos imperiais marinheiros e da marinhagem
(pessoal de bordo do navio) que o acompanhavam desde as batalhas do
Paraguai, e se porfiavam em obter ordem de partida sob seu comando, não
computou Onóltz em mais de um ano sua ausência.
A
realidade foi outra: os trabalhos das Expedições Demarcadoras
dividiram-se, pela fatalidade, em duas etapas, o que de muito prolongou a
estada de Onóltz nas brenhas amazônicas. Foi um contratempo dramático:
houve uma primeira etapa 1871-1872 em que a Comissão peruana foi
presidida por Paz Soldan, enviado por seu Governo, não apenas por ser
uma sumidade em astronomia, como, e principalmente, por já ter estado na
Amazônia, em 1866, com a missão Soares Pinto, a qual se malogrou em tão
trágico desfecho. E quase três anos depois, em 1874, teve início a
segunda etapa, ainda mais penosa e arriscada que a primeira, assumindo a
Chefia da Comissão peruana o Capitão-de-Fragata D. Guilherme Black.
Em
1871, partiram juntas da Corte as Comissões Brasil-peruvianas, no
rudimentar e moroso navio Marcílio Dias na rota do longínquo Pará, já
que a Flotilha do Amazonas passara a ficar sob o comando de Onóltz.
Esperava-o em Belém uma grande surpresa: Juca, o tão querido Juca (o
antigo líder da família), que fixara residência em Manaus, lá
constituíra seu lar e se fizera eleger Deputado Provincial, foi o
primeiro a receber os viajantes.
Ora,
tendo sido Carlos nomeado agrimensor da Comissão, iam ver-se os três
irmãos reunidos depois de cerca de quinze anos de separação. O encontro
foi de grande emoção e juntos escreveram uma carta cheia de amor à D.
Joana Cristina (matriarca).
Mesmo
sob a égide de um Deputado experiente, as dificuldades para os aprestos
indispensáveis ao desempenho da missão de tanto vulto, e as delongas
inexplicáveis de Paz Soldan, excessivamente minucioso, sempre à procura
de maior segurança, obrigaram-nos a ficar aí muito mais tempo do que
supuseram.
A
concentração das duas Expedições fora convencionada por motivos
técnicos fluviais, para dar-se na desprovida cidade de Tefé, às margens
do Rio do mesmo nome.
Necessário
é ter-se diante dos olhos o mapa brasileiro para conseguir-se a visão
panorâmica das distâncias formidáveis percorridas pelas Comissões até o
ponto do ancoradouro. Esses percursos eram, no entanto, apenas a
primeira página da saga empolgante que eles iam viver. Embora na azáfama
dos preparativos para a partida, Paz Soldan insistia amistosamente,
através de cartas, em que adotassem a Linha do Madeira ao Javari, mesmo
deslocada para 9°30’ de Latitude Sul. Onóltz, que nunca soube maneirar, e
era mesmo o antípoda do maneirista, delicada mas energicamente, repeliu
a proposta, a ponto que Paz Soldan não voltou mais ao assunto.
A 12 de janeiro de 1872, escrevia Paz Soldan:
—
He recibido el oficio de 28 diciembre en el cual tiene U. a probar en
pocas palabras las justas razones que tiene el Gobierno Imperial para
ordenar-le en el capitulo 5° de instrucciones de colocar el marco de
Limites en el Río Javary...
A 17 de abril, voltava à carga:
—
... al paso que al que suscríbale le ordena el Gobierno colocarlo en la
semidistancia del Madeira en los 7°40’ ó sea 2°40” mas al Norte
suponiendo que el Río llegue a una Latitud más Austral, pues solo bajo
este hipótesis puede haber discusión, porque del contrario la naturaleza
cortaba toda disputa. Esta divergencia tiene que aumentar cuando haga
(palavra ilegível) solamente del Madeira porque necesita la salida
natural de los Departamentos Orientales bañados por los afluentes del
Madre de Dios.
Junto con este oficio tengo el honor de remitir a U. un mapa formado
especialmente para estudiar esta cuestión y la memoria científica que
manifieste como ha sido formado dicho mapa especificando las autoridades
en que me fundo.
En cuanto a mi puede U. estar seguro que no pondré embargo para llevar a
buen termino la demarcación, pues era ello están internados nuestros
países y nuestro propio deber.
No será este pues un obstáculo para surcar el Javary y para presentar
medios conciliatorios dejando en último caso que nuestros Gobiernos
resuelvan dificultades para cuya no estuviéramos atorgados.
Reitero a U. la seguridad de mi más alta consideración y aprecio.
Ass. Manuel Rouaud y Paz Soldan.
(Desses debates, publicados no “Jornal do Commercio” da época, escreveu Euclides da Cunha, em 1907, ao Barão de Tefé:
Acompanhei
todo o debate entre V. Exª e o Sr. Manuel Rouaud Y Paz Soldan. A minha
veneração por V. Exª baseia-se, portanto, em elementos positivos e
eloquentíssimos. O meu juízo no tocante à nobilíssima atitude do
Comissário brasileiro 1871-1874 tem este valor: é a primeira voz da
justiça incorruptível.
