viomundo - publicado em 2 de maio de 2013 às 23:07
por Gustavo Costa, especial para o Viomundo
Erastótenes foi escolhido dias antes, como é de praxe no Ministério
do Trabalho, para fiscalizar e combater o trabalho forçado em
propriedades rurais da região de Unaí, em Minas Gerais.
Segundo a investigação das Polícias Federal e Civil, Eratóstenes de
Almeida Gonçalves, João Batista Soares e o motorista Aílton Pereira
foram executados com tiros na cabeça apenas por acompanhar o alvo
principal, o fiscal Nelson José da Silva.
A matança dos três auditores do Ministério do Trabalho e do motorista
que os acompanhava, em 28 de janeiro de 2004, ficou conhecida como
Chacina de Unaí.
O valor da “encomenda” dobrou depois que pistoleiros e mandantes
descobriram que teriam que matar outras três pessoas além de Nelson.
Nelson batia de frente com o latinfúndio e fora ameaçado algumas vezes antes da chacina.
Uma delas, por Norberto Mânica, acusado de ser um dos mandantes: ” Só
vou acabar com as perseguições à minha pessoa quando eu der um tiro na
cabeça de um fiscal do trabalho”.
Norberto é irmão de Antério Mânica, outro acusado de encomendar o
crime. Eleito duas vezes prefeito de Unaí pelo PSDB, ele nega
participação e diz que hoje já não conversa com o irmão.
Segundo o Ministério Público Federal, além dos irmãos Antério e
Norberto Mânica, outras sete pessoas tiveram participação na chacina.
Hugo Pimenta e José Aberto de Castro, o Zezinho, empresários de sucesso na produção de grãos, teriam sido os intermediários.
Francisco Helder Pinheiro, conhecido como Chico Pinheiro, o homem que contratou os pistoleiros.
Erinaldo Silva e Rogério Alan Rocha, os matadores.
Willian de Miranda, motorista dos bandidos.
E Humberto dos Santos, o responsável por tentar apagar os rastros da quadrilha.
Estão presos os pistoleiros e o motorista deles. Chico Pinheiro morreu em janeiro deste ano.
O julgamento dos acusados de encomendar o crime ainda não foi marcado.
A seguir, entrevista com Marinês Lina de Laia, viúva do fiscal
Erastótenes, que expressa a dor das famílias e amigos das vítimas:
Se pudesse fazer uma avaliação, quais os prejuízos que a lentidão da Justiça causaram à senhora e à sua família?
Prejuízos… digamos que todo dano material, físico, psicológico
causado nas famílias; a sensação é de que você foi totalmente lesada,
perdeu.
Perdeu algo, assim, irreparável e a aparência é de que a Justiça não
está fazendo nada. Por mais que o processo caminhe, que os advogados, os
procuradores, o sindicato, as famílias se empenhem em lutar contra esse
crime, não tem um resultado.
Então, a sensação é que a gente está num prejuízo total. Só a familia
que perdeu, só as famílias. Nós perdemos maridos, pais, irmãos, amigos e
aí vai.
O prejuizo ficou aqui. É um buraco sem fim dentro da gente.
E com esta demora do processo, do julgamento, a sensação dentro da
gente é que a justiça não está sendo cumprida. Aliás, não está sendo
feita. Por mais que eles não vão voltar. Mas sabemos que só o dia que
isso for julgado, tudo concluido, que nós, as famílias, teremos sossego.
Por exemplo, vocês estão aqui: tem 9 anos, nós estamos recordando
coisas de 9 anos atrás. E isso mexe com a gente. É como se cada vez que
fosse falar disso a gente fosse lá enterrar os nossos mortos. É a mesma
coisa. A gente vive o dia, o drama que foi o velório, a notícia. Revive
tudo como se fosse hoje. Então, enquanto esse julgamento não for feito,
não for terminado, nós vamos ter que conviver com essa sensação de que
estamos perdendo. É tudo de novo, é massacrante, é cruel o que a Justiça
faz conosco.
Porque se terminasse, se julgasse a gente poderia falar, pronto: tem
agora só a nossa dor, a dor agora é só da família. Não precisa de mais
ninguém. Mas não, temos que relembrar e sabemos que é necessário
relembrar porque não podemos deixar morrer estes fatos, o que aconteceu.
