Com o tempo, amadureceu em Naomi Klein “a convicção de que o capitalismo do século XX apresentava robustos elementos de continuidade, mas também de descontinuidade”, conta Benedetto Vecchi, crítico cultural italiano e que colabora regularmente com o jornal comunista italiano Il Manifesto. “A continuidade vinha do Estado de Bem-estar, em suas diversas traduções nacionais, e de uma relação de dominação de alguns países fortes sobre outros mais ‘frágeis’, usados precisamente como laboratórios de experimentação de políticas econômicas prejudiciais (...) O difícil, ao contrário, era perfilar as descontinuidades. E são precisamente as descontinuidades que centram a atenção de Naomi Klein”, escreve Vecchi.
Benedetto Vecchi faz uma resenha do último livro de Naomi Klein, Shock Doctrine (A Doutrina do Choque), ainda sem tradução para o português. Nele, diz o resenhista, Naomi Klein procura desvelar “um trust de empresas cujo negócio consiste no esvaziamento do Estado de qualquer função, inclusive a da guerra”. Esse é o nascimento daquilo que a autora chama de “Estado corporativista”, ou seja, uma elite restrita que passa de uma empresa a cargos públicos sem o menor respeito às normas liberais contra o conflito de interesses. O “capitalismo dos desastres” só pode continuar renovando a insegurança social.
No livro, Klein faz uma reconstrução das carreiras políticas, dos vínculos de amizade, das relações de homens de negócios muito interessante. Naomi Klein é autora de Sem Logo. A tirania das marcas em um planeta vendido (2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002). A resenha de Benedetto Vecchi foi publicada no sítio La Haine, 26-09-2007. A tradução é do Cepat.
Segue a íntegra da resenha de Benedetto Vecchi.
Uma coisa é certa. Naomi Klein, depois do sucesso de Sem Logo, não ficou de braços cruzados. Pôs-se novamente na estrada, visitando ou vivendo por breves períodos na Argentina, Brasil, África do Sul, Chile, Bolívia, Iraque, Sri Lanka, Tailândia, Líbano, Rússia e, não custa dizê-lo, nos Estados Unidos. A partir desses países enviou reportagens e nesses países entrevistou economistas e ativistas para jornais como The Guardian, The Nation ou o The New York Times. Ao mesmo tempo, acumulou informações sobre as mudanças operadas no neoliberalismo depois do ataque ao World Trade Center nova-iorquino do 11 de setembro, seis anos atrás.
Com o passar do tempo, no entanto, amadureceu nela a convicção de que o capitalismo do século XX apresentava robustos elementos de continuidade, mas também de descontinuidade, sobre os elementos que a ensaísta contemporânea chama de os Trinta Gloriosos, ou seja, o período de desenvolvimento econômico e social que se seguiu à 2ª Guerra Mundial, que viu surgir em muitos países a presença reguladora do Estado na economia e na vida social.
A continuidade vinha do Estado de Bem-estar, em suas diversas traduções nacionais, e de uma relação de dominação de alguns países fortes sobre outros mais “frágeis”, usados precisamente como laboratórios de experimentação de políticas econômicas prejudiciais que no potente Norte teriam encontrado não poucas resistências por parte das forças sindicais e políticas do movimento operário e de outros movimentos sociais. O difícil, ao contrário, era perfilar as descontinuidades. E são precisamente as descontinuidades que centram a atenção de Naomi Klein.
A constelação neoliberal
O resultado é um livro que pode ser lido como uma contra-história do neoliberalismo contemporâneo. Seu título, Shock Doctrine (A doutrina do choque), introduz imediatamente na tese do volume: as crises – econômicas, sociais ou políticas – e as catástrofes ambientais são usadas para introduzir reformas neoliberais que levaram à demolição do Estado de Bem-estar.
O livro entra, para começar, no coração da Guerra Fria. Naqueles anos, o futuro prêmio Nobel de Economia Milton Friedman começa a urdir seu tecido para construir uma rede intelectual de pesquisadores favoráveis ao livre mercado. É um economista brilhante, mas suas propostas a favor da demolição da intervenção estatal na sociedade e na economia são muito “extremistas” em relação ao que as empresas e o governo de Washington fazem. Contudo e com isso, seu centro de pesquisa recebe financiamento de fundações privadas e do governo. Milton Friedman sustenta, já então, que as crises podem ser usadas para uma “terapia de choque” a favor do livre mercado.