Afinal,
após terem vencido dificuldades de toda ordem, cada Comissão em seus
pequenos navios, rumaram ambas para a primeira meta: o Japurá. A
Comissão Brasileira já ia desfalcada do imediato, com quem o trato não
era ameno, e quanto aos trabalhos astronômicos de que estava incumbido
deixaram muito a desejar. Na Foz do afluente Apaporis instalaram os
observatórios (Onóltz na margem esquerda; Paz Soldan, na direita),
ficando entendido que a média das observações referidas ao meio do Rio,
indicaria o ponto Extremo Setentrional da fronteira comum. Ora, como
essas coordenadas já haviam sido calculadas pelo seu antecessor Costa
Azevedo, o Marco do Rio Japurá tinha de ser procurado entre o mato que
cobria a margem direita do Rio, para ser validado pela parte contrária. A
verificação era necessária, para que Paz Soldan apusesse sua assinatura
na Ata lavrada antes pela Comissão exclusivamente brasileira. Esta
circunstância fazia rir o Chefe peruano, que dizia, irônico, ao instalar
seus instrumentos:
—
Ahora, colega, prepare-se usted a cambiar el marco algunas millas mas
abajo. El Señor Azevedo que lo planto sin la fiscalización de nosotros,
ciertamente robo al Perú una facha de territorio, que tendré el gusto de
reivindicar.
Iniciadas
as observações, e antes de decorridas 24 horas, calculadas as alturas
do Sol à tarde e das estrelas durante a noite, achou Onóltz na manhã
seguinte tal diferença na carta litografada pelo Governo Imperial, que
se absteve de tocar no assunto, para não mostrar-se precipitado. Nos
dias seguintes — pelo Sol, Lua, e estrelas — resultados idênticos:
grande diferença com as coordenadas fixadas por Costa Azevedo. Coisa
inesperada, porém: a posição de seu marco prejudicava o Brasil e não o
Peru!
Nessa
noite, executados e revistos seus cálculos, foi no escaler “Parazinho”
visitar o colega a bordo do peruano “Napo”. Paz Soldan começou
monotonamente a falar sobre a próxima exploração dos Rios Içá e
Putumaio; sobre as tribos dos Curetus, cujo tuchaua lhes fora oferecer
bananas e carás; sobre o calor tórrido, os mosquitos que os devoravam e
os impediam de dormir... Qual! O peruano fugia de referir-se às
observações astronômicas. Finda a visita, ao despedir-se dele e em
presença de seus ajudantes, disse Onóltz a rir-se, parodiando-lhe a
frase:
—
¿Entonces colega, está usted preparado para acompañar el marco algunas
millas por el Japurá arriba hasta su posición exacta?
Paz
Soldan respondeu que ainda não executara os cálculos e que só depois de
mais 8 dias de observações minuciosas, pedir-lhe-ia uma conferência
para a confrontação dos trabalhos. Findo o prazo, as divergências entre
as médias dos dois Chefes eram insignificantes. Paz Soldan, porém,
exigiu mais outros oito dias. E eram longos dias de Sol torturante, de
mosquitos venenosos, doenças e lutas contra os agravos da Natureza
primitiva.
Durante
essa semana, Onóltz corrigiu o levantamento hidrográfico de outra
grande extensão do Rio Japurá, feito por Costa Azevedo. Reunida
novamente a conferência das duas Comissões, teve Paz Soldan que
submeter-se à lógica dos algarismos e concordar, declarando em tom
formal:
—
Señor Comisario, si yo hubiera previsto en mi país lo que está
sucediendo en este momento, le aseguro que Usted no me tendría aquí a su
lado. Jamás he creído en un tal error por parte del Sr. Azevedo.
Com
toda a solenidade foi destruído o marco existente e plantado o novo em
seu verdadeiro lugar, reivindicando Hoonholtz para o Brasil uma área
fertilíssima de centenas e centenas de km2 (405.000 km2, no dizer de
Carlos da Silveira Carneiro). Lavraram de tudo o competente Auto em
português e espanhol, assinado por ambas as Comissões, mas sem aparência
de festa, pois os brasileiros não desejavam melindrar seus colegas
peruanos, com quem haviam estreitado laços de amizade e camaradagem.
É
claro — disse Tefé mais tarde em carta — que tendo sido sempre a
Astronomia e a Hidrografia as minhas especializações, eu não poderia
ficar de braços cruzados na Boca do Apaporis enquanto o Delegado do Peru
procedesse à verificação das coordenadas do marco plantado tempos antes
por Costa Azevedo. Lancei, pois, mão dos meus instrumentos, e pasmado
fiquei ao encontrar o erro, e tão considerável, contra o Brasil. Como
agir? Calar-me, tornando-me conivente no crime de lesa-pátria, somente
para não melindrar um imperito demarcador? Impossível! Seria trair a
confiança em meu saber depositado pelo próprio Imperador.
