Tão bárbaros como Bush
Junto com a onda do fundamentalismo islâmico, surgiu uma onda de pan-arabismo racista e totalitário − e, ao menos num caso, genocida. O sinal mais trágico nesse sentido vem do Darfur, onde, como se sabe, bandos armados de etnia árabe estão perpetrando um verdadeiro genocídio das populações de origem africana. O Darfur é o caso mais terrível: mas denúncias graves de racismo e opressão das minorias não-árabes surgem em muitos outros Países, desde a Somália até a Argélia.
As duas ondas, de fundamentalismo e de racismo pan-árabe, são ligadas, paralelas, sincrônicas, e muitas vezes elas se justificam uma à outra. A implementação forçosa e brutal do Corão e dos preceitos salafistas reforçam e, muitas vezes, justificam a aniquilação cultural, social e espiritual de outros povos e, nos casos mais graves, até a eliminação física.
No caso do Darfur, a matriz racista é claríssima, embora seja misturada com a disputa (econômica) pela posse do território. As tribos árabes nômades do deserto sudanês estão tentando (e conseguindo, graças à inércia e ao descaso internacional) massacrar e expulsar de suas terras as tribos negras de cultivadores, com o apoio − ou no mínimo a complacência − do governo central de Kartum, que barra as iniciativas internacionais de socorro. Há uma tentativa clara de fazer daquela região uma área só árabe. Nenhum governo árabe se manifestou a respeito. Em compensação, o intelectual palestino Khaled al-Kharoub escreveu no jornal Al-Ittihad (Emirados Árabes) um artigo intitulado: “Os árabes e a indiferença racista a respeito da tragédia no Darfur”. “Nenhum árabe”, escreve al-Kharoub “pode se declarar inocente da indiferença racista em relação aos crimes contra a humanidade cometidos no Darfur, nos últimos quatro anos, bem diante dos olhos de árabes e muçulmanos. A maioria de nós contenta-se em repetir o velho chavão da conspiração ocidental ou israelense contra o Sudão”.
Na Somália, os senhores da guerra islamistas estão implementando o wahabismo da forma mais brutal, deturpando a cultura somali e forçando a transformação de um país africano numa “colônia” arabizada sem nenhuma ligação com as raízes da população, onde os árabes são uma pequena minoria.
As belas mulheres somális soterradas sob camadas de tecidos
Vejam o que escreve o jornalista somali Bashir Goth: “Os islamistas estão com um programa grandioso para o nosso país. Arabizar completamente a Somália e a transformar num emirado árabe e islâmico. Os senhores da guerra empregam a força bruta para obrigar as pessoas a adotar costumes e crenças que não são as suas e desumanizá-las. Para ver a o que querem fazer com nosso povo, é só ver como os islamistas tratam as mulheres somális, nossa música e nossas idéias. Esses três elementos constituem a beleza, o espírito e o futuro de qualquer nação. Pois então, as belas mulheres somális, que sempre foram exaltadas por seus turbantes e trajes magníficos, agora estão escondidas debaixo de camadas e camadas de tecidos. Querem mumificá-las, da mesma forma que mumificaram as mulheres árabes. Nossa música se tornou proibida, o cinema e o teatro também, e quem expressa idéias diferentes da interpretação satânica do Corão dos clérigos salafistas é morto ou deve se expatriar. Os campos de refugiados do Quênia estão cheios de somalis que se recusam a ser transformados forçosamente em árabes”.
Belkacem Lounes, presidente do Congresso Mundial Amazigh [1], denuncia da mesma forma as tentativas de aniquilação do povo e da cultura berberes na Argélia, Tunísia, Marrocos e Líbia, para que se tornem países exclusivamente árabes. “Não há pior colonialismo que o colonialismo interno, como aquele do clã pan-arabista que tenta colonizar os 30 milhões de berberes em todo o Maghreb, e fazê-los esquecer de suas raízes e de sua identidade. Estamos enfrentando o arabismo, isto é, uma ideologia imperialista que recusa qualquer diversidade na África do Norte e representa uma traição e uma ofensa à história, à verdade e à legalidade”, escreveu Lounes. “Até a religião islâmica foi colocada ao serviço desses projetos de arabização e dominação da maioria árabe sobre a minoria berbere. A rainha Amazigh Dihya, no século 14, foi a primeira a entender essa estratégia colonialista árabe. Quando os árabes atacaram seu reino, ela disse para os enviados árabes muçulmanos que pediam sua conversão e rendição: “Estão dizendo que são portadores de uma mensagem divina? Muito bem, deixem-na conosco e voltem de onde vieram.”
Argélia: desprezo aos berberes que lutaram pela independência
O movimento Amazigh (Tafsut n’Imazighen) de resistência surgiu em março de 1980, quando o governo da Argélia proibiu Mouloud Mammeri, escritor, lingüista e ícone cultural da Kabília berbere, de lecionar sobre a antiga poesia berbere na universidade de Tizi Ouzo, “capital” da Kabília. A intervenção de Argel deflagrou uma série de protestos que durou meses, e culminou com a prisão dos principais líderes e ativistas berberes argelinos e a proibição de qualquer atividade ligada à identidade Amazigh.
Lounes lembra, também, que quando os berberes colocaram a questão da identidade argelina, depois da independência do país da colonização francesa, dentro do movimento nacional argelino, os clãs nacionalistas árabes os acusaram imediatamente de querer dividir o movimento e de fazer o jogo dos colonizadores. “Mas eles se transformaram, depois, em colonizadores ainda piores, porque os franceses nunca negaram nosso direito à identidade e à cultura Amazigh”, diz o presidente do Congresso Mundial Amazigh.
Segundo a entidade, há, também, no Marrocos, uma forte repressão de tudo o que não é árabe e uma ingratidão em relação aos berberes que lutaram contra os espanhóis e os franceses, nas lutas de liberação. Na Líbia, o coronel Kaddafi chegou a negar até a existência de berberes no país, suscitando protestos e revolta dos Amazigh, apesar da repressão do exército líbio.
Um racismo árabe que nunca existiu antes, como mostra a História
Em outros países, fundamentalistas ou com forte presença fundamentalista, como Afeganistão e Paquistão, a arabização não passa pela eliminação das minorias — até porque não há maioria árabe — mas pela imposição da mentalidade, dos preceitos e da sub-cultura salafita saudita, por meios dos clérigos e dos militantes wahabitas que foram doutrinados na Arábia Saudita, e que se tornaram mais árabes que os próprios árabes.
Como disse Lounes, a negação das diversidades nos países árabes e a arabização dos países não-árabes são mais um aspecto do totalitarismo no qual se baseia o fundamentalismo islâmico. O salafismo e o taqfirismo, com seu desprezo absoluto pelos valores humanos, pela cultura (própria e dos outros) e pelo passado (verdadeiro, não aquela pureza primitiva que eles fantasiam) são, provavelmente, a razão principal do surgimento desse racismo árabe, que nunca existiu antes, como mostra claramente a história dos povos árabes. Tudo isso, aliás, não é muito distante nem muito diferente do anti-semitismo hiperbólico de extremistas como Sayyd Qutb ou de fascistas religiosos como o presidente iraniano Ahmadinejjad, e na verdade faz parte, de forma mais ampla, do fundamentalismo intolerante e violento que ameaça o mundo nas últimas décadas — seja o de George W. Bush, o das seitas evangélicas ou o do Hamas.
[1] Amazigh é o termo usado pelos próprios berberes para se referir a si mesmos. Na língua berbere, significa ‘aquele que é livre’.
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