Fundação Lauro Campos - Qua, 10 de Fevereiro de 2010 10:47
Sergio Granja
Karl Marx: "Tudo que sei é que não sou marxista"
A frase foi dita pelo próprio Marx, a propósito "dos marxistas franceses do fim dos anos 70" (séc. XIX) que, segundo Engels, se serviam da concepção materialista da história como "pretexto para não estudar a história".1 E, ao que parece, a mania grassava um pouco por toda a parte:
"De um modo geral, a palavra 'materialismo' serve para muitos escritores novatos na Alemanha de simples frase com a qual se etiqueta toda espécie de coisas sem estudá-las antecipadamente, pensando que basta colar essa etiqueta para que tudo seja dito."
Contra isso, Engels adverte: "Ora, nossa concepção da história é, antes de tudo, uma diretiva para o estudo, e não uma alavanca para construções à maneira dos hegelianos."2
Para o parceiro de Marx, "o método materialista se transforma em seu contrário cada vez que se o emprega não como um fio condutor da investigação histórica, mas como um modelo pronto com a ajuda do qual se cortam e recortam os fatos históricos".3
Em outra ocasião, Engels esclarece o materialismo histórico do seguinte modo:
"[...] De acordo com a concepção materialista da história, o fator determinante na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu nunca afirmamos mais do que isso. Se alguém desnaturou essa posição no sentido de que o fator econômico é o único determinante, transformou-a assim em uma frase oca, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos elementos da superestrutura, as formas políticas da luta de classes e seus resultados - as constituições estabelecidas uma vez a batalha ganha pela classe vitoriosa, etc. -, as formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, concepções religiosas e seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticos, exercem igualmente sua ação sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, as determinam de maneira preponderante na forma. Há interação de todos esses fatores no seio dos quais o movimento econômico finalmente abre seu caminho como uma necessidade, através de uma multiplicidade infinita de contingências (quer dizer, de coisas e acontecimentos cuja ligação interna entre si é tão distante ou tão difícil de demonstrar que podemos considerá-las como inexistentes ou ignorá-las). Senão, a aplicação da teoria a qualquer período histórico seria, creio, mais fácil do que a resolução de uma simples equação do primeiro grau.
"Nós fazemos nossa história, mas de acordo com premissas e em condições muito bem determinadas. Entre todas, são as condições econômicas que são finalmente determinantes. Mas as condições políticas, etc., por vezes a própria tradição que assombra o cérebro dos homens, jogam igualmente um papel, se bem que não decisivo. São igualmente as causas históricas e, em última instância, econômicas que formaram o Estado prussiano e que continuaram a desenvolvê-lo. Mas dificilmente se poderia pretender, sem ser pedante, que, entre os numerosos pequenos Estados da Alemanha do Norte, seria precisamente o Brandebourg que estava destinado pela necessidade econômica, e ainda não por outros fatores (sobretudo por essa circunstância que, graças à posse da Prússia, o Brandebourg estava envolvido nos negócios poloneses e através deles implicado nas relações políticas internacionais, que são igualmente decisivas na formação da potência da Casa da Áustria), a se tornar a grande potência na qual se encarnou a diferença na economia, na língua e também, depois da Reforma, na religião entre o Norte e o Sul. Dificilmente se chegará a explicar economicamente, sem ser ridículo, a existência de cada pequeno Estado alemão do passado e do presente, ou ainda a origem da mutação consonantal do alto-alemão, que alargou a linha de partição geográfica constituída pelas cadeias de montanhas dos Sudetes ao Taunus, até fazer uma verdadeira falha atravessando toda a Alemanha.
"Mas, em segundo lugar, a história se faz de tal maneira que o resultado final resulta sempre dos conflitos de um grande número de vontades individuais, cada uma das quais, por seu turno, é feita tal qual é por uma multiplicidade de condições particulares de existência; há aí inumeráveis forças que se contra-arrestam mutuamente, um grupo infinito de paralelogramas de forças, do qual sai uma resultante - o acontecimento histórico - que pode ser vista, por sua vez, como o produto de uma força agindo como um todo, de maneira inconsciente e cega. Pois, o que cada indivíduo quer é impedido por cada outro e o resultado é alguma coisa que ninguém quis. É assim que a história tem se desenvolvido até nossos dias como se fosse um processo natural e submetida assim, substancialmente, às suas mesmas leis de movimento. Mas, em razão das diversas vontades - cada uma deseja o que impele sua constituição física e as circunstâncias exteriores, econômicas em última análise (ou suas próprias circunstâncias pessoais ou as circunstâncias sociais gerais) -, essas vontades não chegam ao que querem, mas se fundem em uma média geral, em uma resultante comum, não se tem o direito de concluir que elas são iguais a zero. Ao contrário, cada uma contribui para a resultante e, a esse título, está inclusa nela.
