Com a sua cartola negra e fato coberto de medalhas, Kerr era a corporificação do império. Ele era o vice-rei australiano da Rainha da Inglaterra num país que ainda a reconhece como chefe de estado. Seus deveres eram cerimoniais, mas Whitlam estava inconsciente, ou preferiu ignorar, os antigos laços de Kerr com a inteligência anglo-americana.
resistir info - 19 mar 2014
O golpe esquecido
por John Pilger
O papel de Washington no putsch fascista contra um governo eleito na Ucrânia surpreenderá apenas aqueles que vêem os noticiários e ignoram o registo histórico. Desde 1945, dúzias de governos, muitos deles democracia, tiveram um destino semelhante, habitualmente com banhos de sangue.
A Nicarágua é um dos mais pobres países sobre a Terra, com menos população do que Gales, mas na década de 1980, sob os reformistas sandinistas, ela foi considerada em Washington como uma "ameaça estratégica". A lógica era simples; se o mais fraco escorregar, estabelecendo um exemplo, quem mais tentaria a sua sorte?
O grande jogo da dominância não dá imunidade nem mesmo ao mais leal "aliado" dos EUA. Isto é demonstrado por talvez os menos conhecido dos golpes de Washington – na Austrália. A história deste golpe esquecido é uma lição saudável para aqueles governos que acreditam que uma "Ucrânia" ou um "Chile" não podiam lhes acontecer.
A deferência da Austrália para com os Estados Unidos faz a Grã-Bretanha, em comparação, parecer um traidor. Durante a invasão americana do Vietname – a qual a Austrália implorou para aderir – um responsável em Canberra divulgou uma queixa rara a Washington: que os britânicos sabiam mais acerca dos objectivos estado-unidenses naquela guerra do que os seus camaradas de armas nos antípodas. A resposta foi suave: "Temos de manter os britânicos informados para mantê-los felizes. Vocês estão connosco aconteça o que for".
Esta declaração foi brutalmente posta de lado em 1972 com a eleição do governo trabalhista de Gough Whitlam. "Embora não considerado como de esquerda, Whitlam – agora com 98 anos – era um social-democrata independente, orgulhoso, proprietário e de extraordinária imaginação política. Ele acreditava que uma potência estrangeira não deveria controlar os recursos do seu país e ditar a sua política económica e externa. Ele propôs "recuperar o controle" e falar com uma voz independente a Londres e Washington.
No dia seguinte à sua eleição, Whitlam ordenou que a sua equipe não deveria ser "verificada ou perturbada" pela organização de segurança da australiana, ASIO – então, como agora, devedora de favores à inteligência anglo-americana. Quando seus ministros condenaram publicamente a administração Nixon/Kissinger como "corrupta e bárbara", Frank Snepp, um oficial da CIA naquele tempo estacionado em Saigon, disse posteriormente: "Disseram-nos que os australianos podiam muito bem ser encarados como colaboradores dos norte vietnamitas".
Whitlam quiz saber se e porque a CIA estava a dirigir uma base de espionagem em Pine Gap, próximo de Alice Springs, ostensivamente uma instalação conjunta australiana/americana. Pine Gap é um aspirador de pós gigante o qual, como revelou recentemente o denunciante Edward Snowden, permite aos EUA espiar sobre tudo. Na década de 1979, a maior parte dos australianos não fazia ideia de que este enclave estrangeiro secreto colocava seu país na linha de frente de uma potencial guerra nuclear com a União Soviética. Whitlam sabia claramente o risco pessoal que estava a assumir – como demonstram as minutas de uma reunião com o embaixador dos EUA. "Tente apertar-nos ou fazer-nos saltar", advertiu ele, "[e Pine Gap] tornar-se-á um pomo de discórdia".
Victor Marchetti, o oficial a CIA havia ajudado a montar Pine Gap, contou-me depois: "Esta ameaça de fechar Pine Gap provocou apoplexia na Casa Branca. As consequências eram inevitáveis ... uma espécie de Chile foi posto em movimento".
