"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, outubro 08, 2012

Tratados de Limites

 Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 07 de outubro de 2012.

São conhecidas as aspirações da nossa estimável irmã da América do Norte, a respeito da borracha; é notório seu apreço pelo torrão maravilhoso possuído pelo Brasil nas margens amazônicas; são bem conhecidas as transações ultimamente efetuadas no estrangeiro a respeito de grandes trechos daqueles vastos e ferocíssimos territórios; e, mais cedo ou mais tarde, dentro de pouco tempo, talvez fiquemos privados daquelas zonas, as vejamos em mão estrangeiras. (Ruy Barbosa)

- Arbitragem Cristã

Naqueles tempos nada se tinha por acabado e perfeito se a religião não o consagrava; e como, além disso, a idéia de que todos os reinos da terra eram sujeitos ao Papa, que tinha sobre eles direito de soberania, os reis e conquistadores procuravam sempre assegurar nas concessões a proteção da Santa Sé à legitimidade dos seus descobrimentos e domínios. (João Francisco Lisboa)

As arbitragens sobre as terras internacionais eram, na época, decididas pelos príncipes do Vaticano. Esta tradição remonta a 1092 quando o Papa Urbano II concedeu a Ilha da Córsega ao Bispo de Pisa. A Espanha fora beneficiada, por Sisto IV, com a posse das Ilhas Canárias e Portugal, por sua vez, teve asseguradas suas posses as terras conquistadas aos “infiéis” conforme bula assinada por Eugênio IV. Nicolau V reconheceu como portuguesas todas as conquistas na África e ilhas vizinhas e, depois dele, Calisto III, em 1456, proclama que só Portugal tinha o direito de descobrir o “Caminho das Índias”.

- Mundus Novus e a Bula “Inter Coetera”

Os reis católicos da Espanha, Fernando e Isabel, aproveitam a descoberta da América, por Colombo, e que o trono da Santa Sé era ocupado por um Pontífice espanhol, Alexandre VI, para pleitear o reconhecimento de sua soberania sobre as terras recém-descobertas. O Papa espanhol expediu imediatamente uma bula doando à Espanha, em caráter perpétuo, o Novo Mundo, com o compromisso dos reis de Castela de propagarem a Fé Católica nas novas plagas.

A controvertida bula “Inter Coetera”, de 4 de maio de 1493, definia uma linha imaginária que passava a cem léguas a oeste das Ilhas dos Açores e Cabo Verde com origem no pólo Ártico e término no Pólo Antártico. As terras ao Ocidente desta Linha pertenceriam à Espanha. O rei D. João II, de Portugal, não concorda com a decisão e, sem conseguir demover Alexandre VI de sua decisão, prepara uma frota de guerra com o propósito de assegurar os direitos lusitanos sobre as regiões descobertas por Colombo no Ocidente que, de acordo com a bula promulgada por Calisto III, em 1456, e o Tratado de Alcaçovas, de 1481, pertenciam à coroa portuguesa. A beligerância teve seu fim com a assinatura do Tratado de Tordesilhas, a 7 de junho de 1494, deslocando a linha para 370 léguas a partir da Ilha de Cabo Verde. Portugal assegurava, com isso, a posse de grande parte do Brasil além de desfrutar das vantagens do “Caminho da Índias”.

O Tratado de Tordesilhas nasceu caduco. Não havia, naquela época, como demarcar com exatidão essa linha, pois o processo de cálculo que permitiria sua definição só viria a ser dominado no final do século XVII.

(...) não concordando os Históricos, faltos de fundamentos, nem acertando os Geógrafos as suas medidas, não é possível assentar ponto fixo para esta demarcação, porque de premissas ou prováveis e duvidosas, não se pode deduzir ilação infalível.
(Engenheiro Militar e Cartógrafo genovês Francesco Tosi Colombina)

O Tratado de Tordesilhas foi o embrião da questão Acreana. A disputa pelas nações ibéricas do continente americano manteve-se acesa em cada país Sul-americano que herdou daquelas importantes civilizações europeias não só sua cultura, tradições e costumes, mas também suas mal resolvidas questões de fronteira.

- Coroa Ibérica

D. Sebastião, o desejado, rei de Portugal e o último da dinastia dos Avis, cresceu com a plena convicção de que era um predestinado. Ao enfrentar os mouros, em número significativamente superior, na batalha de Alcácer Quibir, evidenciou nas suas ações achar que o “Milagre de Ourique” repetir-se-ia, afinal a Batalha de Ourique foi um episódio simbólico para a monarquia portuguesa, graças a ela D. Afonso Henriques foi aclamado rei de Portugal, em 25 de julho de 1139.