"Por outro lado, gostaria de suplicar que estudem essa teoria nas fontes originais e não de segunda mão; é verdadeiramente mais fácil. Marx raramente escreveu alguma coisa em que ela não jogue o seu papel. Mas, em particular, O 18 Brumário de Louis Bonaparte é um excelente exemplo de sua aplicação.. NoCapital, ela é revisitada seguidamente. A seguir, permito-me enviá-los igualmente a minhas obras: O Senhor Eugen Dühring subverte a ciência e Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, nas quais faço a exposição mais detalhada do materialismo histórico de que tenho conhecimento.
"É em parte de Marx e minha, a responsabilidade pelo fato de, às vezes, os jovens darem um peso maior do que o devido ao lado econômico. Face a nossos adversários, precisávamos sublinhar o princípio essencial negado por eles, e então nem sempre dispúnhamos do tempo, do espaço ou da ocasião de dar lugar aos outros fatores que participam da ação recíproca. Mas quando se tratava de apresentar um trecho da história, quer dizer, de passar à aplicação prática, a coisa mudava e não havia erro possível. Mas, infelizmente, acontece muito frequentemente que se acredite ter compreendido perfeitamente uma nova teoria e poder manejá-la sem dificuldade, desde que se tenha apropriado de seus princípios essenciais; e isso nem sempre é exato. Eu não posso eximir dessa recriminação a mais de um de nossos 'marxistas' recentes, e também é preciso dizer que se tem feito coisas singulares [...]"4
E Engels diz ainda:
"Ocorre com os reflexos econômicos, políticos e outros, assim como com os reflexos no olho humano, que eles atravessam uma lente convexa e, em consequência, adquirem uma forma invertida, de pernas pro ar. A única diferença é que falta um sistema nervoso que os reponha de pé na representação que se tem deles. O homem do mercado mundial só vê as flutuações da indústria e do mercado mundial sob a forma do reflexo invertido do mercado monetário e do mercado de valores, e então o efeito torna-se causa em seu espírito. Já vi isso em Manchester nos anos 40: para compreender a marcha da indústria, com suas máxima e mínima periódicas, o curso da bolsa de Londres era absolutamente inutilizável, porque esses senhores queriam explicar tudo pelas crises do mercado de dinheiro, que, entretanto, na maior parte do tempo, não eram mais do que sintomas. Tratava-se, então, de demonstrar que o nascimento das crises industriais não tinha nada a ver com uma superprodução temporária, e a coisa tomava, então, um caráter tendencioso, que incitava a falsificações. Hoje em dia, esse elemento desaparece - ao menos para nós, de uma vez por todas - e, por outro lado, é um fato que o mercado de dinheiro também pode ter suas próprias crises, para as quais as perturbações produzidas diretamente na indústria não jogam nenhum papel; nesse domínio, resta ainda muitas coisas a estabelecer e estudar, em particular no que concerne à história dos últimos vinte anos.
"Onde há divisão do trabalho em escala social, há também independência dos trabalhos parciais, uns em relação aos outros. A produção é o fator decisivo em última instãncia. Mas, ao mesmo tempo que o comércio dos produtos torna-se independente da produção propriamente dita, ele obedece a seu próprio movimento, que certamente o processo de produção, a grosso modo, domina, mas que, no detalhe, e no interior dessa dependência geral, não obedece menos a suas próprias leis, que têm sua origem na natureza desse fator novo. Ele possui suas próprias fases e reage, por seu lado, sobre o processo de produção."5
Na perspectiva da divisão social do trabalho, Engels faz uma autocrítica:
"[...] nos dedicamos inicialmente a deduzir as representações ideológicas - políticas, jurídicas e outras -, assim como as ações por elas condicionadas, dos fatos econômicos que estão na sua base, e tínhamos razão. Mas, considerando o conteúdo, fomos negligentes com a forma: a maneira pela qual se constituem essas representações, etc. [...]"
E, em seguida, esclarece sobre a ideologia.
