Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 07 de novembro de 2012.
Euclides da Cunha na sua obra “Contrastes e Confrontos”
denuncia as incursões peruanas que buscavam avidamente as ricas plagas
onde a hevea abundava e caracteriza as hordas peruanas como uma “aglomeração irrequieta em que há todas as raças e não há um povo”
que invade a floresta tumultuariamente dedicando-se mais à pilhagem do
que a um trabalho produtivo. Uma massa humana que se liberta e rompe os
Bastiões da Cordilheira em busca da terra exuberante e da hiléia
magnífica já ocupada, sobretudo, pelos arrojados irmãos nordestinos.
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A salvação está no vingar e transpor a
Cordilheira. Ali ao menos há a sugestão dominadora da civilização
surpreendente dos Incas: a estrada de duas mil milhas distendida de
Quito às extremas do Chile, lastrada pelas neves eternas, contorneando
encostas abruptas em releixos (caminhos estreitos na borda de um abismo) de rocha viva, alcandorada (encarrapitada) em pontes pênseis sobre abismos, e estirando nas planuras as calçadas eternas de silhares
(pedras lavradas em quadrado) unidos com cimento betuminoso; e os
velhíssimos baluartes pré-incásicos feitos de montanhas inteiras
arremessando-se nas alturas em sucessivos patamares ameados; e a
ruinaria dos santuários do Sol com os seus aparelhos ciclópicos de
blocos poligonais de pórfiro (rocha siliciosa muito dura) brunido
(polido); e os longos aquedutos do monte Siva, em cujos canais
subterrâneos, perfurando as serras, se espelham esforços de uma
engenharia titânica...
Depois, descidas as vertentes Orientais da primeira cadeia dos Andes, transposta a “montaña” e a segunda Cordilheira — a terra exuberante é desmedida, prefigurando nas grandes matas a mesma hiléia amazonense.
Nesta região, tão outra, está — pela
implantação do trabalhador e pelo equilíbrio da existência agrícola — a
redenção daquelas gentes que possuem os melhores fatores para um elevado
tirocínio histórico.
Mas, ao mesmo passo que lhes despontam
estas esperanças, extingue-lhas a mesma Cordilheira com o seu largo
tumultuar de píncaros e de pendores impraticáveis num talude vivo de
muralha, que lhes trancam quase por completo as comunicações com o
litoral.
De fato, o Pacífico, ainda que se
rasgue o canal de Nicarágua, parece que pouco influirá no progresso do
Peru. O seu verdadeiro Mar é o Atlântico; a sua saída obrigatória o
Purus. Sabem-no há muito os seus melhores estadistas: a expansão para o
Levante traduz-se-lhes como um dever elementar de luta pela vida.
Revelam-no todos os insucessos de numerosas tentativas buscando
libertá-lo das anomalias físicas que o deprimem. Revelou-as, desde 1879,
C. Wiener:
Os peruanos aquilatam bem a importância
enorme que teriam as estradas, ligando os afluentes navegáveis do
Amazonas e do Ucaiali às cidades do litoral; fizeram todos os esforços
para executá-las porque lhas impõem a lógica e o interesse; mas parece
que a sua força de vontade é menor que a constituição física dos
autóctones. (Wiener)
De feito, contemplando-se diante de um
mapa a faixa costeira entre Pachacamas e Tumbez, nota-se um como
diagrama daquelas tentativas desesperadas e perdidas. Foi a princípio,
no Extremo Norte, a linha férrea de Paita a Piura, procurando os
tributários Setentrionais do Solimões; depois, próxima e ao Sul, uma
outra, de Lambayaque a Ferenafe: ambas estacionaram, trilhos imersos nos
areais da costa. A terceira, lançada de Pascamayo à estação terminus de
Cajamarca, e a quarta partindo de Salavery, pouco ao Sul de Trujillo —
buscavam as linhas de derivação do Ucaiali: embateram ambas de encontro
às fílades espessas e aos doleritos e quartzos duríssimos das
Cordilheiras. A quinta, a admirável estrada de Oroya, dominou parte da
serrania, mas ficou bem longe do seu objetivo essencial no transmontar
as últimas cordas de serras, varar pelas planícies do Sacramento e
alcançar o Purus.