Fiz
o que me cumpria fazer. Dediquei-me de corpo e alma à minha Comissão e
ao finalizá-la pude dizer de cabeça erguida: o Comissário cumpriu seu
dever.
Após
18 dias de permanência só nesse ponto, decidiram descer o Japurá.
Foram, porém, obrigados a fundear logo ao escurecer para evitarem
encalhe ou choque nas madeiras flutuantes que coalhavam o Rio. À noite —
consigna Onóltz — refrescara e da mata virgem vinham umas lufadas de
vento que espalhavam no ar, impregnando a embarcação, um cheiro
delicioso de fava de cumaru misturado a vagens de baunilha.
Assim
acalentados os homens da equipagem, em breve, ferraram no sono. Pela
madrugada, uma triste surpresa os aguardava. Quase toda a tripulação
estava impossibilitada de saltar das macas! Prostrados e ardendo em
febre, os homens gemiam, e mesmo gritavam, de dores nos artelhos,
aumentadas quando se esforçavam para pôr-se em pé. Indene (ileso),
Onóltz foi acordar o médico Dr. Carneiro da Rocha, que a todos ministrou
café quente com quinino em pó. A horrível beberagem não aliviou os
atacados, nem obstou que outros fossem caindo com o mesmo mal.
Por
volta do meio dia aproximou-se o escaler do Napo, trazendo o Secretário
Froilan Morales aflito a pedir o médico para atender ao chefe Paz
Soldan, que sofria de dores atrozes em sua única perna. A maior parte da
guarnição peruana, inclusive a gente da máquina, achava-se também
atacada. Uma semana durou a dramática crise. Das 52 pessoas que formavam
a guarnição do “Parazinho”, só 3 praças se conservaram imunes: o
Prático (caboclo de Manaus), um curumin, seu filho e o cozinheiro negro
da Flotilha do Amazonas. Foi o que valeu a ambas as expedições, pois a
todos atendiam.
Enfraquecidos
e minados pela estranha febre, partiram, por fim, desse Rio pestífero
em direção a Tefé, onde fundearam dois dias depois. O Napo trazia ainda
muita gente em estado grave, inclusive o Chefe Paz Soldan. Até então
ainda não tinha havido perdas de vidas. O primeiro cuidado de Onóltz foi
conseguir um grande armazém para sua guarnição, enquanto se procedia a
desinfecção do navio. A Comissão Peruana estava melhor acomodada, porque
Paz Soldan, antes da subida ao Japurá, alugara a casa de uma família
abastada, em vilegiatura (temporada) no Pará. Ao tomar posse da chave, o
Chefe peruano notara que a alcova da sala de visita, onde pretendia
dormir, achava-se solidamente trancada. Interpelado, declarou o
Procurador do proprietário que nessa peça depositara o dono um objeto
sagrado, que não devia ser profanado por olhares curiosos. Paz Soldan
não insistiu; no entanto, como no trato era jovial, dizia sempre:
—
Tengo ganas de hacer en estillas esa puerta, para mirar tal objeto tan
sagrado... (Tenho vontade de partir em lascas essa porta, para ver um
objeto tão sagrado...)
Mas,
dormia tranquilo no quarto ao lado. Quando regressou doente, teve de
desembarcar carregado em maca de bordo. Ao deitarem-no em sua cama,
exclamou consolado:
— Como me siento bien ahora en esta casa y en mi lecho!
Pelo
fato de não haver médico em Tefé, o Dr. Carneiro da Rocha empenhava-se
em salvar o doente, e o enfermeiro Paixão, igualmente brasileiro, em
prodigalizar-lhe os maiores cuidados, bem como as famílias da localidade
esmeravam-se em proporcionar-lhe uma dieta compatível com seu estado
melindroso. A febre, no entanto, tomara mau-caráter; e no 3° dia
começara o enfermo a delirar, perdendo gradativamente as forças.
Subitamente, murmurou uma canção de ninar e tamborilou de mansinho com
os dedos na porta da alcova fechada. Foi sua última demarcação de
limites. Tocara a linha mortal da existência humana, que os muçulmanos
chamam de “agel”. Pela madrugada expirou.
Imediatamente,
Hoonholtz declarou ao Secretário Froilan Morales que tomava a si todas
as responsabilidades do enterro do insigne peruano. Prevendo grandes
dificuldades, dada a penúria do lugar, chamou o Procurador do
proprietário da casa alugada por Paz Soldan, para pedir-lhe que se
incumbisse de encomendar um caixão de primeira classe, condigno com o
grande cientista extinto.
