por Marcos Dantas
[*]
entrevistado por Coryntho Baldez
entrevistado por Coryntho Baldez
UFRJ Plural – Muitos dos que defendem e ajudam a construir uma internet
livre, como Julian Assange, o criador do WikiLeaks, temem que ela se transforme
em centro de vigilância dos cidadãos por parte de Estados
imperiais. Qual a sua avaliação sobre isso?
Marcos Dantas – Acho que é uma preocupação
importante, lúcida e necessária. Mas, sob esse aspecto,
também há controle da vida do cidadão por parte das
grandes corporações capitalistas. Não é só o
Estado que preocupa. Diria até que é menos o Estado que preocupa.
Isto porque, se o Estado é democrático, ele também pode
ser vigiado pelos cidadãos. As grandes corporações
privadas não. As pessoas não sabem o que é feito com os
seus dados. E as organizações privadas não somente
controlam e fazem dessas informações uma fonte de muito dinheiro,
mas também podem exercer um controle ético e político
sobre os indivíduos. E, eventualmente, ser fonte de
informação para o próprio Estado.
UFRJ Plural – A política de privacidade do Google tem sido alvo de
várias críticas. No início deste mês, inclusive,
alguns governos da Europa decidiram investigá-la mais a fundo. Por
quê?
Marcos Dantas – Eles temem exatamente que corporações como o
Google, o Facebook, a Microsoft e a Apple substituam o Estado no controle do
cidadão. E passem a deter informações e orientar as
práticas das pessoas em função dos interesses delas, e
não dos interesses públicos. Essas corporações
não são públicas e, hoje, são detentoras de enorme
quantidade de informações cotidianas de todos nós, de
hábitos e gostos, que o próprio Estado não possui. Elas
têm informações até sobre a nossa saúde, o
nosso nível educacional, as nossas opções
políticas, religiosas, que o Estado não tem. Com isso, passam a
ter o poder de orientar a vida dos cidadãos.
UFRJ Plural – Os usuários do Google e das redes de relacionamento,
especialmente o Facebook, têm alguma ideia do uso de suas
informações privadas para obtenção de lucro,
à sua revelia?
Marcos Dantas – Nenhuma. Vou contar um caso pessoal que estou vivendo
neste exato momento. Há alguns dias, comprei um smartphone mais moderno.
E acabo de descobrir que, se eu quiser fazer uma transferência de um
arquivo de números telefônicos que está no meu computador
para o aparelho, tenho que jogá-lo numa nuvem controlada pela Microsoft.
O atendente da loja afirmou que só é possível fazer essa
transferência dessa maneira. Ora, não vou dar as minhas
informações privadas e meus contatos para a Microsoft. Fui muito
claro. Disse que não faço nada na nuvem. Eu vivo na Terra, e
não nas nuvens. Então, não vou transferir meus dados para
a Microsoft.
UFRJ Plural – Isso ocorre em qualquer sistema operacional?
Marcos Dantas – Comprei um com windows phone [sistema operacional
móvel desenvolvido pela Microsoft], da marca Nokia. Mas com o sistema
android acontece o mesmo. Quando alguém compra um smartphone, a primeira
coisa que faz é se conectar à internet. Abrir um endereço
no Google, se for android, ou então na Microsoft, se for o windows
phone. A partir daí, toda transação que se fizer pelo
smartphone, seja baixar um dado ou marcar uma agenda, vai passar pelos
servidores de uma dessas duas corporações. Por exemplo, se eu
marcasse no aparelho a agenda da entrevista que estamos realizando, ela ficaria
reigstrada na Microsoft. Ou seja, o meu cotidiano é controlado. Quando
as pessoas usam o smartphone para qualquer tipo de transação,
não têm a menor consciência de que estão fazendo um
trabalho de graça para essas empresas. É a mais-valia mais
absoluta que existe no mundo, um traballho gratuito para enriquecer o Bill
Gates. E também um repasse de informações poderosas para
que essas organizações possam controlar o mundo.
UFRJ Plural – Mas não há o risco de essas
informações migrarem para Estados de caráter imperial para
que se faça uma vigilância política sobre os
cidadãos?