Esta é expressiva: mostra como o
traçado do grande tributário do Amazonas, em cujas margens contendem
agora os flibusteiros, norteia de há muito a administração daquela
República.
Por outro lado, desde 1859, com
Faustino Maldonado e dez anos depois com o Coronel Latorre, sucessivas
expedições se lançam para o Oriente impelidas por alguns abnegados
caídos todos naqueles lugares remotos, numa extraordinária intuição dos
interesses reais do seu país.
Estes antecedentes delatam nas
perturbações que lavram em toda aquela zona um significado bem diverso
do que lhe podem dar algumas correrias de seringueiros. A guerra
iminente tem uma feição gravíssima.
Se contra o Paraguai, num Teatro de
Operações, mais próximo e acessível, aliados às repúblicas platinas,
levamos cinco anos para destruir os caprichos de um homem — certo não se
podem individuar e prever os sacrifícios que nos imporá a luta com a
expansão vigorosa de um povo. (CUNHA, 1975)
- A Conquista do Alto-Purus e Alto-Juruá
Segundo Craveiro Costa em “A Conquista Ocidental do Deserto Ocidental”:
Já
em 1870, os brasileiros, no Juruá, se haviam aventurado, pouco a pouco,
avançando bravamente na direção das cabeceiras do grande curso fluvial,
à cata das héveas, chegando às margens do Amônea e do Tejo, e, anos
depois, em 1891, levaram as explorações ao Rio Breu, por lá, muitos
deles, se fixando. Por toda parte, no Alto-Juruá, não havia uma só
propriedade peruana. Tudo aquilo era tido pela população como terra
brasileira, pertencente ao município amazonense de São Felipe
(Eirunepé).
No
Purus a ocupação das margens do grande Rio, na sua parte mais alta, em
demanda das nascentes, data de 1892, a que remontam os primeiros
estabelecimentos do Rio Chandless, daí subindo sempre nos anos
posteriores.
O Rio Béo, pouco acima do Breu,
marcava, em 1891, o Limite Meridional da ocupação efetiva brasileira no
Juruá, que nesse ano alguns compatriotas nossos, dirigidos por João
Dourado e Balduino de Oliveira, exploraram até à Boca do Rio que
chamavam Dourado e é o mesmo a que os peruanos, posteriormente, deram o
nome de Uacapista ou Vacapista, mudando o primitivo nome para outro
afluente próximo. O Santa Rosa, em Curinahá, ficara sendo, desde 1898, o
limite da ocupação brasileira no Purus, já em 1861 explorado pelo nosso
intrépido sertanejo Manoel Urbano da Encarnação, até perto de Curanja, e
em 1867, com o auxílio do Governo brasileiro, por William Chandless, em
companhia do mesmo Manoel Urbano, até pouco além da confluência do
Cavaljane, isto e, até as vizinhanças da nascente principal.
Anteriormente
a 1896, esses territórios estavam livres de peruanos. Nada por ali
havia que atestasse a sua passagem e fosse um padrão de posse da nação
peruana sobre aquelas águas e aquelas terras. Somente em 1896 começaram
aparecer peruanos, devastando as florestas em busca do caucho. Eram
negociantes endinheirados, à frente de numerosas hordas de “cholas”
broncos, que percorriam os Rios navegáveis mais facilmente, introduzindo
mercadorias contrabandeadas e espalhando soles (padrão monetário
peruano) e libras. Demoravam-se em alguns pontos, vivendo à larga, o
tempo em que os caucheiros, destruindo as castiloas (árvores do caucho)
no seio da floresta, faziam o caucho, que os negociantes recebiam e logo
abalavam. Os vestígios que deixavam ficavam na mata bruta, na
destruição das árvores da borracha e nos barracões senhoriais, ou nas
barracas humildes, de paxiúba e caranaí, nos soles de prata que os
seringueiros, em permutas comerciais, recebiam e entesouravam no
mealheiro. Aquilo era do Brasil. (COSTA)
Leandro Tocantins, no capítulo LXV de seu livro “Formação Histórica do Acre – Volume II” faz um pequeno histórico da penetração peruana do Alto-Purus e no Alto-Juruá, a partir de 1896.
