"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

terça-feira, outubro 23, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 20/10/07

O futuro do trabalho. Artigo de Gilberto Dupas

"O trabalho remunerado, atividade essencial ao engajamento econômico e social do ser humano na sociedade, está em crise", constata Gilberto Dupas, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 20-10-2007. Segundo ele, "o emprego será cada vez mais voltado para tarefas ou projetos de duração definida". Trata-se- segundo Dupas, de uma "mudança radical".

Eis o artigo.

"O trabalho remunerado, atividade essencial ao engajamento econômico e social do ser humano na sociedade, está em crise. O capitalismo global contemporâneo trocou lealdade por produtividade imediata e acabou com a época dos relógios de ouro como prêmio por logo tempo de dedicação. Ninguém mais tem emprego de longo prazo garantido na sua atual empresa. As próprias capacidades individuais, adquiridas por estudo ou experiência, sucateiam a cada oito a dez anos. O emprego será cada vez mais voltado para tarefas ou projetos de duração definida.

É uma mudança radical em relação ao fim dos anos 1960, quando os indivíduos eram enraizados em sólidas realidades institucionais nas suas corporações, que, por sua vez, navegavam em mercados relativamente firmes. Na época dourada do capitalismo do pós-guerra, quando matérias-primas entravam por uma ponta e automóveis saíam prontos por outra, vigorava uma certa “ética social” que domava a luta de classes e garantia - mais na Europa, mas também nos Estados Unidos - benefícios como educação, saúde e pensões por aposentadoria, considerados então direitos universais. A partir dos anos 1980, com a globalização dos mercados, as corporações e seus investidores ficaram mais preocupados com os lucros a curto prazo e os empregos começaram a cruzar rapidamente as fronteiras. E, com os avanços da tecnologia de informação, tornou-se mais barato investir em máquinas do que pagar a pessoas para trabalharem.

Richard Sennett, da London School of Economics, entrevistou naquela época operários da classe média que se encontravam no epicentro das indústrias de alta tecnologia, dos serviços financeiros e dos meios de comunicação. Grande número deles considerava que sua vida estava agora em risco permanente. A tendência era aceitar essas mudanças estruturais com resignação, como se tivessem caráter inevitável, no que acertaram em cheio.

O novo capital é impaciente, avalia resultados mais pelos preços das ações que pelos dividendos. A esses investidores o que interessa é a capacidade das empresas de serem flexíveis como um MP3, com a seqüência de produção podendo ser alterada à vontade e terceirizando tudo sempre que possível. Sennett vê a tendência para o futuro dos empregos como contratos de três ou seis meses, freqüentemente renovados. A conseqüência já se faz sentir. O trabalho temporário é o setor de mais rápido crescimento da força de trabalho nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. E já representa 25% da mão-de-obra empregada nos Estados Unidos.

Numa organização flexível como os investidores gostam, o poder ocupa uma posição quase virtual; estabelece as tarefas, avalia os resultados e promove a expansão ou o encolhimento da empresa. O objetivo é obter os melhores resultados com a maior rapidez possível. Das várias equipes encarregadas das tarefas, estabelecem-se prêmios apenas para a de melhor desempenho. Sennett lembra que é um jogo de tudo ou nada que mantém alto nível de ansiedade e baixa lealdade institucional. A desigualdade no interior das empresas aumenta; as remunerações são muito altas para os executivos bem-sucedidos e muito baixas para os trabalhadores.

O melhor exemplo é o Wal-Mart, a maior empresa em faturamento do mundo, que utiliza alta tecnologia e paga próximo da linha de pobreza ao grosso de seus funcionários. Compare-se com os empregos estáveis e com boa remuneração que a grande indústria norte-americana do pós-guerra (Ford, GM, GE e outras) gerava, o que possibilitou a estruturação da sólida classe média do país. Hoje tudo mudou. O dia de trabalho se prolonga pelos períodos de descanso, a pressão torna-se mais depressiva que estimulante.

Em suas pesquisas de campo, Sennett constatou que nessa situação, em que a lealdade à instituição não pode ser construída, se gera maior propensão ao alcoolismo, ao divórcio e aos problemas de saúde. No nível mais baixo dos empregos flexíveis imperam os chamados Mc-empregos - fritar hambúrgueres ou atender em lojas - ou os postos de atendentes de telemarketing. Essas ocupações podem parecer um fator positivo de acesso para jovens sem habilitação. Mas logo se transformam num beco sem saída. Na verdade, muitos empregos braçais na área de serviços deixaram de ser atraentes para os jovens e essas tarefas são executadas por absoluta falta de alternativa. Nos países desenvolvidos, em geral são entregues a imigrantes, que dão maior valor ao dinheiro momentâneo do que à estabilidade e à qualidade do trabalho.

Sennett constatou que a maior aspiração dos trabalhadores temporários é que alguém os queira em caráter permanente. A gratificação postergada em nome de objetivos pessoais de longo prazo sempre foi a mola propulsora da “ética protestante do capitalismo” de Weber e o segredo de sua “jaula de ferro”. O novo paradigma zomba da gratificação postergada. A erosão da ética protestante não se dá, ao contrário do que pensa Huntington, pela contaminação de raças latino-americanas “inferiores”, mas pela própria lógica do sistema que destrói lealdades. A geração anterior pensava em termos de ganhos estratégicos de longo prazo, ao passo que para a atual só sobram pequenas realizações imediatas. As pessoas pertencentes às classes média e alta ainda podem dar-se ao luxo de correr esses riscos e viver essas tensões à espera de uma boa oportunidade. Mas os jovens de classe baixa são muito mais dependentes das relações estáveis por terem uma rede de proteção frágil e poucos contatos e conexões importantes.

Como se vê, o pujante e vencedor capitalismo global tem seu calcanhar-de-aquiles na má qualidade e na pouca quantidade dos empregos que gera. O próximo artigo continuará aprofundando esse complicado paradoxo."

Para ler mais:

Progresso: como mito ou ideologia de Gilberto Dupas. Cadernos IHU Idéias, no. 77, 5-06-2007. A edição está disponível para download na página do IHU.

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