"A ideologia é um processo que o dito pensador realiza com consciência, sem dúvida, mas com uma consciência falsa. As forças motrizes verdadeiras que o colocam em movimento permanecem desconhecidas para ele, se não esse não seria um processo ideológico. Também se imaginam forças motrizes falsas ou aparentes. Pelo fato de se tratar de um processo intelectual, deduz por aí o conteúdo e a forma do pensamento puro, quer seja de seu próprio pensamento ou o de seus predecessores. É exclusivamente um assunto dos materiais intelectuais; sem vê-los de mais perto, considera-se que esses materiais são provenientes do pensamente e não se ocupa de pesquisar se têm qualquer outra origem mais distante e independente do pensamento. Essa maneira de proceder é para si a própria evidência, pois todo ato humano realizando-se por intermédio do pensamento aparece em última instância fundado igualmente sobre o pensamento.
"O ideólogo historiador (historiador deve ser aqui um vocábulo coletivo para: político, jurista, filósofo, teólogo, breve, por todos os domínios pertencentes à sociedade e não somente à natureza) tem portanto em cada domínio científico uma matéria que se formou de maneira independente no pensamento de gerações anteriores e que evoluiu de maneira independente no cérebro dessas gerações sucessivas. Fatos exteriores pertencem, é verdade, a esse domínio ou, por outra parte, bem que podem ter contribuído para determinar esse desenvolvimento, mas esses fatos reconhecem tacitamente ser, não fossem, por sua vez, por eles mesmos, simples frutos de um processo intelectual, de sorte que continuamos a estar sempre no reino do pensamento puro que felizmente digeriu até mesmo os fatos mais cabeçudos.
"É essa aparência de história independente das constituições de Estado, dos sistemas jurídicos, das concepções ideológicas em cada domínio particular que cega, acima de tudo, a maior parte das pessoas."6
Essas citações foram retiradas do volume de correspondência de Marx e Engels. Sobre essa correspondência, Lênin diz que
"o rico conteúdo teórico do marxismo se desenvolve aí com uma clareza extraordinária, pois Marx e Engels retornam várias vezes em suas cartas aos aspectos mais diversos de sua doutrina, sublinhando e esclarecendo - às vezes discutindo e persuadindo um ao outro - os pontos mais recentes (em relação às visões anteriores), os mais importantes, os mais difíceis".7
Aqui, Lênin referfe-se ao marxismo como "doutrina", conceito que Engels preferiria evitar:
"Todavia, a concepção de Marx, em seu todo, não é uma doutrina, mas um método. Não fornece dogmas fechados, mas os pontos de partida para o estudo ulterior e o método para essa pesquisa."8
Pretendemos, futuramente, retornar à correspondência de Marx e Engels, com vistas a contribuir para o debate teórico e a formação intelectual dos leitores.
Notas:
1 Carta de Engels a C. Schmidt, 5 de agosto de 1890 (Correspondance: 448)
2 Idem: 449
3 Carta de Engels a P. Ernst, 5 de junho de 1890 (Correspondance: 446)
4 Carta de Engels a J, Bloch, 21-22 de setembro de 1890 (Correspondance: 452-454)
5 Carta de Engels a C. Schmidt, 27 de outubro de1890 (Correspondance: 454-455)
6 Carta de Engels a F. Mehring, 14 de julho de 1893 (Correspondance: 499-500)
7 LÉNINE, V. OEuvres, Paris-Moscou, t. 19, p. 593
8 Carta de Engels a W. Sombart, 11 de março de 1895 (Correspondance: 522)
Bibliografia:
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Correspondance (1844-1895), Moscou: Editions du Progrès, 1971.
* Citações traduzidas livremente do francês.
Sergio Granja é pesquisador da Fundação Lauro Campos
Convém lembrar que o então articulista karl Marx do Jornal Daily Tribune em 1853, foi defensor da ocupação britânica na India, e, dos EUA na sua guerra travada contra o México pela anexação da Califórnia e outros territórios. Belo exemplo de defensor da democracia (seguida ainda hoje por uma pseudoesquerda).
Quem abertamente se proclamou contrário a esse tipo de atitude foi Mikhail Bakunin, que foi expulso da 1ª Internacional Socialista (com pressão do profeta socialista) por demonstrar as idiotices proclamadas por Marx.
E assim caminha a esquerda marxista, neomarxista e agregados…
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