Atribui-se
a Vicente Mayna o primeiro estabelecimento peruano (1896) a fundar-se
no Juruá. “Um arraial no local em que atualmente se encontra a Vila de
Porto Walter, não com o fim de negociar e tão-somente de explorar os
cauchais vizinhos”. Na pista de Vicente Mayna vieram outros caucheiros
patrícios. A firma Hidalgo Ruiz montou casa a jusante do Rio Moa, no
lugar Centro Brasileiro, nome substituído pelos chefes da empresa
arrendatário do seringal para Centro Peruano.
O seringal foi arrendado pelo brasileiro Antonio Marques de Meneses. Hoje, nesse lugar, ergue-se a cidade de Cruzeiro do Sul.
Em
apoio a essa Fundação Comercial que tinha um fundamento político, veio
do Peru um Destacamento Militar pelo varadouro Ucaiali-Juruá-Mirim, não
logrando alcançar o Juruá porque alguns brasileiros interceptaram-lhe o
caminho.
No
ano de 1897, um oficial da Marinha de Guerra do Peru, D. Henrique
Espinar, procedente de Iquitos, chegou ao Juruá, no vapor Brasil, cuja
denominação, evidentemente intencional, servia para ganhar simpatias dos
ribeirinhos. Porque, em caráter secreto, Espinar tinha a missão de
fazer um levantamento social e hidrográfico do Rio, o que realizou
“desde a Foz até a boca do Tejo, a que dá a extensão de 1.505 milhas,
retirando-se depois ao Ucaiali pelo varadouro que liga o Tamaia ao
Amônea”.
É
interessante destacar do relatório que o emissário peruano apresentou
ao seu Governo a circunstância de estar o Juruá ocupado pelos
brasileiros, até o alto curso. Apenas cinco habitações peruanas ele
registrou, perdidas no meio de tantas “fincas” a cujos proprietários
Espinar chama de estrangeiros. Entre os compatriotas de Espinar
encontrava-se o famoso Carlos Sharff, no Rio Gregório (afluente da
margem direita), com 360 caucheiros.
Toda
essa gente vinha atraída pelos novos cauchais, nas cabeceiras do Juruá
ou nos cursos altos de seus afluentes Meridionais. A riqueza vegetal
atiçou a cobiça dos loretanos vizinhos que açodadamente “atiravam-se ao
objeto de sua avidez”.
O
primeiro estabelecimento administrativo do Peru, no Juruá, ocorreu em
1898. D. Justo Balarezo surgiu no Rio Amônea na qualidade de
Governador-comissário, por nomeação do “Comisionado Especial del Supremo
Gobierno en el Departamento (Loreto)”. Participando em circular, de 8
de julho de 1898, esse fato e a sua posse no cargo, Balarezo garantiu o
propósito de emprestar todas as “facilidades necesarias al Comercio y a
la Industria para un amplio desarrollo en la circumscrición de mi
juridición”. E acrescentava: “siendo mi autoridad la primera que ha sido
nombrada para esta región”. (Circular de 08.07.1898, dirigida a Urbano
Müller - Arquivo Ramalho Junior)
Um
mês depois, Justo Balarezo, da Boca do Amônea, onde assentara a sua
Gobernación, dirigiu um ofício ao brasileiro Urbano Müller, nos
seguintes termos:
Ha llegado a mi conocimiento que ha
solicitado U. de autoridades brasileras la adjucación de diversos lotes
de terrenos comprendidos entre el Río Gregorio y la Boca del Río Breo.