Milton Friedman se converte no agit-prop do neoliberalismo, ao passo que seus discípulos são enviados pelo mundo inteiro em missão de proselitismo. Suas receitas acabarão se convertendo em programas de política econômica no Chile, Paraguai, Argentina, Brasil, Guatemala, Venezuela. Há um pequeno problema. São programas aplicados com carros blindados nas ruas e tortura sistemática nas prisões, enquanto o número de desaparecidos chega a ser tão alto que nem sequer os meios de comunicação norte-americanos podem ignorá-lo.
A parte do livro que fala dos anos 60 e 70 conta a história dos golpes de Estado e do uso sistemático da violência contra os opositores políticos, e pode parecer um dejà vu de histórias conhecidas há muito tempo. Mas Naomi Klein o apresenta como a primeira crise do neoliberalismo. Chile, Argentina e Paraguai são laboratórios em que se enriquecem muitas transnacionais norte-americanas, às quais se permite que se apropriem de muitas matérias-primas e abram novos mercados para seus produtos. Uma espécie de renovada acumulação primitiva deslocalizada fora das fronteiras nacionais. Por isso, vale a pena financiar, em consonância com Washington, o terrorismo de estado chileno, argentino, brasileiro e paraguaio. E é precisamente nesse período que a rede intelectual tecida por Friedman se consolida e se estende ao mesmo tempo.
Torna-se impressionante o trabalho feito por Naomi Klein de reconstrução das carreiras políticas, os vínculos de amizade, as relações de homens de negócios – de Dick Cheney a Donald Rumsfeld, de John Ashcroft a Domingo Cavallo, de Michel Camdessus a Paul Bremen, a Paul Wolfowitz e à família Bush – que passam de um conselho de administração de alguma transnacional à direção de um think thank neoliberal, de postos de responsabilidade em algum governo aos despachos do Banco Mundial ou do FMI.
A história contada até agora é conhecida fora dos Estados Unidos. Naomi Klein sabe disso, mas também está consciente de que nos Estados Unidos é história conhecida ou desvelada só para uma minoria de ativistas ou intelectuais radicais. Daí sua obra de sistematização das informações antes de passar a contar a segunda onda neoliberal, que tem, como a primeira, um apóstolo. É outro economista, chama-se Jeffrey Sachs e quer demonstrar que o livre mercado, diferentemente do que pareceu ser o caso na América Latina, não é incompatível com a democracia. É um autêntico “evangelista do capitalismo democrático” e vê na queda da União Soviética e do socialismo real a melhor oportunidade para conciliar a democracia com as “leis naturais” do mundo dos negócios. Aconselha – e é ouvido – a Polônia de Lech Walesa e a Rússia de Boris Yeltsin a procederem a uma desregulação radical de suas economias. Sua receita será um fracasso, mas nesse momento sua “terapia de choque” encontra um valioso aliado num FMI já definitivamente depurado de economistas vinculados ainda às teorias de Lord Maynard Keynes.
A dívida será a arma vencedora empregada pelos neoliberais, que concederão empréstimos só na condição de que se resregularize completamente a economia. É o chamado Consenso de Washington, são seu corolário de “programas de ajuste estrutural”. Como no passado, as transnacionais nadarão em ouro, mas Sachs, assim como os outros “evangelistas do livre mercado”, sustenta que o que agora convém fazer é colocar em leilão todas as atividades produtivas e os serviços sociais gestionados pelo Estado, ainda que às custas do sacrifício de centenas de milhares de postos de trabalho sobre o altar da competitividade internacional. A pobreza, não deixam de repetir, é um efeito colateral que, no entanto, acabará sendo esclarecido pela mão invisível do mercado.
A “terapia do choque” se nutre de estratégias de marketing, propaganda e falsificação de dados, tratando de demonstrar que o livre mercado é a única via para escapar da decadência econômica e da pobreza em massa. Mas o consenso tem que ser conquistado eleitoralmente, mesmo se isso pode chegar a diminuir o ritmo das “reformas”.