—
Que caso singular! respondeu-lhe o Procurador. Encostado naquela porta
fechada, do outro lado, está guardado um rico caixão de defunto, que a
esposa do seringalista Pacheco mandou vir de Belém, quando o marido
voltou muito mal do Juruá. Mas a família mudou-se para o Pará. Posso,
portanto, ceder o caixão em veludo negro recoberto de galões dourados,
para que o chefe peruano seja nele enterrado.
Assim,
o astrônomo peruano foi sepultado por Hoonholtz no cemitério de Tefé,
com todas as honras que lhe eram devidas. Se dei especial enfoque a essa
agonia e a esse morto é que, ao ler o relato, senti quanto é mesquinho o
conteúdo da vida humana a oscilar entre o ímpeto de sobrevivência e a
inexorabilidade da morte. Naquele instante, todo o anelo de domar a
Natureza e toda a força de resistência do vencedor de tantas lutas,
rolaram pelas nuvens e entraram no horizonte inflexível e eterno.
Admiro
a fibra desse homem que, já mutilado, volta às paragens inóspitas e
agressivas, para servir sua pátria. Mas que sobreleva ao seu patriotismo
o absoluto senso de imparcialidade, revelado nas espinhosas questões do
Japurá e do Madeira. Honra ao bravo peruano!
A
morte do íntegro Paz Soldan foi um impacto para ambas as Comissões.
Além do sentimento pesaroso por tão grande perda, pairou no ar a idéia
da suspensão dos trabalhos de demarcação. Por quanto tempo? O Secretário
Froilan Morales e o Ajudante Rincon não titubearam: partiram para
Iquitos. Ficou, assim, terminada tragicamente a primeira etapa da
missão: Hoonholtz-Soldan.
Não
havendo ainda telégrafo no Brasil (só inaugurado em 1874), apressou-se
Onóltz em remeter pelo correio marítimo um ofício minucioso ao
Ministério do Exterior narrando a desastrosa ocorrência e a suspensão
dos trabalhos. Pedia, portanto, permissão para recolher-se à Corte,
enquanto esperava a formação da nova Comissão Peruana. Aproveitou para
comunicar o excelente resultado de seus cálculos e observações e
consequente reivindicação para o Brasil da imensa área que na Carta
Costa Azevedo era atribuída ao Peru.
Terminou
o ofício com a remessa ao Governo de todos os seus trabalhos
científicos e solicitando que, apesar de já aceitos pela parte
contrária, como se verificava nas Atas das conferências de ambos e no
Ato solene do assentamento do marco definitivo, os submetesse à Comissão
de lentes de astronomia e cálculo presidida pelo Diretor do
Observatório do Castelo, para dar parecer.
Recebido,
enfim, no Rio o ofício de Onóltz, foi chamado para determinar sobre
seus cálculos e estudos, o respeitável e eminente matemático Dr. Vila
Nova Machado. Este mestre, por forma tão lisonjeira se expressou, após
minucioso estudo da matéria, que o Gabinete Rio Branco fez ver à Sua
Majestade a vantagem da continuidade de Hoonholtz na Amazônia, à testa
da Comissão de Limites.
Como
seria, porém, justo um incentivo à tão árdua permanência no Norte,
mandou o Governo oferecer-lhe a Presidência da Província do Grão-Pará,
sem prejuízo de seus vencimentos, enquanto durasse a espera da nova
Comissão Peruana.
Essa
proposta, chegada 4 meses depois, deixou Onóltz perplexo. Pesou prós e
contras, mediu a problemática em que se engolfava a Província, para cuja
solução demandava longo prazo; e seu cérebro hiper-dimensionado tomou
logo a resolução adequada:
—
Sou um militar; não, um político. Prefiro esperar a nova Comissão na
Corte junto de minha família. (A jovem e querida esposa Didila e os
filhos que deixara, um com dois anos e o outro com dois meses de
nascido).
Outros
longos meses de espera decorreram. Chegou então o Decreto que lhe
concedia o título de Barão de Tefé, assinado pelo Imperador, referendado
por João Alfredo, Ministro do Império do Gabinete do Visconde do Rio
Branco, e remetido juntamente com uma carta do Marquês de São Vicente,
datada de 11 de junho de 1873 (data da Batalha do Riachuelo), carta da
qual extraí os seguintes trechos:
Nunca
se conferiu o título de Barão a um Capitão-de-Fragata; e Sua Majestade
espera que o brioso herói de Riachuelo não deixe de completar sua obra
tão bem começada. Espere, pois aí com paciência, meu amigo, não arrede
pé; é mais um sacrifício que faz, mas a pátria lhe agradecerá, como este
seu velho amigo e apreciador — Marquês de São Vicente.
Tinha Onóltz então 36 anos de idade.