Como dichas adjucaciones deben pedirse a nuestro Gobierno por medio de
sus autoridades, pues es el único que tiene legitimo derecho a
expedirlos, me encuentro en el deber de velar por los intereses del país
como también por los de los particulares, sean peruanos ó extranjeros,
que se encuentren bajo mi jurisdicción. Por lo tanto prohíbo a U. que
continúe practicando tal irregularidad y desearía se acerque U. a esta
Gobernación para hablar con mas extensión sobre el asunto. (Ofício de
13.08.1898 - Arquivo Ramalho Júnior)
Urbano
Müller, em resposta, acusou a circular de comunicação de posse e o novo
expediente de Balarezo, frisando que deixaria de parte qualquer
contestação:
pois ao Governo de meu País compete oferecer ao vosso os direitos que tenha sobre este território.
Entretanto, era:
forçado a desconhecer a vossa
autoridade, diante dos inúmeros atos oficiais emanados da Intendência de
São Filipe e do Governo do Estado do Amazonas, os quais traduzem
categoricamente a posse em que se acham da região em que atualmente nos
achamos. Vou, portanto, levar ao conhecimento das referidas autoridades
de meu País não só a circular como, também, o vosso ofício, para que
seja tomado em consideração assunto tão grave. (Ofício de 13.08.1898 -
Arquivo Ramalho Junior)
Na
entrada do século, os peruanos possuíam centros de relativa atividade
comercial no Juruá. Ricardo Hidalgo, na Boca do Moa, Asumpción Ruiz e
Samuel Aspiasse, no Juruá-Mirim, Carlos Sharff, Menacho y Hermanos,
Vigel & Co., Efrain Ruiz, Lecca y Hermanos, “negociantes e
potentados”. Quase todos mantinham intercâmbio direto com o Peru,
através dos varadouros do Ucaiali. O Governo do Amazonas, prevenido
pelos funcionários da Intendência de São Filipe acerca dos planos do
Peru e das atividades suspeitas de seus nacionais no Juruá, animou-se a
criar uma Coletoria na Boca do Breu. Em fevereiro de 1902, a repartição
foi instalada mais abaixo, entre os Rios Arara e Amônea, porém, logo nos
três primeiros meses do ano seguinte o Executivo Estadual suprimiu-a, a
pedido do Chanceler Olinto de Magalhães, por interferência do Ministro
do Peru, sem que isso importasse em reconhecer o território como
peruano, segundo a decisão da Chancelaria brasileira.
E
haviam bem fundadas razões para o Amazonas tomar essa providência. Os
peruanos, a princípio, querendo ganhar simpatia e confiança,
submeteram-se as leis e as autoridades nacionais. Quando consideraram o
seu comércio suficientemente forte, a atitude mudou. A sombra do
interesse econômico ocultava-se o objetivo político, e este veio a tona
em manifestações positivas de domínio na região, onde:
reside grande número de peruanos aos
quais o nosso Governo cerca de ampla liberdade, de todas as garantias,
sem que eles as reconheçam e correspondam. (Relatório apresentado pelo
Comissário Raimundo Augusto Borges, da Intendência de São Filipe, ao
Governo do Amazonas)
A
Independência de São Filipe salientava ao Governo do Amazonas o “grande
e ativo comércio” que o Juruá “entretêm com as praças do Pará e Manaus,
fornecedoras de todos os gêneros nacionais e estrangeiros que recebem
os produtos naturais desta Comarca” , comércio “exercido em alta escala
por milhares de brasileiros disseminados nas frondosas margens dos Rios
Juruá e seus afluentes”. Havia, porém, “a concorrência criminosa e
vantajosamente exercida pelos cidadãos peruanos, contrabandistas, que
povoam diversos Rios, devastam suas matas e sugam sua riqueza, sem
concorrerem com um ceitil (moeda portuguesa criada no reinado de D.
