Vi várias vezes, em documentos das Forças Armadas, que esse tipo de atuação só deve ocorrer excepcionalmente. Antes do final do governo Sarney, houve a invasão catastrófica de Volta Redonda (RJ), quando as Forças Armadas agiram em uma greve na usina siderúrgica, que acabou na morte de três trabalhadores. A partir daí, o Exército assimilou a lição e passou a ser muito cauteloso com relação a missões de garantia da lei e da ordem, que são missões constitucionais”. A análise é do cientista político João Roberto Martins Filho, presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa e professor da UFScar em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, 22-06-2008.
Para o professor, alguns setores “bem-intencionados, como certas ONGs, e outros mal-intencionados, como certos políticos, entre eles esse senador Crivella, agem como se as Forças Armadas não servissem para nada. ‘Então, vamos empregá-las em algum lugar’, no caso, para a garantia de um projeto social em uma área de ação de organizações criminosas, que podem contaminar as tropas”.
Eis a entrevista.
É missão do Exército manter a segurança em mutirões de construção?
O governo de Fernando Henrique convocou o Exército em várias ocasiões para regiões de conflito social. O governo Lula teve um grande avanço nesse ponto. Não houve o uso das Forças Armadas para controlar movimentos sociais uma única vez em cinco anos. Agora, ele acabou ordenando ao Exército, por meio do Ministério da Defesa, do qual é comandante, que realizasse uma missão muito arriscada por motivos político-eleitorais. Para os estudiosos de assuntos de defesa, o que ocorreu no Morro da Providência não traz nenhuma novidade. Era de se prever que isso pudesse acontecer.
Como assim?
É muito perigoso desviar as Forças Armadas de sua missão, que é a defesa do País. Os próprios militares reconhecem isso. Vi várias vezes, em documentos das Forças Armadas, que esse tipo de atuação só deve ocorrer excepcionalmente. Antes do final do governo Sarney, houve a invasão catastrófica de Volta Redonda (RJ), quando as Forças Armadas agiram em uma greve na usina siderúrgica, que acabou na morte de três trabalhadores. A partir daí, o Exército assimilou a lição e passou a ser muito cauteloso com relação a missões de garantia da lei e da ordem, que são missões constitucionais.
Então a presença do Exército no Morro da Providência não é inconstitucional, como afirmou a juíza Regina Coeli de Carvalho?
A lei de 2004 modifica uma lei de 1999, introduzindo um parágrafo no artigo 16 que dispõe o seguinte: “Para os efeitos deste artigo, integra as referidas ações de caráter geral a participação em campanhas institucionais de utilidade pública ou de interesse social”. Por meio dessa lei enxerga-se a possibilidade de o Exército agir no Cimento Social. A decisão da juíza de determinar a retirada das tropas do morro provavelmente se deve ao fato de elas terem cumprido ações fora dessa determinação. Realmente, as Forças Armadas não podem atuar na segurança pública.
As Forças Armadas não estão preparadas para combater o crime?
O Exército é treinado para enfrentar um inimigo. Um morador do morro até pode ser caracterizado como criminoso, marginal, mas não como inimigo. A população não é um inimigo. A raiz desse problema é que, no fundo, as pessoas não reconhecem que as Forças Armadas têm uma função: a defesa nacional. Esses setores, uns bem-intencionados, como certas ONGs, e outros mal-intencionados, como certos políticos, entre eles esse senador Crivella, agem como se as Forças Armadas não servissem para nada. “Então, vamos empregá-las em algum lugar”, no caso, para a garantia de um projeto social em uma área de ação de organizações criminosas, que podem contaminar as tropas.
O presidente insistiu que a atitude não foi do Exército, mas de componentes da instituição. Em que medida a instituição já está contaminada?
