"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sexta-feira, maio 03, 2013

Marinês, mulher de fiscal assassinado: “É um buraco sem fim dentro da gente”

viomundo - publicado em 2 de maio de 2013 às 23:07

por Gustavo Costa, especial para o Viomundo
Erastótenes foi escolhido dias antes, como é de praxe no Ministério do Trabalho, para fiscalizar e combater o trabalho forçado em propriedades rurais da região de Unaí, em Minas Gerais.
Segundo a investigação das Polícias Federal e Civil, Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares e o motorista Aílton Pereira foram executados com tiros na cabeça apenas por acompanhar o alvo principal, o fiscal Nelson José da Silva.
A matança dos três auditores do Ministério do Trabalho e do motorista que os acompanhava, em 28 de janeiro de 2004, ficou conhecida como Chacina de Unaí.
O valor da “encomenda” dobrou depois que pistoleiros e mandantes descobriram que teriam que matar outras três pessoas além de Nelson.
Nelson batia de frente com o latinfúndio e fora ameaçado algumas vezes antes da chacina.
Uma delas, por Norberto Mânica, acusado de ser um dos mandantes: ” Só vou acabar com as perseguições à minha pessoa quando eu der um tiro na cabeça de um fiscal do trabalho”.
Norberto é irmão de Antério Mânica, outro acusado de encomendar o crime. Eleito duas vezes prefeito de Unaí pelo PSDB, ele nega participação e diz que hoje já não conversa com o irmão.
Segundo o Ministério Público Federal, além dos irmãos Antério e Norberto Mânica, outras sete pessoas tiveram participação na chacina.
Hugo Pimenta e José Aberto de Castro, o Zezinho, empresários de sucesso na produção de grãos, teriam sido os intermediários.
Francisco Helder Pinheiro, conhecido como Chico Pinheiro, o homem que contratou os pistoleiros.
Erinaldo Silva e Rogério Alan Rocha, os matadores.
Willian de Miranda, motorista dos bandidos.
E Humberto dos Santos, o responsável por tentar apagar os rastros da quadrilha.
Estão presos os pistoleiros e o motorista deles. Chico Pinheiro morreu em janeiro deste ano.
O julgamento dos acusados de encomendar o crime ainda não foi marcado.
A seguir, entrevista com Marinês Lina de Laia, viúva do fiscal Erastótenes, que expressa a dor das famílias e amigos das vítimas:
Se pudesse fazer uma avaliação, quais os prejuízos que a lentidão da Justiça causaram à senhora e à sua família?
Prejuízos… digamos que todo dano material, físico, psicológico causado nas famílias; a sensação é de que você foi totalmente lesada, perdeu.
Perdeu algo, assim, irreparável e a aparência é de que a Justiça não está fazendo nada. Por mais que o processo caminhe, que os advogados, os procuradores, o sindicato, as famílias se empenhem em lutar contra esse crime, não tem um resultado.
Então, a sensação é que a gente está num prejuízo total. Só a familia que perdeu, só as famílias. Nós perdemos maridos, pais, irmãos, amigos e aí vai.
O prejuizo ficou aqui. É um buraco sem fim dentro da gente.
E com esta demora do processo, do julgamento, a sensação dentro da gente é que a justiça não está sendo cumprida. Aliás, não está sendo feita. Por mais que eles não vão voltar. Mas sabemos que só o dia que isso for julgado, tudo concluido, que nós, as famílias, teremos sossego.
Por exemplo, vocês estão aqui: tem 9 anos, nós estamos recordando coisas de 9 anos atrás. E isso mexe com a gente. É como se cada vez que fosse falar disso a gente fosse lá enterrar os nossos mortos. É a mesma coisa. A gente vive o dia, o drama que foi o velório, a notícia. Revive tudo como se fosse hoje. Então, enquanto esse julgamento não for feito, não for terminado, nós vamos ter que conviver com essa sensação de que estamos perdendo. É tudo de novo, é massacrante, é cruel o que a Justiça faz conosco.