A CIA havia acabado de ajudar o general Pinochet a esmagar o governo democrático de outro reformador, Salvador Allende, no Chile.
Em 1974, a Casa Branca enviou Marshall Green para Canberra como embaixador. Green era um arrogante, uma figura muito experiente e sinistra no Departamento de Estado que trabalhava nas sombras do "estado profundo" ("deep state") da América. Conhecido como o "mestre do golpe", ele havia desempenhado um papel central no golpe de 1965 contra o presidente Sukarno na Indonésia – o qual custou um milhão de vidas. Um dos seus primeiros discursos na Austrália foi ao Australian Institute of Directors – descrito por um membro alarmado da audiência como "um incitamento aos líderes de negócios do país a levantarem-se contra o governo".
As mensagens top-secret de Pine Gap eram descodificadas na Califórnia por um empreiteiro da CIA, a TRW. Um dos descodificadores era o jovem Christopher Boyce, um idealista que, perturbado pelo "engano e traição de um aliado", se tornou um denunciante. Boyce revelou que a CIA havia-se infiltrado na elite política e sindical australiana e referia-se ao governador geral da Austrália, sir John Kerr, como "o nosso homem Kerr".
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Em 1975, Whitlam descobriu que o MI6 britânico desde há muito estava a operar contra o seu governo. "Os britânicos estavam realmente a descodificar mensagens secretas vindas ao meu gabinete de negócios estrangeiros", disse ele posteriormente. Um dos seus ministros, Clyde Cameron, contou-me: "Sabíamos que o MI6 plantava microfones na reuniões do gabinete para os americanos". Em entrevistas na década de 1980 com o jornalista americano de investigação Joseph Trento, responsáveis executivos da CIA revelaram que o "problema Whitlam" fora discutido "com urgência" pelo director da CIA, William Colby, e o chefe do MI6, sir Maurice Oldfield, que foram feitos "arranjos". Um vice-director a CIA disse a Trento: "Kerr fez o que lhe disseram para fazer".
Em 1975, Whitlam soube de uma lista secreta de pessoal da CIA na Austrália mantida pelo chefe do Australian Defence Department, sir Arthur Tange – um mandarim profundamente conservador com um poder territorial sem precedentes em Canberra. Whitlam pediu para ver a lista. Sobre ela esta o nome, Richard Stallings que, sob cobertura, havia montado Pine Gap como uma instalação provocadora da CIA. Whitlam agora tinha a prova de que estava à procura.
Em 10 de Novembro de 1975, foi-lhe mostrada uma mensagem telex top secret enviada pelo ASIO em Washington. Esta provinha de Theodore Shackley, chefe da Divisão da Ásia Oriental da CIA e uma das mais infames figuras desovadas pela Agência. Shackley fora chefe da operação da CIA com base em Miami para assassinar Fidel Castro e chefe de estação no Laos e no Vietname. Ele havia recentemente trabalhado no "problema Allende".
A mensagem de Shackley foi lida a Whitlam. Incrivelmente, ela dizia que o primeiro-ministro da Austrália era um risco de segurança no seu próprio país.
No dia anterior Kerr havia visitado a sede do Defence Signalas Directorate, o NSA da Austrália cujos laços com Washington eram, e permanecem, estreitos. Ele foi informado sobre a "crise de segurança". Ele pediu então uma linha segura e passou 20 minutos a conversar em voz baixa.
Em 11 de Novembro – o dia que Whitlam devia informar o Parlamento acerca da presença secreta da CIA na Austrália – foi convocado por Kerr. Invocando a arcaica "reserva de poderes" do vice-rei, Kerr demitiu o primeiro-ministro democraticamente eleito. O problema estava resolvido.
17/Março/2014O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/2014/03/17/the-forgotten-coup/
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