Muitas
vezes indaguei de mim mesma por que o título se referia a Tefé, se a
meta precípua era o Javari? Preocupação? Receio de cantar vitória antes
do tempo? Mesmo que o feito do Japurá fosse muitíssimo suficiente para o
prêmio, seria mais natural o nome desse Rio. Pesquisei o caso. Lancei
mão, entre outros livros, da enciclopédia sobre os Municípios
brasileiros do Mestre Jurandir Pires Ferreira. O Município de Tefé que,
antes de desmembrado, teve mais de 500.000 km2 de extensão territorial,
deita raízes muito profundas em nossa História. No século XVII, o
jesuíta Samuel Fritz, na defesa de territórios que a Espanha considerava
seus, fundou às margens do Solimões, várias aldeias, entre as quais a
principal chamou-se Tefé, que é corruptela de Tapibás.
Aliás,
todas as tribos dos arredores pertenciam à família linguística dos
Aruaques. Na 1° década do século XVIII reivindicaram os portugueses para
si as aldeias e mudaram o nome de Tefé para Ega. Por várias vezes
espanhóis e lusitanos disputaram essas terras até que estes venceram
definitivamente.
Em
1855, voltou a denominação de Tefé, que passou a ser conhecida como a
cidade dos demarcadores, pois além de teatro de tantas rivalidades de
donos, lá havia passado 9 anos D. Francisco Requeña, na incumbência de
situar as terras nos domínios espanhóis. Em vão. Afinal a região acabara
por não ser mais nem de um nem de outro lado dos contendores. Era e é
bem brasileira, louvado Deus. Refleti melhor: “Cidade dos Demarcadores”.
Dei razão ao Imperador, que escolhera pessoalmente o nome. Na verdade, é
o título no Brasil que mais estreitamente vincula o feito ao agraciado.
E
Onóltz, agora Tefé, permaneceu no Norte do Império, enquanto não mais
meses, mas anos se sucederam. Especializado em Astronomia e Hidrografia,
continua seu esquema: cálculos e observações. Percorre o Rio Amazonas
até além do Pongo de Manseriche no Peru; o Hualaga até os contrafortes
da Cordilheira dos Andes; o Rio Negro e o Japurá até as cataratas. Ainda
o Apaporis, o Madeira, o Purus, o Jutaí, o Içá e parte do Juruá.
Repito: só com os olhos em um mapa, pode-se avaliar a imensidão de tal
roteiro. Seus trabalhos de demarcação das fronteiras com o Peru,
propriamente ditos se estenderam desde o marco do Japurá (na confluência
do Apaporis) à nascente principal do Jaquirana, linha sinuosa passando
através de selvas virgens até o Putumaio; daí a Tabatinga; volta a Tefé;
e então numa abertura de 2.000 km até a nascente do Javari, que teria
início assim estivesse formada a nova Comissão Peruana.
Entre
uma exploração e outra, havia sempre um interregno de repouso,
aproveitado por Onóltz e Carlos para passá-los com o Juca Manaus. Foi
num desses intervalos de amizade e ternura, que o Juca leu o manuscrito
do romance “A Corveta Diana” de autoria do caçula, escrito 10 anos antes
em Desterro. Ficou entusiasmado. Considerou a obra de real valor e
resolveu fazer uma surpresa ao autor mandando os originais para a
tipografia. E exultou com o sucesso imediato que obteve a publicação,
pois vários jornais ocuparam-se do livro pondo-o em destaque. O Diário
de Pernambuco disse textualmente:
Encetamos hoje a publicação do romance marítimo — “A Corveta Diana”
— original brasileiro do distinto Capitão-de-Fragata Antônio Luiz Von
Hoonholtz e ultimamente impresso na Província do Amazonas, onde ele se
acha na importante Comissão de fixar os Limites entre o Brasil e o Peru.
Esse
trabalho literário é a reminiscência de um passado que, se ainda não
vai longe, nem por isso deixa de merecer para os amigos as honras de uma
memória. Recomendamos a leitura desse romance aos nossos leitores, que
ficarão de certo satisfeitos não só pela elegante forma que o Autor lhe
deu e pelos conhecimentos que mostrou desse ramo de literatura.
“O
Diário” da Bahia, o “Pedro II” do Ceará, o “Despertador” de Santa
Catarina, (em Desterro o livro foi teatralizado) e outros jornais
emitiram juízo sempre lisonjeiro ao autor, mas dentre eles transcreverei
apenas parte das notícias dadas pelo “Jornal do Commercio” do Amazonas e
a “Reforma da Corte”. Diz o primeiro:
Uma
das feições características da sociedade atual é a indiferença pela
literatura; sentimos por isso verdadeiro prazer sempre que o
aparecimento de um livro vem despertar-nos e mostrar que, à vertigem do
progresso puramente material, escaparam alguns moços que às letras
pátrias pagam o devido tributo. E essa agradável impressão produziu em
nós a leitura de “A Corveta Diana”,
romance marítimo da autoria do Capitão-de-Fragata Antônio Luiz von
Hoonholtz. A ansiedade com que se devoram as folhas desse livro até o
desfecho imprevisto, prova o interesse que sua leitura inspira; a
originalidade e o gosto com que as cenas são descritas, a naturalidade
com que elas se sucedem, deleitam e levam a reler-se o livro. Não nos
propomos a fazer juízo crítico; o Sr. Hoonholtz tem conceito firmado, e
se já era distinto por tantos trabalhos sobre as ciências exatas e suas
aplicações, manifesta mais uma face do seu talento. Nosso fim é
recomendar aos nossos leitores o romance, que não foi editado para ser
vendido; eles que consigam obtê-lo de algum amigo do autor e aplaudirão o
bom gosto, e como foi ele apurado na construção e ornamento da sua “Corveta Diana”.