Afonso V) para o aumento das rendas do Município e do Estado”.
A
esse tempo, lanchas e pequenos vapores peruanos, viajando com bandeira
do Brasil, trafegavam pelo Juruá, o Tarauacá, o Envira, o Muru. Partiam
de Iquitos, base principal das operações, num misto de comércio e de
conquista política, e fonte de contrabando que também se fazia através
dos varadouros do Ucaiali. Caucho e borracha escapavam-se por caminhos
escusos, sem pagar nenhum imposto ao fisco brasileiro. Daí um dos
motivos da criação da coletoria amazonense, retirada logo mais para
atender as conveniências diplomáticas do Itamarati.
Ainda
em 1902, utilizando a rota do varadouro Tamaia-Amônea, veio do Ucaiali o
já conhecido Manuel Pablo Villanueva, aparentemente com o objetivo de
negociar caucho. O Governo de Lima precisava completar os dados e
observações que o Capitão Enrique Espinar coletara, em 1897, visando a
emprestar maior ênfase na ocupação do território, mediante um plano
melhor elaborado, que se basearia nos elementos a serem recolhidos por
Villanueva.
No
seu regresso a Lima, Manuel Pablo teve ocasião de pronunciar uma
conferência na “Sociedad de Geografia”, durante a qual instou pela
urgente necessidade de fomentar o desenvolvimento de Nuevo lquitos, um
“pueblo de caucheros”, na Foz do Breu, que na realidade não passava de
umas tantas palhoças onde vivia o intitulado Comissário Efrain Ruiz. O
conferencista expôs, com alarme, a influência brasileira “exercida em
danos aos peruanos, em quase todo o Rio”, e asseverava: “de fato, o
Brasil estende sua autoridade nos territórios situados ao Sul do 7° grau
de Latitude, como se formassem parte de sua nacionalidade”.
Manuel Pablo Villanueva, Fronteras de
Loreto, apud Belarmino de Mendonça. As palhoças de Nuevo Iquitos foram
abandonadas em 1902, ao retirar-se o seu fundador Efrain Ruiz.
Em
seguida à viagem de Villanueva, ocupou a Foz do Amônea um destacamento
composto de 20 praças e numerosos (40) caucheiros armados. Carlos
Vasques Quadros, à frente deles, vinha exercer as funções de Comissário.
As terras da Foz do Amônea pertenciam ao Seringal Minas Gerais,
propriedade do brasileiro Luís Francisco de Melo.
Os exploradores brasileiros do Juruá
chegaram à Foz do Amônea em 1890, chefiados pelo cearense Francisco
Xavier Palhano. Nessa época só havia índios na região.
Os
habitantes, à vista da arrogância dos estrangeiros, forçaram-lhes a
retirada para o Alto-Amônea, onde se julgava estar a fronteira do Peru.
Luís Francisco de Melo cometeu a imprudência de aconselhar aos seus
compatriotas a não se oporem à invasão, porque, ele acreditava, ao
Governo do Brasil caberia resolver o caso. Serenados os ânimos, Luís
Francisco de Melo deu assentimento aos peruanos para que se instalassem
na Foz do Amônea. A 15 de novembro (1902), Carlos Vasques Quadros e seu
Troço estabeleceram-se no lugar, pondo logo em funcionamento uma
repartição arrecadadora de impostos. O nome de Nuevo Iquitos das antigas
palhoças de Efrain Ruiz, na Boca do Breu, passou a ser o do “Puesto”
fundado, em 1898, por Justo Balarezo.
Dentro
em pouco, a mediação insensata de Luís Francisco de Melo produzia os
seus efeitos negativos. A “Comisaría do Amônea” iniciava a cobrança de
taxas aos produtos brasileiros e aos navios de passagem pelo Rio.