Porque se terminasse, se julgasse a gente poderia falar, pronto: tem agora só a nossa dor, a dor agora é só da família. Não precisa de mais ninguém. Mas não, temos que relembrar e sabemos que é necessário relembrar porque não podemos deixar morrer estes fatos, o que aconteceu. Porque se a família cala, se a família não vai atrás…
Isso que nós estamos pedindo: por favor, nós precisamos dar um ponto final, um basta nisso. Porque falar nisso dói muito, dói demais. As feridas estão aqui ó, novas, vivas. Então, a gente precisa acabar com isso.
A senhora consegue descrever a hora que recebeu a notícia?
Olha, fica sem chão. Até hoje tem hora que não acredito. Quando, por exemplo, você fala pra mim: tem fotos? Quado eu vou olhar a foto não sei o que é irreal o que é real, o que é mentira e o que é verdade. Eu fico, o que aconteceu? Como? Parece que dentro da gente um lado não quer aceitar aquele fato. Quando vejo a foto dele caído no carro do Ministério do Trabalho, fico imaginando se é ele mesmo. É ele mesmo?
Sensação que ele pode estar aqui, estar vivo. Parece que fica uma coisa assim, se não sabe o que é verdade e mentira. Ele saiu pra trabalhar perfeito, deu beijo, abraço, eu volto na sexta feira. Na terça à noite ele me ligou, tudo bem. Daí a uma semana a minha filha ia fazer 6 anos, era a festinha dela seis anos e eu fazendo lembrancinha, programando festa.
A pessoa sair daqui bom, andando, feliz e alegre. Eles eram felizes, pessoas perfeitas, com família que os amava.
[Ajude Gustavo Costa a investigar a matança dos awa guajá no Maranhão, clicando aqui]
Como a senhora vê a questão de que eram agentes do Estado que iam combater um crime — que não deveria mais existir no século 21 — e foram brutalmente assassinados?
Uma incoerência, um disparate, século 21, tecnologia e aí? E a poucos quilômetros de Belo Horizonte, em Minas Gerais mesmo, acontece uma barbaridade destas. Ainda o coronelismo da séculos passados, acontecendo nos dias de hoje. Isso é inadimissível. O fato que não deveria mais existir pela modernidade, questão do tempo, da consciência que as pessoas têm. E, de repente, você foi vítima no seu próprio Estado. Isso é inconcebível, trabalho degradante, trabalho escravo, estas práticas que eles estavam indo lá para cobrar.
É como se fosse assim, agora vou arrancar um pedaço de você!
Fui arrancada. De repente tive que ser o marido, a mulher, pai, mãe, tudo eu. Porque eu tinha um esposo, era casada, tinha um marido e de repente perdi isso. Até hoje eu sozinha pra tudo. Houve um desfalque físico, emocional, da minha alma. Foi decepado, arrancado com violência, fez aquele corte, arrancou de repente. Uma perda irreparável. Aqui neste mundo nada paga este perda.
Nada repara. A Justiça vai ser feita, precisa ser feita para dar um fim, mas esta perda que nós tivemos, nada, nada.
Depois que esta Justiça da terra for feita é só mesmo a Justiça divina para aliviar.
Este conforto ainda não chegou?
Não chegou. Não. A gente fica lutando. É de passo em passo. Você aprende a conviver com a situação, aprende a lidar com a nova realidade. Aí você vai lidando, mas aquele desfalque, aquele buraco, aquela ferida está lá. Você reaprende a viver, reaprende a caminhar.
A senhora não passou um dia sem pensar nele?
Com certeza, né? Eu ainda moro na mesma casa. Esta casa fomos nós que construímos, nós que idealizamos. Eu nem sai da minha casa, moro aqui.
Como foi pra filha da senhora?
É complicado, muito. Ela perdeu o pai dela com seis anos de idade, perdeu a oportunidade de conviver com um pai, de ter um pai, que a amava, um pai que era presente. Uma filha que foi sonhada, idealizada
Como a senhora reagiu quando a juíza se declarou incompetente para julgar?
Olha, fiquei indignada, de ver como um juiz… Se eu tenho um cargo e não tenho competência pra cumprir eu peço licença, digo não sou capaz de assumir a função. Por exemplo, eu sou professora, como eu vou entrar numa sala e dizer que não vou dar aula pra este turno, esta escola, esta série, este aluno? Eu fiz concurso, então se eu não for competente tem que exonerar, não dou conta mais, me sinto incapa
Como a senhora analisa ao ver os acusados de mando livres?
