"O governo Lula aparece numa encruzilhada. O continuísmo da era FHC no primeiro mandato manchou as esperanças da mudança. Porém, reeleito por assistir aos desassistidos, o presidente iniciou esforços com o PAC e reforçou os programas de distribuição de renda, incluindo aí a Previdência e o salário mínimo", escreve Ricardo Luiz Chagas Amorim, professor da Universidade Mackenzie, pesquisador ligado ao Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), membro da Sociedade Brasileira de Economia Política e autor, com outros pesquisadores, da série "Atlas da Exclusão Social no Brasil", em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, -08-2007. Segundo ele, "o problema é saber se estamos ante um governo capaz de evitar a sangria de bilhões em juros pagos aos mais ricos e se ele vencerá o desastroso neoliberalismo à brasileira".
Eis o artigo.
"O Brasil dos anos 1980 não era para principiantes. Aqueles anos não foram só de crise ou difíceis. Ali se modificou algo mais profundo e grave para o futuro do país. A esperança do Brasil grande, país do futuro, a segurança com que se olhava o porvir e o quase atrevimento ao enfrentar pressões estrangeiras, de um momento para o outro, viraram fumaça e quase uma culpa.
A partir dali, passamos a duvidar de nós, da capacidade do país progredir, da nação. O Estado, guia daquele progresso, viu-se endividado e enfraquecido. Houve incerteza sobre o destino antes declarado e desapareceu o projeto nacional. A análise, levada a cabo pelo ex-ministro Reis Velloso ("O Último Trem para Paris)", mostra a perplexidade do Brasil ao viver a primeira crise importante após décadas de elevado crescimento.
Contudo, cabe reparar que, por trás desse sentimento, havia grupos sociais fortes que reagiam aos constrangimentos da vida nacional empurrando o país na direção do seu interesse.
Esses grupos fortes eram os proprietários do capital e da mídia, capazes de espalhar suas idéias, desejos e visões de mundo por toda a sociedade. Ao formarem opinião, legitimavam sua aspiração, que passava a traduzir-se em "vontade nacional" - um formato ideológico para seus desejos.
Assim, divergindo do ex-ministro Velloso, o que se divisou à época foi a perplexidade desses proprietários que percebiam desmoronar um arranjo social que lhes garantia lucros e ganhos claramente sustentados nos gastos e investimentos do Estado.
Em outras palavras, 1980 assistiu ao esgotamento - talvez precoce - do processo de substituição de importações apoiado e dirigido pelo Estado.
Ali, após forte endividamento e em meio a conturbada transição política, o Estado se viu inerte e pesado, abrindo espaço para a crítica oportunista e o renascimento de um pensamento liberal muito especial: o neoliberalismo à brasileira. Ou seja, um neoliberalismo que buscava apenas o desmonte de uma ordem que não mais permitia a continuidade dos lucros anteriores e, portanto, já não agradava as camadas proprietárias do país.
Em outras palavras, os evocados princípios liberais eram só uma desculpa que não ia além dos editoriais jornalísticos e do palavrório dos discursos. Todo o necessário contraponto liberal-conservador formado pela igualdade de oportunidades, pelo rigor da lei pairando sem distinção sobre todos e pela fundamental democratização do poder para além do voto foram esquecidos. Os privilégios e a perpetuação do status quo, repisando os sobrenomes aquinhoados de sempre, não foram questionados.
A repetição constante de discursos e reportagens sobre a "ineficiência do Estado" e seu "elevado custo" transmutou o mantra em "verdade". O que ainda manteve o Estado com força naquele momento crítico foi a emergência do combate à inflação e a delicadeza da transição política. Mas foi nos anos 1990 que o neoliberalismo à brasileira se materializou. Primeiro com Fernando Collor e, depois, com Fernando Henrique, o Brasil viveu importantes transformações de corte neoliberal que, longe de reforçar a produção e o progresso social, consolidaram um novo padrão de capitalização no país, crescentemente financeiro e menos produtivo. Os investimentos produtivos privados, por exemplo, se estabilizaram bem abaixo do pico do final dos anos 1980, abrindo um novo caminho para obtenção de lucros por meio dos ganhos financeiros.
Isso é novo? Não. Os ricos até os anos 1980 dependiam do planejamento e da indução econômica dos gastos do Estado para garantir seus lucros. Agora, quando fazem cara feia para eles, escondem que ainda precisam do Estado.
É o Estado que continua a alimentar a acumulação de capital, mas de uma forma cada vez mais líquida, menos presa a máquinas e equipamentos. Hoje, os ganhos dos grandes proprietários são sustentados não pela demanda de bens e serviços, mas pelos volumosíssimos juros pagos pelo erário aos donos da dívida pública. De outra maneira, Sérgio Buarque de Holanda ("Raízes do Brasil") já falava sobre a apropriação que as elites fazem do Estado em benefício próprio.
É nesse ponto que o governo Lula aparece numa encruzilhada. O continuísmo da era FHC no primeiro mandato manchou as esperanças da mudança. Porém, reeleito por assistir aos desassistidos, o presidente iniciou esforços com o PAC e reforçou os programas de distribuição de renda, incluindo aí a Previdência e o salário mínimo. O problema é saber se estamos ante um governo capaz de evitar a sangria de bilhões em juros pagos aos mais ricos e se ele vencerá o desastroso neoliberalismo à brasileira."
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