Também
se manifesta a “Reforma da Corte” de 7 de junho de 1873 (4 dias antes,
portanto de haver sido conferido o baronato a Onóltz):
“A Corveta Diana”
é o título de um lindo romance, devido à pena do Sr. Capitão-de-Fragata
Antônio Luiz von Hoonholtz, distinto oficial da nossa Armada. É um
romance marítimo e o autor faz-nos apreciar lindos e variados quadros da
natureza brasileira.
E termina, depois de minuciosas apreciações:
Os
episódios são narrados com verdade e os caracteres dos personagens bem
delineados. O livro é escrito com elegância e amenidade.
Na
realidade, Tefé sempre surpreende com a totalidade de dons que possuía.
Seu cérebro pertence a um crisol de categorias conceptivas, na
desenvoltura que, em quaisquer circunstâncias, aciona seu pensamento. E
esse ecletismo foi o que sempre fez o privilégio de sua singular
personalidade. Assim, “A Corveta Diana” representou um “intermezo” de
prazer intelectual vivido pelos três irmãos, que sem o imaginar se
reuniam, os três juntos, pela vez derradeira.
Chegou
por fim a hora da segunda etapa, que seria ainda mais cruciante do que a
primeira. A nova Comissão Peruana chegou a Tefé em fins de 1873,
chefiada pelo Capitão-de-Fragata D. Guilherme Black. Comentavam que esse
oficial vinha cheio de prevenções contra o Império; no entanto, também
ele cedeu à evidência dos algarismos, e no Rio Içá concordou em mudar o
marco 6 léguas para cima, contra o Peru, visto achar-se convencido de
que erradamente fora ali colocado na demarcação provisória. Com a
convivência tornou-se grande amigo de Tefé, comprovando mais tarde sua
amizade.
Juntos
subiram alguns dos Rios já mencionados, sempre numa troca de cálculos e
observações, porém muito preocupados com o preparo para a excursão ao
Javari. Afinal, terminadas as prontificações para a grande jornada —
armas, víveres, medicamentos, roupas e instrumentos científicos — a 17
de janeiro de 1874, peruanos e brasileiros, ao todo 82 pessoas,
acomodaram-se, ou melhor: apinharam-se em 8 chalanas de fundo chato, com
tolda corrida, guarnição de arame grosso e malhas finas, tática
idealizada por Tefé, para preservá-los das flechadas. Assim partiram
além do Paralelo Sul.
Desde
o início defrontaram provações e privações. As chuvas eram torrenciais.
A água penetrava nas chalanas e deteriorava os mantimentos. Derreteu-se
o sal. A carne seca, base da alimentação, ficava cada dia mais aguada e
insossa. Os biscoitos rançaram. Bananas e carás apodreciam, o café
escasseava e o feijão ficou bichado.
Incansavelmente,
mantendo-se acima de tão miseráveis condições de vida, Tefé consignava
em seu mapa todas as observações astronômicas e meteorológicas:
sondagens, velocidade de corrente, os redemoinhos mais perigosos, os
bancos de areia, o aspecto das margens e os obstáculos encontrados na
subida, isto é: as 176 árvores-pontes derrubadas pelos selvagens, para
obstarem a passagem das embarcações, e que eles tinham que cortar com
trabalho hercúleo, debaixo de chuva e de repetidos ataques das tribos
das margens cada dia mais enfurecidas por verem suas selvas, até então
impenetráveis ao homem branco, irem, a pouco e pouco, sendo devassadas.
Cada
madrugada o toque de reunir dos índios acordava os expedicionários: era
o soar da trocana e da capopemba. A primeira repercute como um tambor
monstruoso; e a segunda produz o som longínquo do canhão numa salva
prolongada. Mas, na data de 17 de março de 1874 (dois meses depois da
partida), o trombeteio começou antes da aurora.
Ouviam-se
alternativamente os tambores num fragor ensurdecedor, a cada momento
mais próximo, já que repercutem pelo som como meio de comunicação. A
primeira maloca que capta o aviso, transmite-o para a vizinha, e assim
por diante até chegar a paragens longínquas, com prodigiosa rapidez.
Cada som, em código, representa determinada palavra (mensagem) que os
tamboreiros interpretam.