Marcos Dantas – Não tenho nenhuma dúvida de que, na
história dos Estados Unidos, as grandes corporações, ao
longo de todas as épocas, desde os tempos da famosa Standard Oil, sempre
foram instrumentos da política imperial norte-americana. E vice-versa,
ou seja, o Estado abria caminho para a expansão de suas grandes
empresas. As novas corporações norte-americanas, como o Google e
a Microsoft, se já não são, serão instrumentos do
poder imperial, numa perfeita simbiose.
UFRJ Plural – Existem na rede iniciativas com potencial libertário,
como o WikiLeaks, e também sites e blogueiros que fazem circular
informações omitidas na mídia tradicional. Essas
iniciativas ainda não são capazes de contrabalançar a
influência que o grande capital exerce sobre a internet?
Marcos Dantas – Não, porque se baseiam em princípios, na
minha avaliação, equivocados. Elas não colocam a
crítica ao capital como fundamento das suas propostas. Se isso
não acontecer, essas inciativas permanecerão no plano do
idealismo. Obviamente, permitem chamar a atenção e alertar a
sociedade de que outro mundo é possível, o que é um
aspecto positivo. Mas elas não colocam em questão o cerne do
problema, o fato de que quem alimenta essa engrenagem são as
relações capitalistas de produção e o capital.
UFRJ Plural – A Primavera Árabe é apontada como exemplo de
que a internet também pode estar a serviço de movimentos
democráticos de massa, de um novo modo de fazer política. Qual a
sua avaliação sobre isso?
Marcos Dantas – Na verdade, superestimaram essas tecnologias. Elas foram
usadas como meio de comunicação e, dessa forma, são
extremamente eficientes. Em vez de eu pegar o telefone para convocar
alguém para uma reunião, posso usar o Twitter ou o Facebook, e
fazer isso com muito mais velocidade. Mas as grandes
manifestações não são espontâneas. Vou dar um
exemplo de uma época em que a internet não existia. Em 1968,
mataram um estudante no Rio de Janeiro, o Edson Luís, e uma semana
depois 100 mil pessoas estavam nas ruas protestando contra a ditadura militar.
Mas esse fato foi apenas o estopim que gerou uma mobilização
extraordinária. Antes já havia um processo de debate
político acumulado entre jovens universitários, além de
partidos políticos clandestinos atuantes. Se, por hipótese, os
debates e reuniões que se faziam para discutir ações de
resistência tivessem sido feitos em redes de amigos de Facebook, a
polícia bateria em cima nos primeiros encontros. Outro exemplo foi
quando o Collor estava sofrendo o processo de impeachment e convocou o povo a
usar verde e amarelo. Como já havia uma mobilização contra
o governo, os brasileiros usaram o preto como forma de protesto, numa
manifestação nacional que não precisou de Twitter ou
Facebook para acontecer. E na Primavera Árabe um dos líderes das
mobilizações no Egito era um executivo do Google. Isso já
diz tudo.
UFRJ Plural – Pode-se considerar preocupante o fato de todas as
comunicações via internet da América Latina para a Europa
ou a Ásia passarem pelos Estados Unidos?
Marcos Dantas – Pior do que isso. Cerca de 70% das
comunicações da internet no mundo estão nas mãos de
uma única empresa norte-americana, chamada
Level Three
.
UFRJ Plural – E como isso funciona?
Marcos Dantas – A rigor, para que a internet funcione, é preciso
uma imensa estrutura física. O mundo virtual é mera ideologia.
São necessários cabos, satélites, torres, servidores
espalhados pelo mundo. É uma estrutura caríssima. Fazer um blog
é barato, basta dispor de tempo, mas não seria possível
sem essa estrutura física, que requer milhares de milhões de
dólares
de capital. Como ela é muito cara, poucas organizações no
mundo podem fazer os investimentos necessários para construí-la e
operá-la. Ou o Estado constrói esse tipo de estrutura, e hoje em
dia ele não faz mais isso, ou grandes corporações
financeiras o fazem. E é exatamente o capital financeiro que está
por trás da Level Three, da AT&T, da British Telecom ou da
Telefônica. Basicamente, as estruturas de comunicação
servem ao capital financeiro nas transferências de fundos ao redor dos
mercados mundiais.