Porque se a família cala, se a família não vai atrás…
Isso que nós estamos pedindo: por favor, nós precisamos dar um ponto
final, um basta nisso. Porque falar nisso dói muito, dói demais. As
feridas estão aqui ó, novas, vivas. Então, a gente precisa acabar com
isso.
A senhora consegue descrever a hora que recebeu a notícia?
Olha, fica sem chão. Até hoje tem hora que não acredito. Quando, por
exemplo, você fala pra mim: tem fotos? Quado eu vou olhar a foto não sei
o que é irreal o que é real, o que é mentira e o que é verdade. Eu
fico, o que aconteceu? Como? Parece que dentro da gente um lado não quer
aceitar aquele fato. Quando vejo a foto dele caído no carro do
Ministério do Trabalho, fico imaginando se é ele mesmo. É ele mesmo?
Sensação que ele pode estar aqui, estar vivo. Parece que fica uma
coisa assim, se não sabe o que é verdade e mentira. Ele saiu pra
trabalhar perfeito, deu beijo, abraço, eu volto na sexta feira. Na terça
à noite ele me ligou, tudo bem. Daí a uma semana a minha filha ia fazer
6 anos, era a festinha dela seis anos e eu fazendo lembrancinha,
programando festa.
A pessoa sair daqui bom, andando, feliz e alegre. Eles eram felizes, pessoas perfeitas, com família que os amava.
[Ajude Gustavo Costa a investigar a matança dos awa guajá no Maranhão, clicando aqui]
Como a senhora vê a questão de que eram agentes do Estado que
iam combater um crime — que não deveria mais existir no século 21 — e
foram brutalmente assassinados?
Uma incoerência, um disparate, século 21, tecnologia e aí? E a poucos
quilômetros de Belo Horizonte, em Minas Gerais mesmo, acontece uma
barbaridade destas. Ainda o coronelismo da séculos passados, acontecendo
nos dias de hoje. Isso é inadimissível. O fato que não deveria mais
existir pela modernidade, questão do tempo, da consciência que as
pessoas têm. E, de repente, você foi vítima no seu próprio Estado. Isso é
inconcebível, trabalho degradante, trabalho escravo, estas práticas que
eles estavam indo lá para cobrar.
É como se fosse assim, agora vou arrancar um pedaço de você!
Fui arrancada. De repente tive que ser o marido, a mulher, pai, mãe,
tudo eu. Porque eu tinha um esposo, era casada, tinha um marido e de
repente perdi isso. Até hoje eu sozinha pra tudo. Houve um desfalque
físico, emocional, da minha alma. Foi decepado, arrancado com violência,
fez aquele corte, arrancou de repente. Uma perda irreparável. Aqui
neste mundo nada paga este perda.
Nada repara. A Justiça vai ser feita, precisa ser feita para dar um fim, mas esta perda que nós tivemos, nada, nada.
Depois que esta Justiça da terra for feita é só mesmo a Justiça divina para aliviar.
Este conforto ainda não chegou?
Não chegou. Não. A gente fica lutando. É de passo em passo. Você
aprende a conviver com a situação, aprende a lidar com a nova realidade.
Aí você vai lidando, mas aquele desfalque, aquele buraco, aquela ferida
está lá. Você reaprende a viver, reaprende a caminhar.
A senhora não passou um dia sem pensar nele?
Com certeza, né? Eu ainda moro na mesma casa. Esta casa fomos nós que
construímos, nós que idealizamos. Eu nem sai da minha casa, moro aqui.
Como foi pra filha da senhora?
É complicado, muito. Ela perdeu o pai dela com seis anos de idade,
perdeu a oportunidade de conviver com um pai, de ter um pai, que a
amava, um pai que era presente. Uma filha que foi sonhada, idealizada
Como a senhora reagiu quando a juíza se declarou incompetente para julgar?
Olha, fiquei indignada, de ver como um juiz… Se eu tenho um cargo e
não tenho competência pra cumprir eu peço licença, digo não sou capaz de
assumir a função. Por exemplo, eu sou professora, como eu vou entrar
numa sala e dizer que não vou dar aula pra este turno, esta escola, esta
série, este aluno? Eu fiz concurso, então se eu não for competente tem
que exonerar, não dou conta mais, me sinto incapa
Como a senhora analisa ao ver os acusados de mando livres?
