"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, setembro 10, 2012

NOMES E HOMENS

recebido por e-mail - 06 set 2012


Nelson Rodrigues

Não há nome intranscendente e repito: qualquer nome insinua um vaticínio. Todo o destino de Napoleão Bonapart está no seu cartão de visitas. Ao passo que um J. B. Martins da Fonseca não tem nenhum destino especial e, vou mais longe: não tem destino. Quando batizaram William Shakespeare, o padre poderia perguntar-lhe: “Como vão tuas obras completas?”. No simples “William Shakespeare” - estava implicita a música verbal do seu teatro.

Mas um certo nome exige uma certa cara. Napoleão Bonaparte pedia um perfil napoleônico. Um Gengis Khan precisa de fotogenia. Ou então um John Kennedy. O que era o presidente assassinado senão o queixo forte, plástico, histórico? Ele venceu Stevenson e depois Nixon, porque tinha as mandíbulas crispadas do Poder. Por isso, o tiro arrancou-lhe o queixo. Outro: Churchill, com a sua maravilhosa cara de buldogue. Em todos os citados, cara e nome, justapostos, explicam uma nítida predestinação.

Fiz essa pequena introdução para chegar ao nosso presidente. Quando começou o jogo de candidaturas, disse eu: "Ganha esse, pelo nome e pela cara". Não é impunemente que um homem se chama Emílio Garrastazu Médici. Tiremos o Emílio e fica Garrastazu. Tiremos o Garrastazu e ficará o Médici. Bem sei que essa meditação sobre o nome pode parecer arbitrária e até delirante. Não importa, nada importa. Depois vi a sua fotografia. Repeti, na redação, para todo o mundo ouvir: "É esse o presidente". Ora, numa redação há sempre uns três ou quatro sarcásticos. Um deles perguntou: "Só pelo nome?" Respondi: "Pelo nome e pela cara".

Como já disse, a história e a lenda também exigem uma certa fotogenia. E senti que Emílio Garrastazu Médici tinha um perfil de moeda, de cédula, de selo. Organizem uma retrospectiva presidencial e verão que os nossos presidentes são baixos. Getúlio era baixíssimo, embora tivesse um perfil histórico e, digamos, cesariano. Epitácio foi fisicamente pequeno. Era a pose que o fazia mais presidencial. Garras­tazu Médici é o nosso primeiro presidente alto.

Dirão vocês que eu estou valorizando o irrelevante, o secundário, o fantasista. Desculpem o meu possível equívoco. E se me perguntarem por que estou dizendo tudo isso, eu me justificarei explicando: conheci, domingo, o Presidente Emílio Garrastazu Médici. E o pretexto para o nosso encontro foi um jogo de futebol.

Outra singularidade do chefe da Nação: gosta de futebol e sabe viver, como o mais obscuro, o mais anônimo torcedor, todas as peripécias dos clássicos e das peladas. Isso é raro, ou melhor dizendo, isso é inédito na história dos presidentes brasileiros. Imaginem um Delfim Moreira ou um Rodrigues Alves ou um Wenceslau Brás entrando no Estádio Mario Filho. Qualquer um desses perguntaria: ''Em que time joga o Fla-Flu?", "Quem é a bola?" ou "O córner já chegou?"

O nosso presidente sabe tudo de futebol. Eu diria que hoje nenhum brasileiro será estadista se lhe faltar a sensibilidade para o futeboI. Mas dizia eu que foi um jogo - São Paulo x Porto - que nos aproximou. Na sexta-feira passada, o Palácio das Laranjeiras começou por me procurar. Se eu fosse terrorista, não seria tão perseguido. Finalmente: falo pelo telefone com o Palácio. O secretário de Imprensa queria me transmitir um convite. Onde e a que horas poderia falar comigo? Marcamos o encontro. Simplesmente, o Presidente Médici me convidava para assistir, a seu lado, na inauguração do Morumbi, ao jogo internacional. Eu iria, com S. Exa., no avião presidencial. O presidente fazia o maior empenho em que o acompanhasse.

Confesso, sem nenhuma vergonha, que o convite me fascinou. O que têm sido as nossas relações com os presidentes da República? Nada. Sim, há entre nós e o presidente uma distância infinita, espectral. E o Supremo Magistrado, como se diz, é um ser misterioso, inescrutável e sinistro. No meu caso, o presidente se dispunha a acabar com a distância e me receber na áspera solidão presidencial.

De mais a mais, o Brasil vive o seu grande momento. Eis o nosso dilema: ou o Brasil ou o caos. O diabo é que temos a vocação e a nostalgia do caos. É o momento de fazer o Brasil ou perdê-lo. Esse Garrastazu Médici é, neste instante, uma das figuras vitais do País. Eu ia vê­-lo, ia ouvi-lo. Sim, ouvir os ruídos da sua alma profunda. Todo o mundo tem, no bolso do colete, o seu projeto de Brasil. Garrastazu tem o seu e pode realizá-lo. Ao passo que nós não temos força para tapar um cano furado. Bem. Aceitei o convite, ressalvando: iria de tudo, menos de avião. "De automóvel?", perguntou o secretário de Imprensa. E eu: "De qualquer coisa" - e repeti - "nunca de avião".