Para desespero de D. Sebastião e de seus combatentes, o milagre não se repetiu e a sua morte precipitou uma série de acontecimentos que culminaram com a unificação das coroas de Espanha e Portugal sob a autoridade da Espanha ficando, o período, conhecido como União Ibérica. O período, que durou 60 anos (1580-1640), permitiu que os espanhóis estendessem seus domínios no Pacífico em regiões reconhecidamente portuguesas e nas regiões platinas da América. O desinteresse pelas possessões amazônicas era embasado, seguramente, em dois fatores fundamentais: o econômico e o fisiográfico. O primeiro em virtude da desilusão da missão de Gonzalo Pizarro na busca do País da Canela e do El Dorado que redundara em um retumbante fracasso. O segundo, talvez a “vera causa”, a Cordilheira dos Andes que impedia ou pelo menos dificultava a colonização espanhola da terra das Amazonas. A Cordilheira, segundo Euclides da Cunha foi “um cordão sanitário ou ao menos um desmedido aparelho seletivo”.

Os portugueses, por sua vez, ampliaram sua área de influência na América e a Amazônia foi sendo conquistada pelos lusos nos seus mais longínquos rincões, graças à instalação de fortificações e criação de pequenos povoados. O rei D. João V, com o ouro da “terra brasilis”, pagou cientistas que elaboraram os fundamentos cartográficos do Tratado de Madri, construiu fortes diminuindo a vulnerabilidade da colônia brasileira e negociou com o Papa Benedito XIV a bula “Candor Lucis” em 1745 que estabelecia as prelazias de Goiás e Cuiabá. O Vaticano, através da “Candor Lucis”, reconhecia publicamente o avanço português sobre a linha de Tordesilhas antes mesmo do Tratado de Madri.

Quando da assinatura do Tratado de Madri, em 1750, os espanhóis, acatando os argumentos de Alexandre de Gusmão, que defendia o princípio do “Uti Possidetis”, reconheceram a soberania portuguesa sobre a região.

- A Histórica Má-fé Boliviana

A partir de 1833, as discordâncias entre o Império do Brasil e a Bolívia, no que se refere ao estabelecimento dos limites se tornam cada vez mais patentes. Uma série de crises se sucedeu sem que se chegasse a um acordo. O Governo de La Paz havia concedido sesmarias, a cidadãos bolivianos, em território brasileiro; pretendia exercer domínio total sobre o Rio Madeira e ainda tinha a intenção de permitir aos Estados Unidos da América a livre navegação nos Rios da Bacia Amazônica, que entendiam serem caminhos livres, “abertos pela natureza ao comércio de todas as nações”.

Em 1834, procurando equacionar as contestadas questões de fronteira com o Brasil, a Bolívia encarrega da missão o General Mariano Armaza. O General apresentou uma proposta amparada no Tratado de Santo Ildefonso, de 1777, entre Espanha e Portugal que tinha como premissa: “que a linha divisória começasse aos 22°, na margem direita do Paraguai, até a embocadura do Jauru, daí seguisse pelas águas desse Rio e pelas do Aguapeí até encontrar na serra do mesmo nome as cabeceiras do Rio Alegre e daí baixasse até o Guaporé”. A sugestão foi rechaçada pelo Governo brasileiro.

Diversas tentativas se sucederam, mas nenhuma chegou a bom termo. Antônio Pereira Pinto afirma nos seus “Estudos sobre algumas questões internacionais” que os estadistas de La Paz não eram capazes de negociar de boa fé já que “as tradições adversas ao Brasil passavam em seu Governo de geração em geração”.

Os bolivianos teimavam em evocar, equivocada e tendenciosamente, os Tratados de Madrid, (1750), e o de Santo Ildefonso, (1777), sem considerar que os mesmos haviam sido anulados e tornados sem efeito. O de Madrid pelo tratado de El Pardo, de 12 de fevereiro de 1761 e que culminou com a assinatura do Tratado de Paris, 10 de fevereiro de 1763; o de Santo Idelfonso quando pactuado, em Badajoz, o tratado de 6 de junho de 1801. Os bolivianos não queriam considerar como único princípio correto, que deveria ser seguido nas relações de domínio territorial no Continente, o do “Uti-possidetis”: “Ita-possideatis”, do Direito Romano incorporado ao Direito Internacional.