Comerciantes e proprietários eram atingidos por violências morais e até
por depredações. Quadros baixou ato estabelecendo o imposto de dois
décimos por estrada de seringa, “além do pagamento de 15% ‘ad valorem’
sobre a exportação da borracha”. (segundo José Moreira Brandão Castelo
Branco).
Os
habitantes do Alto-Juruá e do Rio Tejo endereçaram ao Governo do
Amazonas um longo memorial explicativo das ocorrências provocadas pela
“Comisaría do Amônea”. Pediam a atenção das autoridades para essa
anomalia em território reconhecidamente brasileiro. Negavam-se a
obedecer à nova ordem peruana, estando dispostos a repelir os
alienígenas pela força das armas. Em desdobramento do plano de domínio
político do Alto-Juruá (e também do Alto-Purus), o Governo de Lima deu
instruções ao seu Consulado em Belém para que estabelecesse normas de
despacho das mercadorias conduzidas pelos navios ao Alto-Juruá e
Alto-Purus, onde, nos Portos do Amônea e do Chandless, deveriam
apresentar documentação expedida por aquele Consulado.
Um
aviso, a esse respeito, saiu nos jornais do Pará. O fato provocou um
movimento de protesto dos comerciantes paraenses ao Governador Augusto
Montenegro, a quem relataram a situação anômala surgida com a exigência
do cônsul peruano. O Governador transmitiu as reclamações do comércio ao
Ministro do Exterior, que veio esclarecer o ponto de vista do Governo
Federal: o Brasil não reconhecia os Postos do Amônea e do Chandless, e,
portanto, os carregadores de mercadorias que se destinassem ao
Alto-Juruá e Alto-Purus nenhum dever tinham de legalizar papéis no
Consulado do Peru. Embora o Chanceler Rio Branco estivesse, a essa
época, absorvido nas conversações com os plenipotenciários da Bolívia,
acompanhava, “pari passu”, as ocorrências políticas naqueles longínquos
afluentes do Amazonas.
Nos volumes Recortes de Jornais,
organizados por ordem de Rio Branco, encontra-se todo o noticiário da
época a respeito dos sucessos no Alto Purus e no Alto-Juruá. De vez em
vez o Barão anotava observações à margem desse documentário.
Respondendo
ao Ministro do Peru, o qual lhe havia dirigido Nota sobre a ordem do
Cônsul de seu país em Belém, Rio Branco disse que:
certamente o Peru tem o direito de
criar em território que seja incontestavelmente seu as estações fluviais
que lhe aprouver, mas não pode estabelecê-los, como ultimamente fez, em
territórios sobre que o Brasil entende ter direito. Neste caso se acham
os que formam as Bacias do Alto-Juruá e Alto-Purus, onde, ao contrário
do que afirma o Sr. Ministro, por mal informado, o Governo do Peru nunca
havia exercido atos de jurisdição, e cuja população, em sua quase
totalidade, é notoriamente brasileira.
E termina, categórico:
Mantenho a declaração: o Governo
Brasileiro não reconhece os Postos Aduaneiros peruanos do Amônea e do
Chandless. Este último já não existe, o outro, no interesse das boas
relações entre os dois países, deve ser retirado, como o foi, a pedido
do Governo peruano, a Coletoria Amazonense que ali existia. (Nota de Rio
Branco ao Ministro Amador del Solar, 24.12.1903 - Arquivo Histórico do
Itamarati)
A
situação no Juruá era tumultuosa. No exercício de práticas aduaneiras, a
“Comisaría” coarctava (reduzia a limites mais estritos) a liberdade dos
brasileiros, exigindo pela força o pagamento de tributos. Para causar
efeito psicológico solenizavam, diariamente, o ato de içar e arriar a
bandeira peruana, diante do pelotão em armas. Os navios tinham de trazer
o pavilhão no Peru içado no mastro de popa. Assumira o comando do
Destacamento Militar o Tenente Dagoberto Arriaran, após uma viagem
aventurosa, desde Manaus, sob o disfarce de caixeiro-viajante.