Os
expedicionários entrevêem ao longe a trocana suspensa por um cipó
timbó-titica, assentada sobre duas forquilhas e o fervilhar dos
silvícolas ao redor do tambor. Tefé não recua. Por volta das seis horas
ordena a partida e designa a chalana Mário, para navegar à frente. Pouco
adiante a Mário dá sinal de selvagens à beira do Rio.
Pela
primeira vez, em magotes compactos, eles atravessam o Rio, de margem a
margem, sobre troncos de árvores e com o maior alarido, para o ataque
bifronte. Dispondo a equipagem em posições estratégicas, mas sem perder
tempo nem calma, invulnerável ao que se passa ao redor de si, Tefé
continua seus trabalhos científicos metro a metro do Rio.
As
escaramuças duram até o dia 5 de abril (19 dias) quando uma batalha
feroz é travada entre flechas e balas. Em meio a mais renhida peleja,
subitamente os índios fogem, abandonando um morto. Era um homem alto e
musculoso, mas de pernas finas. Não trazia no corpo nenhuma cicatriz,
nem marcas de mordeduras de répteis ou dos malditos mosquitos, que tanto
desesperavam os brancos, cujos rostos e mãos viviam inchados e
disformes pelas picadas. Para saber se o cadáver pertencia à tribo dos
Mangeronas, que havia dizimado a Expedição de 1866, o corpo foi
examinado pelos índios mansos Ticunas e Jávaros, que acompanhavam a
Expedição como remadores e intérpretes. Nem pela pintura, nem pelas
armas encontradas nos terrenos circundantes (15 flechas com pontas de
osso e 4 com taquara), puderam fazer a identificação. Aquele trecho,
portanto, era dominado por uma tribo, completamente desconhecida. Bem
sabiam os expedicionários que muitos outros combates semelhantes os
aguardavam, como de fato aconteceu. A cada refrega, os fuzis dominaram
as flechas; mas, sempre com a perda de oficiais e muitos homens da
equipagem.
Então,
depois de mais de 3 meses de navegação lenta, penosa, eivada de
perigos, pelo braço principal do Javari, eis que o tenebroso Rio começou
paulatinamente a perder o ímpeto; a diminuir devagarzinho de volume,
principalmente abaixo do confluente Paissandu. Latitudes e Longitudes
eram anotadas. Dilui-se ainda mais o Rio após a bifurcação de outro
afluente desconhecido nos mapas, o qual Tefé batizou Rio da Esperança,
por que daí em diante, sendo muito menor o volume de água, era mais
firme a esperança de atingirem, enfim, a nascente.
A
um dia de viagem desse afluente surgiu outro à margem esquerda
(peruana), ao qual Black deu o nome de Rio da La Fortuna. Já as águas do
tronco, estão quase desaparecidas; assim, despido da pujança de seu
volume de água, mostra-se o temível Rio numa miserável nudez, reduzido a
um insignificante Igarapé — como os índios chamam os regatos navegáveis
só para pirogas empurradas a braços —, Igarapé que mau grado as chuvas
incessantes daquele mês, tinha 0,50 cm de profundidade e 15 m de
largura. Diminuiu ainda mais acima de outro inesperado afluente da
margem brasileira: por suas águas negras, silenciosas, literalmente
cobertas pelas árvores das duas margens, chamou-lhe Tefé − Rio Triste.
Durante
a noite, os dois chefes fizeram observações para a Latitude. Carlos von
Hoonholtz, irmão de Tefé que o acompanhou em todas as incursões, e
agrimensor da Expedição, ficou encarregado de redigir e gravar a
inscrição para o monumento da delimitação. Tefé e Black puseram-se em
marcha com seus ajudantes e uma escolta de 8 imperiais marinheiros à
procura da verdadeira fonte. Levantaram o plano do Igarapé, indicando as
direções magnéticas por meio de uma bússola portátil; com o micrômetro
de Lugeol mediram a distância de uma curva para outra.
Ao
cabo de 8 milhas de caminhada sobre o lodo, com curtos ziguezagues, o
Igarapé perdeu-se num Igapó, terreno pantanoso a Leste e a Oeste. A
famosa nascente, a matriz do poderoso Javari ali estava em sua
insignificância; um pequeno lodaçal escorregadio, cuja água fugia sob os
pés dos expedicionários. Tantas lutas, fome, peste, sacrifícios de
vidas, para atingirem aquele fio de água antediluviano da lenda dos
Cataquinos!
Nesse
momento deve Tefé ter ficado com os sentidos bloqueados por uma
meditação sem palavras, que é o estado máximo da concentração
espiritual. O pensamento relampagueou em seu cérebro. Apagou-se.
Eram
4 horas da tarde. Os exploradores apressaram o passo, para atingir as
chalanas antes da noite. Traiçoeiramente, uma flecha zune no ar, raspa o
ombro de um marinheiro e se fixa na manga de sua camisa. No mesmo
momento, um grupo de índios, que se confundiam com as árvores, expedem
uma saraivada de flechas. Em retorno, uma descarga de fuzis. Os
selvagens fogem em disparada.