- Tratado de Ayacucho

Em 1867, em plena campanha contra Solano Lopez, a Bolívia insiste na definição da questão e nomeia, como seu representante, o Chanceler Dr. Mariano Donato Muñoz e o Brasil o Dr. Felipe Lopes Neto, com a finalidade de elaborar uma proposta que resolva definitivamente a questão.

As negociações são concluídas com a assinatura, na cidade de La Paz de Ayacucho, do Tratado de Ayacucho, em 27 de março de 1867. A reconhecida habilidade de Lopes Neto se torna patente ao fazer com que os estadistas bolivianos aceitem o princípio do Uti-possidetis, até então recusado peremptoriamente. O diplomata brasileiro, infelizmente, não conseguiu que o artigo 2° do Tratado, no parágrafo que se refere à linha divisória no território cortado pelo Rio Aquiri ou Acre, mantivesse a formatação original dos artigos respectivos dos Tratados de 1750 e de 1777.

    O artigo VIII do “Tratado de Madrid”, de 1750, estipulava que:

Baixará pelo álveo destes dois Rios, já unidos, até a paragem situada em igual distância do dito Rio das Amazonas, ou Marañon, e da Boca do dito Mamoré; e desde aquela paragem continuará por uma linha Leste-Oeste até encontrar com a margem Oriental do Javari que entra no Rio das Amazonas pela sua Margem Austral; e baixando pelo álveo do Javari até onde desemboca no Rio das Amazonas ou Marañon, prosseguirá por este Rio abaixo até boco mais ocidental do Japurá, que deságua nele pela margem setentrional.

    O artigo XI do “Tratado de Santo Ildefonso”, de 1777, em consonância com a letra do Tratado de 1750, por sua vez:

Baixará a Linha pelas águas destes dois Rios Guaporé, e Mamoré, já unidos com o nome da Madeira, até á paragem situada em igual distância do Rio Maranhão, ou Amazonas, e da Boca do dito Mamoré, e desde aquela paragem continuará por uma Linha Leste-Oeste até encontrar com a Margem Oriental do Rio Javari, que entra no Maranhão (Amazonas) pela sua margem Austral; e baixando pelo álveo do mesmo Javari até onde desemboca no Maranhão, ou Amazonas, prosseguirá águas abaixo deste Rio, a que os espanhóis costumam chamar Orellana, e os Índios Guiena, até a Boca mais Ocidental do Japurá, que deságua nele pela margem Setentrional.

    O artigo II do “Tratado de Ayacucho”, a fronteira é especificada com maior detalhamento, em virtude do conhecimento, que se tinha, do Madeira para o Sul:

Sua Majestade o Imperador do Brasil e a Republica de Bolívia concordam em reconhecer, como base para a determinação da fronteira entre os seus respectivos territórios, o “Uti Possidetis”, e, de conformidade com este princípio, declaram e definem a mesma fronteira do modo seguinte:

(...) baixará por este Rio até a sua confluência com o Guaporé e pelo meio deste e do Mamoré até ao Beni, onde principia o Rio Madeira. Deste Rio para o Oeste, seguirá a fronteira por uma paralela, tirada da sua margem esquerda na Latitude Sul de 10°20’, até encontrar o Rio Javari. Se o Javari tiver as suas nascentes ao Norte daquela linha Leste-Oeste, seguirá a fronteira, desde a mesma Latitude (10°20’), por uma reta, a buscar a origem principal do dito Javari.

Na época, se ignorava o traçado e as nascentes do Rio Javari. No Brasil, supunha-se que o Rio tivesse suas nascentes paralelas ao Madeira, provavelmente, a 10°20’ de Latitude Sul. A condicionante colocada no Tratado foi um artifício sutil empregado por Mariano Muñoz com o qual concordou Lopes Neto. Naquela época, os bolivianos já suspeitavam que o Javari não nascia na altura do Paralelo 10°20’, mas mais ao Norte.

- Livro do Autor

O livro “Desafiando o Rio-Mar – Descendo o Solimões” está sendo comercializado, em Porto Alegre, na Livraria EDIPUCRS – PUCRS, na rede da Livraria Cultura (http://www.livrariacultura.com.br) e na Associação dos Amigos do Casarão da Várzea (AACV) – Colégio Militar de Porto Alegre. Para visualizar, parcialmente, o livro acesse o link:


Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil - RS (AHIMTB - RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional.
 

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