Sábado, o meu filho Nelson levou-me para São Paulo no seu fusca. Durante a viagem, uma pequena, mas intolerável inibição instalou-se em mi: “Chamarei o presidente de ‘excelência’ ou de ‘senhor’?”. Imaginava que o poder desumaniza o homem. Seria Garrastazu uma figura áspera, hierática, enfática? Pensava, ao mesmo tempo, num episódio recente. No jogo do Grêmio, e antes de ser presidente, e antes da definição das candidaturas, o General Garrastazu Médici desce ao vestiário. Vejam se vocês conseguem imaginar um Delfim Moreira ou um Epitácio num vestiário de futebol. Pois o general chega e pergunta: "Como é, Alcino, que você vai me perder aquele gol?" No fusca do meu filho Nelson, eu queria crer que um homem assim é um brasileiro vivo e não uma pose, e não uma casaca, e não uma faixa, e não uma condecoração.

No dia seguinte, estava eu no aeroporto. Tivemos uma primeira conversa e, durante o dia, uma outra, e uma terceira, e uma quarta. Vi a seu lado a inauguração (ou a décima inauguração do Morumbi).  Ora, no momento não há nada mais importante do que saber o que pensa, o que sente, o que imagina, o que quer um presidente da República, investido de tantos poderes. No meio do jogo, ele insistia para que eu voltasse no seu jato. Digo, por fim: "Está certo, presidente. Vou voar pela primeira vez".

É preciso não esquecer o que houve nas ruas de São Paulo e dentro do Morumbi. No Estádio Mário Filho, ex-Maracanã, vaia-se até minuto de silêncio e, como dizia o outro, vaia-­se até mulher nua. Vi o Morumbi lotado, aplaudindo o Presidente Garrastazu. Antes do jogo e depois do jogo, o aplauso das ruas. Eu queria ouvir um assobio, sentir um foco de vaia. Só palmas. E eu me perguntava: "E as vaias? Onde estão as vaias?" Estavam espantosamente mudas.

Até domingo, às seis e meia, sete da noite, eu não entrara jamais num avião pousado, num avião andando, num avião voando. Lá em cima, não há paisagem, e, se não há paisagem, estamos fazendo a antiviagem. Conversamos longamente. Houve um momento em que ele me disse: "Sou um presidente sem compromissos. Só tenho compromissos com a minha Pátria". Eis um homem que fala em Pátria, em "minha Pátria". Para a maioria absoluta dos civis, "Pátria" é uma palavra espectral, "patriota" é uma figura espectral. E as nossas esquerdas fizeram toda a sorte de manifestações. Não berravam, não tocavam na "Pátria". Nas passeatas, berravam, em cadência: ''Vietnã, Vietnã, Vietnã". Pichavam os nossos muros com vivas aos vietcon­gues, a Cuba. Nenhuma alusão à Pátria, nenhuma referência ao Brasil. E, no entanto, vejam vocês: o Amazonas tem menos população do que Madureira. Aquilo é uma gigantesca sibéria florestal. E as esquerdas só pensavam no Vietnã, e só pensavam pelo Vietnã e só bebiam pelo Vietnã.

Certa vez, conversei com um membro da esquerda católica. Exortei-o a desembarcar no Brasil. Disse-lhe que, na pior das hipóteses, temos paisagem. Citei o Pão de Açúcar, o Corcovado. Mas ele batia na tecla obsessiva e fatal: "O Vietnã, o Vietnã, o Vietnã" etc. etc. Ainda no meu élan paisagístico, fiz a apologia da Vista Chinesa, recanto ideal para matar turista argentino. Mas havia entre mim e ele a distância que nos separa do Sudeste Asiático. Eis o que o meu amigo propõe: que os brasileiros bebessem o sangue uns dos outros como groselha.

Antes de se despedir, o membro da esquerda católica concentrou sua ira nas Forças Armadas. Acusou-as de incapazes, de ineptas, de relapsas. "Os militares nunca fizeram nada", afirmou. Desta vez, perdi a minha paciência. Tratei de demonstrar-lhe que os militares fizeram tudo. No Sete de Setembro (e Pedro Américo não me deixa mentir) foram sujeitos de esporas e penacho que deram o grito do Ipiranga; e, se os militares não fizeram nada, que faz a espada de Deodoro na estátua de Deodoro? Foi a inépcia militar que fez a República, assim como fizera a Independência. Em 22 e 24, era o sangue militar que jorrava como a água, a água da boca dos tritões de chafariz. Em 30, em 32, em 35, foram os militares. Assim em 89. Retirem as Forças Armadas e começará o caos, o puro, irresponsável e obtuso caos.

Há anos e anos que eu não digo "Pátria". E quando o Presidente Garrastazu falou em "minha Pátria", experimentei um sentimento intolerável de vergonha. Esse soldado é de uma natureza simples e profunda. Está disposto a tudo para que não façam do Brasil o anti-Bra­sil. Seja como for, deixará este nome, para sempre: Emílio Garrastazu Médici.

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