Falta Justiça, né? Falta Justiça.
Eles com tudo o que foi arquitetado, planejado, feito, estão lá vivendo com as famílias, eles tem as famílias e a gente aqui no prejuízo. Então, é sensação de impunidade, injustiça, de que pode fazer o que quiser se você tem classe social, recurso financeiro. Você pode fazer as suas leis, agir de acordo com os seus interesses porque a Justiça não vai acontecer, vai demorar. Nove anos e não aconteceu nada!
A senhora acha que se os acusados de mando tivessem a mesma condição social dos acusados de execução, o julgamento já teria acontecido?
Claro! Tudo isso a gente sabe que é por questão social, econômica, que neste Brasil infelizmente, o dinheiro fala alto, ele consegue dar pra pessoa uma condição de escorregar, de se livar de muitas coisas. Infelizmente, é pelo dinheiro, é pelo poder. Porque se fossem todos do mesmo nível social dos executores, com certeza este crime já tinha sido julgado e resolvido. Haja vista outros crimes que aconteceram e foram julgados, onde os fazendeiros não eram tão ricos e influentes como estes do caso Unaí.
A senhora foi comunicada quando da morte deles ?
Eles faleceram na quarta pela manhã, quando foi mais ou menos 11 horas três colegas do trabalho vieram aqui pra me dar a notícia. Eu não sabia de nada.
Eu lembro direitinho. Estava me preparando pra sair com a minha filha e meus sobrinhos, eles estavam de férias. Quando iamos almoçar e bateu a campainha. Quando vi os colegas achei que era algumma coisa que ele esqueceu e mandou pedir. Jamais pensaria tal coisa. Quando eles chegam e perguntam: já viu TV hoje, já ouviu rádio? Eu disse não. É porque…
Eu disse não, tão brincando. Ela falou que eles tinham sido baleados, mas não falou que eles estavam mortos. Mas a gente sempre acha que vai salvar. Eu quando vi ele no caixão, não acreditei. Mesmo à noite, ouvindo a reportagem, mas dentro de mim só quando vi no caixão, eu coloquei a mão nele.
Quanto tempo de casados?
Nove anos.
Ele sempre foi aquele filho nascido de família simples, trabalhador. Desde pequeno ele trabalhava, lembro que na adolescência ele saía acompanhando o pai vendendo verdura, peixe. Sempre teve a preocupação com a família, uma pessoa sempre preocupada com as questões sociais, carismático, prezava a amizade. Aquela pessoa, aquele homem até perfeito demais pra este mundo. Ah, é porque já foi! Quem conviveu com ele vai poder confirmar quem era o Eratostenes. O pelido carinhoso dele era Toti.
Ele chegou a falar de receio, ameaça?
Receio sempre tem. Como a gente sabe a estrutura social e politica do país, quando você vê que vai lidar com pessoas que tem um poder econômico mais influente, com certeza, não era só ele, são todos. No fundo, dá aquele receio. É como diz o ditado: vamos ter que mexer em peixe grande. Uma frase que não deveria existir. Existe e é prática.
Eratostenes, João, Nelson eram pessoas trabalhadoras, simples. Gente que conseguiu estar neste cargo porque lutaram, trabalharam, suaram, estudaram. Foi através de esforço porque família deles, dos três, digo porque conheço, não tinham recursos financeiros para bancar faculdade. Eles trabalharam lutaram. Trabalhadores, de origem simples.
A senhora acredita na Justiça?
Preciso acreditar. Se eu não acreditar, apesar de tudo o que eu falei, ela vai e volta. Você precisa acreditar. Os fatos vem e te dão um banho de água fria. Mas não posso perder a fé, se perder vou desanimar de viver, de lutar. Então, por mais que os fatos venham a dizer que isso está acontecendo, eu acredito que vai haver. Tenho que acreditar. Vai acontecer o dia, esse dia em que as coisas vão chegar no lugar certo e vai chegar o dia do julgamento, por um ponto final para a sociedade, porque pra nós só vai acabar quando a gente for para onde eles estão.
Esta é a frase que eu mais quero falar: a Justiça foi feita, foi cumprida.


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