Don
Guilherme Black revelara-se digno sucessor de Paz Soldam: bravura e
sabedoria aliados ao mais alto grau de senso de imparcialidade e
justiça. De comum acordo, as Comissões deliberaram o seguinte:
1° O Peru nenhum direito possuía à margem direita do Madeira.
2°
A República do Peru no Tratado solene que celebrava com o Império do
Brasil estabelecia como limite entre ambos os Países todo o curso do
Javari, considerando, portanto, nulo o Artigo 9° do Tratado de Santo
Ildefonso, que fixava o Extremo Sul da fronteira do Javari ponto cortado
pela Linha Leste-Oeste, tirada a meia distância do Madeira, que é o
mesmo paralelo dos 7°4’ dos comissários de 1781. Na Ata da fixação do
marco definitivo, à margem direita do Javari (7°6’55”) indicando a
nascente do Rio, assinam por parte do Peru, todos os membros da
Comissão: Capitão-de-Fragata Guilherme Black, 4 oficiais de Marinha e 1
do Exército. Por parte do Brasil só a assinou Tefé, por haverem morrido
os outros membros graduados da Comissão.
Quando
a Expedição (que iniciou com 82 elementos) regressou dessa exploração,
perigosa mas fecunda, estava reduzida a 55 (27 sobreviventes e 55
mortos) figuras esquálidas, de barbas e cabelos crescidos e roupas
esfarrapadas. Com os que já tinham falecido em outros pontos do
Amazonas, ao todo, Tefé perdera 50 homens da equipagem, além de 3
ajudantes, o Secretário Dr. Ribeiro da Silva e seu adorado irmão Carlos
Guilherme von Hoonholtz, o primogênito da família (55 no total), que
após vencida a renhida luta ao regressar do Javari, dois dias apenas
antes da chegada, lhe expirara nos braços, morto sem diagnóstico
preciso, vitimado talvez pelo beribéri.
Como
sabemos, nascera Carlos no navio “Eólo” sobre as águas da Barra do Rio
Grande, em 1826, quando seu pai, o Capitão Frederico Guilherme von
Hoonholtz ia arriscar a vida em defesa do Brasil, e sua corajosa mãe o
seguiu de abarracamento em abarracamento, de campo militarizado em campo
militarizado, durante a Guerra da Cisplatina.
Competira-lhe
agora a vez de dar sua vida a serviço do Brasil. Voltava seu corpo às
águas, as do Javari, que ficaram sendo sua sepultura. Ainda uma vez se
afirmava o conceito de Chesterton: “O imprevisto é a única lei da
História”.
Gilbert Keith Chesterton:
escritor, poeta, narrador, ensaísta, jornalista, historiador, biógrafo,
teólogo, filósofo, desenhista e conferencista mais conhecido como G. K.
Chesterton, nasceu em Londres, no dia 29 de maio de 1874, e faleceu em
Beaconsfield, a 14 de junho de 1936. (Nota do Autor)
Após
cerca de três intermináveis anos no Alto Amazonas, por entre perigos,
pestes, imundícies, inimigos ferozes e mortes, Tefé reivindicara para o
Brasil uma extensíssima região não só de terras férteis como de sub-solo
prenhe de riquezas. Traçara uma abertura pelo Rio Javari de 2 000 km.
de travessia ao forçar a barreira humana formada pelas mais indomáveis
tribos selvagens, embrenhadas nas margens desse Rio. Seu feito é uma
epopéia. Epopéia seguida com ansiedade pelo Império todo através dos
seus diários publicados no “Jornal do Commercio”, embora com o atraso
normal em face da distância.
No
entanto que amarguras lhe traria dentro em pouco esse nobre feito, do
qual voltaria com a saúde abalada, mal podendo andar, mas de consciência
tranquila por haver tão bem cumprido a grande missão da qual
pessoalmente o revestira o Imperador. Pensando certamente nesse triste
regresso a Manaus e na dolorosa surpresa que aí o aguardava, escreverá
Tefé um dia muito mais tarde:
—
O que me atemoriza não é na vida ao ar livre (há certa originalidade na
colocação das palavras), a fúria do mar proceloso, o bramido das vagas,
as águas de um Rio coalhado de sangue, nem o rugir das feras nas
selvas. O que me atemoriza é a calmaria que antecede o bote dos
invejosos: a calúnia.
- Livro do Autor
O
livro “Desafiando o Rio-Mar – Descendo o Solimões” está sendo
comercializado, em Porto Alegre, na Livraria EDIPUCRS – PUCRS, na rede
da Livraria Cultura (http://www.livrariacultura.com.br) e na Associação
dos Amigos do Casarão da Várzea (AACV) – Colégio Militar de Porto
Alegre.
Para visualizar, parcialmente, o livro acesse o link:
Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil - RS (AHIMTB - RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional.
E-mail: hiramrs@terra.com.br
Blog: http://www.desafiandooriomar.blogspot.com
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