Eu acho que a instituição não está contaminada nesse caso. Temos que destacar um aspecto menor, mas importante: o capitão mandou soltar os três rapazes. Pela cadeia de comando, a ação foi certa. Em um cenário desses, os soldados podem ficar mais vulneráveis, inclusive muitos deles são moradores da região. O surpreendente é que um tenente tenha feito isso. É o oficial mais baixo, mas é um oficial. O seqüestro e a entrega dos rapazes para traficantes deve ter sido um choque também dentro da corporação. Eu duvido que a maioria dos oficiais agiria da mesma forma. Foi um fato lamentável e excepcional. Inclusive, chega a me espantar que o Exército não esteja insistindo nesse ponto. Houve uma desobediência.
Temos que poupar o Exército dessa possível contaminação, e não a polícia? Não seria estimular o acovardamento das Forças Armadas?
O Exército não pode se amedrontar diante de uma invasão estrangeira, de uma ameaça à segurança nacional. Nesse sentido, não queremos que o Exército se acovarde. Numa função que não é a dele, pedimos que não se meta nisso, porque não vai dar certo. Não é uma questão de ter coragem ou não. A missão dele não é essa.
O slogan do Exército brasileiro é “Braço forte, mão amiga”. Depois desse episódio no Rio, a confiança da população na instituição fica comprometida?
O Exército se orgulha de aparecer, em pesquisas de opinião pública, com um boa imagem junto à população. Essa situação confirmou todos os temores que os próprios militares tinham. A instituição entrou nisso obedecendo a ordens do Ministério da Defesa, mas o fez muito a contragosto. É isso que não estamos entendendo: o Exército entrou no morro a contragosto. E agora o governo federal age como se nada tivesse a ver com isso. Numa democracia, o presidente é quem manda; o Exército obedece. O presidente está falando como se a coisa não tivesse começado por uma ordem dele. Agora que o problema estourou, ninguém faz a autocrítica, nem mesmo o governo federal.
O general Enzo Peri, comandante do Exército, disse que não cogita trabalhar em conjunto com a Força Nacional. Seria viável uma ação conjunta dos dois órgãos?
Ao agir com a Força Nacional ou qualquer outro órgão de segurança, o Exército sempre deverá estar no comando da operação. Acho que ele não quer complicar ainda mais essa situação. Ao mesmo tempo, fica na defensiva, não querendo abandonar o morro a toque de caixa, como se as tropas estivessem saindo fugidas de lá.
Como corrigir essa situação?
O pedido público de desculpas, coisa de que nunca ouvi falar antes, foi um avanço, mas continuar no morro é se expor a novos riscos. Acho que o Exército vai aproveitar essa decisão judicial e sair.
O Exército ainda é porta de entrada para a camada pobre da sociedade brasileira?
Ele tem, às vezes, essa proposta. As outras Forças são mais profissionais nesse sentido. Acho que isso tem de ser revisto também. A função do Exército é manter tropas preparadas para defender o País. Não é ficar preocupado em melhorar a condição de vida dos recrutas.
Na missão de defensor nacional, o Exército vai bem?
Em primeiro lugar, ele está muito mais bem preparado para defender o País do que para esse tipo de missão. Discute-se um plano estratégico, no âmbito do Ministério da Defesa e no dos Assuntos Estratégicos, para aprimorar a visão das ameaças que o País sofre. Assim será possível saber de que tipo de Forças Armadas o Brasil precisa e qual o seu aparelhamento.
Ele precisa agir em todo o território nacional?
Precisa sem dúvida agir na Amazônia porque ali há fronteiras muito longas e pouco vigiadas. Mas ainda existe o apego à idéia de que o Exército é um fator de unidade nacional, quando isso já está ultrapassado. Tradicionalmente, ele ficou muito próximo dos grandes centros urbanos, agindo como fiador da ordem interna. Estamos evoluindo para uma visão de garantia contra ameaças externas. Por que o Exército não se concentra em regiões importantes e eficazes, em vez de espalhar gente pelo País inteiro?
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