A política woodoo
Para remover esse obstáculo há uma estratégia bem provada durante a “guerra da dívida” na América Latina: criar o pânico, para em seguida pressionar a fim de que se adotem “terapias” econômicas neoliberais. O Banco Mundial e o FMI se convertem então em instituições supranacionais adaptadas ao objetivo de limitar a soberania popular e privar os governos nacionais de qualquer autonomia em termos de tomada de decisões. Os programas econômicos são, pois, confeccionados em Washington, mas sua aplicação in situ vem garantida por pessoal político “fiel à linha”. Naomi Klein mostra documentalmente como mesmo as crises asiáticas dos anos 90 tiveram como protagonistas o Banco Mundial e o FMI, que orquestraram conscientemente a crise financeira a fim de demolir qualquer presença estatal na economia. E quando a Tailândia, Filipinas, Malásia, Indochina e Coréia do Sul capitularam frente ao FMI, um “Chicago boy” escreveu uma coluna no Financial Times comparando a revolução do livre mercado na Ásia com uma “segunda queda do Muro de Berlim”.
Na América Latina a situação é diferente. As ditaduras começaram a cair uma após outra e subiram ao poder muitas coalizões de centro-esquerda. É a era, afirma Naomi Klein, da política woodoo, caracterizada por programas eleitorais keynesianos e sucessivas políticas econômicas rigidamente neoliberais.
O complicado novelo que Naomi Klein pacientemente desfia mostra não tanto um comitê de negócios da burguesia, quanto um trust de empresas cujo negócio consiste no esvaziamento do Estado de qualquer função, inclusive a da guerra. É o nascimento do “Estado corporativista”, como o define a autora, onde uma elite restrita passa de uma empresa a cargos públicos sem o menor respeito às normas liberais contra o conflito de interesses. O “capitalismo dos desastres” só pode continuar renovando a insegurança social. O 11 de setembro é, deste ponto de vista, um maná para os neoliberais. A “guerra do terror” se converte assim na retórica atrás da qual ocultar a venda da defesa nacional às empresas privadas e o pleno controle do petróleo.
Com a invasão do Afeganistão e do Iraque, o warfare, ou seja, o uso da guerra para relançar a economia, se elevou a sistema, porque a guerra ao terror é uma guerra total que implica não apenas o setor militar, mas a sociedade inteira. Iluminador a este respeito é o capítulo que a jornalista canadense dedica a Israel, fazendo do desenvolvimento da indústria high-tech da segurança e da chegada dos hebreus do leste europeu depois da queda do Muro de Berlim duas das chaves interpretativas – não as únicas – da passagem de uma hipótese de paz com os palestinos ao funesto passeio de Ariel Sharon pela esplanada das mesquitas que provocou a segunda Intifada. Os fugitivos do leste europeu puderam substituir a força de trabalho palestina de baixo custo, ao passo que as empresas high-tech puderam oferecer seus produtos ao mundo inteiro, visto que a guerra ao terror é a guerra da civilização ocidental contra seus inimigos.
A economia da catástrofe
Quando Naomi Klein começa a analisar os efeitos devastadores do furacão Katrina e do Tsunami descobre que as catástrofes são utilizadas pelo FMI como missão creep, isto é, expansão indevida de uma missão, neste caso da máquina pública. Os últimos baluartes do Estado como garante da convivência social são submetidos a ataque. Nova Orleans se converteu no laboratório dessa ulterior privatização do Estado. Analogamente, o Tsunami é utilizado para transformar algumas regiões ou mesmo nações (Sri Lanka, Tailândia e as Ilhas Maldivas) em clubes de férias para as elites globais.
Assim é narrado o capitalismo dos desastres. Naomi Klein, como já fizera em Sem Logo, não quer construir uma teoria do desenvolvimento capitalista. É uma excelente publicitária e jornalista de investigação que se faz sempre a pergunta correta: como organizar a resistência ao neoliberalismo. É verdade que sua defesa do Estado de Bem-estar poder parecer ingênua, mas quando começa a enumerar o que os movimentos sociais fazem e o que propõem, o seu torna-se um keynesianismo que abre portas de autogoverno por parte dos movimentos sociais e a uma democracia radical.
Shok Doctrine é, pois, um livro ambicioso, porque pretende oferecer um mapa do “capitalismo dos desastres”. É certamente um fresco da reorganização do capitalismo depois do 11 de setembro e começa a identificar seus pontos fortes, as empresas líderes que estão emergindo e sua vocação global. Mas também identifica seus pontos frágeis. É, pois, um mapa útil de ler, também para preparar-se para resistir à próxima onda de terapia de choque que se alimentará da próxima catástrofe ambiental e da próxima etapa da guerra preventiva. Ou do anunciado e italianíssimo corte dos gastos sociais para fazer frente à decadência econômica.
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