O
oficial, vindo de Iquitos, tomara o vapor na capital amazonense, mas
durante a viagem foi reconhecido como agente peruano e quase é
desembarcado num barranco qualquer, por instâncias dos passageiros.
Salvou-o de tal sorte os seus rogos e protestos de inocência. O Tenente
Arriaran tornou-se o responsável por uma série de coações praticadas na
Foz do Amônea: os navios tinham de parar no Posto peruano, a fim de se
submeter a cobrança fiscal, ao exame da carga, dos documentos, e muitas
vezes os recalcitrantes eram chamados a fala com tiros de rifle.
A
“Comisaría”, no intuito de alargar por todos os meios a tardia
influência do Peru naqueles sítios, decretou novos tributos que
incidiram no consumo, no trânsito fluvial, na exportação de produtos e
na importação de gêneros e mercadorias. Aos moradores do Alto-Juruá o
Comissário dirigiu circulares comunicando a obrigatoriedade de registro
de nomes dos seringais, sob ameaça de penas severas caso as
determinações da “Comisaría” não fossem cumpridas. Denúncias chegaram a
Manaus de que aportariam ao Amônea, pelo varadouro do Ucaiali, mais
duzentos homens do exército regular. Isto seria o preparo de uma
ofensiva com maior raio de ação: a cidade de São Filipe.
As “Comisarías” peruanas no
Alto-Juruá e no Alto-Purus foram criadas por lei, em setembro de 1901,
segundo informou o Encarregado de Negócios do Brasil em Lima, Alfredo
Carlos Alcoforado, quem primeiro transmitiu a Rio Branco a notícia de
serem essas repartições instituídas pelo Prefeito de Iquitos, autorizado
pelo Ministro do Exterior. Havia um projeto (continua o informe de
Alcoforado) a ser submetido ao Congresso, legalizando-as como “Capitanías de Puerto y Comisarías fluviales en el Río Alto Yuruá y Purus, con residencia en Puerto Iquitos y Boca del Chandless”
(Ofício de 26.07.1903). Finalmente, Alcoforado comunicou a aprovação
legislativa da medida, logo sancionada pelo Executivo (Ofício e
telegrama de 11.09.1903 - Arquivo Histórico do Itamarati).
Reinava
este estado de coisas no Alto-Juruá e no Alto-Purus, em fins de 1903,
quando Rio Branco, após concluir o ajuste, de 17 de novembro, com a
Bolívia, passou a tratar exclusivamente o caso do Peru. O Chanceler
brasileiro iniciava a fase dinâmica das negociações para obter um
arranjo que viesse pôr cobro (termo) aos desentendimentos entre os dois
países. (TOCANTINS, 1989)
Fontes:
COSTA, Craveiro. A Conquista Ocidental do Deserto Ocidental – Brasil – São Paulo – Companhia Editora Nacional, 1940.
CUNHA, Euclides. Contrastes e Confontos – Brasil – Rio de Janeiro – Editora Record, 1975.
TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre, Volume II – Brasil – Brasília – Conselho Federal de Cultura e Governo do Estado do Acre, 1989.
- Livro do Autor
O livro “Desafiando o Rio-Mar –
Descendo o Solimões” está sendo comercializado, em Porto Alegre, na
Livraria EDIPUCRS – PUCRS, na rede da Livraria Cultura (http://www.livrariacultura. com.br) e na Associação dos Amigos do Casarão da Várzea (AACV) – Colégio Militar de Porto Alegre.
Para visualizar, parcialmente, o livro acesse o link:
Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil - RS (AHIMTB - RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional.
E-mail: hiramrs@terra.com.br
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