Falta Justiça, né? Falta Justiça.
Eles com tudo o que foi arquitetado, planejado, feito, estão lá
vivendo com as famílias, eles tem as famílias e a gente aqui no
prejuízo. Então, é sensação de impunidade, injustiça, de que pode fazer o
que quiser se você tem classe social, recurso financeiro. Você pode
fazer as suas leis, agir de acordo com os seus interesses porque a
Justiça não vai acontecer, vai demorar. Nove anos e não aconteceu nada!
A senhora acha que se os acusados de mando tivessem a mesma
condição social dos acusados de execução, o julgamento já teria
acontecido?
Claro! Tudo isso a gente sabe que é por questão social, econômica,
que neste Brasil infelizmente, o dinheiro fala alto, ele consegue dar
pra pessoa uma condição de escorregar, de se livar de muitas coisas.
Infelizmente, é pelo dinheiro, é pelo poder. Porque se fossem todos do
mesmo nível social dos executores, com certeza este crime já tinha sido
julgado e resolvido. Haja vista outros crimes que aconteceram e foram
julgados, onde os fazendeiros não eram tão ricos e influentes como estes
do caso Unaí.
A senhora foi comunicada quando da morte deles ?
Eles faleceram na quarta pela manhã, quando foi mais ou menos 11
horas três colegas do trabalho vieram aqui pra me dar a notícia. Eu não
sabia de nada.
Eu lembro direitinho. Estava me preparando pra sair com a minha filha
e meus sobrinhos, eles estavam de férias. Quando iamos almoçar e bateu a
campainha. Quando vi os colegas achei que era algumma coisa que ele
esqueceu e mandou pedir. Jamais pensaria tal coisa. Quando eles chegam e
perguntam: já viu TV hoje, já ouviu rádio? Eu disse não. É porque…
Eu disse não, tão brincando. Ela falou que eles tinham sido baleados,
mas não falou que eles estavam mortos. Mas a gente sempre acha que vai
salvar. Eu quando vi ele no caixão, não acreditei. Mesmo à noite,
ouvindo a reportagem, mas dentro de mim só quando vi no caixão, eu
coloquei a mão nele.
Quanto tempo de casados?
Nove anos.
Ele sempre foi aquele filho nascido de família simples, trabalhador.
Desde pequeno ele trabalhava, lembro que na adolescência ele saía
acompanhando o pai vendendo verdura, peixe. Sempre teve a preocupação
com a família, uma pessoa sempre preocupada com as questões sociais,
carismático, prezava a amizade. Aquela pessoa, aquele homem até perfeito
demais pra este mundo. Ah, é porque já foi! Quem conviveu com ele vai
poder confirmar quem era o Eratostenes. O pelido carinhoso dele era
Toti.
Ele chegou a falar de receio, ameaça?
Receio sempre tem. Como a gente sabe a estrutura social e politica do
país, quando você vê que vai lidar com pessoas que tem um poder
econômico mais influente, com certeza, não era só ele, são todos. No
fundo, dá aquele receio. É como diz o ditado: vamos ter que mexer em
peixe grande. Uma frase que não deveria existir. Existe e é prática.
Eratostenes, João, Nelson eram pessoas trabalhadoras, simples. Gente
que conseguiu estar neste cargo porque lutaram, trabalharam, suaram,
estudaram. Foi através de esforço porque família deles, dos três, digo
porque conheço, não tinham recursos financeiros para bancar faculdade.
Eles trabalharam lutaram. Trabalhadores, de origem simples.
A senhora acredita na Justiça?
Preciso acreditar. Se eu não acreditar, apesar de tudo o que eu
falei, ela vai e volta. Você precisa acreditar. Os fatos vem e te dão um
banho de água fria. Mas não posso perder a fé, se perder vou desanimar
de viver, de lutar. Então, por mais que os fatos venham a dizer que isso
está acontecendo, eu acredito que vai haver. Tenho que acreditar. Vai
acontecer o dia, esse dia em que as coisas vão chegar no lugar certo e
vai chegar o dia do julgamento, por um ponto final para a sociedade,
porque pra nós só vai acabar quando a gente for para onde eles estão.
Esta é a frase que eu mais quero falar: a Justiça foi feita, foi cumprida.
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