UFRJ Plural – Essas redes passam, então, pelo centro de poder do
capital financeiro?
Marcos Dantas – Sim, e obviamente pelos centros de poder militar
também. Como acontece desde o tempo da telegrafia, essa infraestrutura
tem sempre, acima do Equador, uma direção horizontal, ou seja,
Estados Unidos, Europa e, cada vez mais, o Japão. E no sul tem uma
direção sul-norte, da América do Sul para os Estados
Unidos e para a Europa. Então, é claro que, se houver uma
série crise internacional, essa configuração pode pesar na
balança. Se o Brasil quiser fazer hoje uma comunicação com
a África, terá que, necessariamente, passar pela Europa.
UFRJ Plural – Julian Assange afirma que a China está oferecendo a
alguns países da África a construção de
infraestrutura de backbones de acesso à internet em troca de grandes
contratos comerciais. E aponta isso como a possibilidade de se configurar um
novo colonialismo no século XXI. Como você avalia essa
questão?
Marcos Dantas – Da mesma maneira que, no século XIX, os ingleses
construíram ferrovias no Brasil e na Argentina. No Brasil, em São
Paulo, para escoar café. E na Argentina, em Buenos Aires, para escoar
carne. Na Índia, construíram uma malha ferroviária
importante porque precisavam dela para movimentar o seu exército, porque
lá a briga era dura. Portanto, os meios de comunicação
sempre foram instrumentos fundamentais na geopolítica do poder. E a
China está hoje construindo uma alternativa de poder geopolítico
aos Estados Unidos, olhando os seus interesses muito bem olhados. Está
sabendo por onde pode se expandir, e com muita inteligência.
UFRJ Plural – Por quê?
Marcos Dantas – Porque a África é um continente que foi
completamente abandonado pelo Ocidente, depois de ter sido espoliada até
dizer chega. É um estorvo para o grande capital o que fazer com aquela
região. Quando eles estão se matando em alguma guerra e os
humanistas pedem intervenção para evitar um genocídio,
qual é a reação do grande capital e de seus governos?
Deixa se matarem! É o que acontece a todo instante nos mais variados
lugares da África. Só intervieram no Mali porque lá tem
urânio, matéria-prima que interessa à França porque
70% da energia do país é nuclear. Então, a China, com a
velha estratégia de avançar pelo elo mais fraco, está se
expandindo na África a fim de construir cabeças de ponte para um
projeto estratégico de longo prazo.
UFRJ Plural – Há um controle subterrâneo, invisível,
da grande rede. Mas existem tentativas de oficializar o controle do
próprio conteúdo produzido na internet. É o caso de duas
legislações que estavam sendo discutidas no Congresso
norte-americano, a
Sopa
(Lei de Combate à Pirataria On-line) e a
Pipa
(Lei de Prevenção a Ameaças On-line à Criatividade
Econômica e ao Roubo da Propriedade Intelectual). Por que essas
iniciativas ainda não vingaram?
Marcos Dantas – Em que pese meus amigos ciberativistas acharem que tem a
ver com a luta deles, que eu compartilho e considero importante, a razão
é outra. O fato é que o grande capital ainda não entrou em
acordo sobre como fazer essa regulamentação. E a Sopa evidenciou
isso muito bem. De um lado estava Hollywood e, do outro, o Google. Faltam ainda
determinados acertos políticos e jurídicos entre as grandes
corporações capitalistas para essas legislações
vingarem.
UFRJ Plural – E que divergências são essas?
Marcos Dantas – A questão mais importante para o capital hoje
não é a terra, mas o direito intelectual. É a patente, a
marca, o direito autoral. O capital, hoje, se move em cima de um tipo de valor
que não é mercadoria, ou seja, não é algo
apropriável e cambiável. Quando o padeiro vende meia dúzia
de pães, a cesta dele ficou com menos seis unidades de pães. E o
caixa do padeiro aumentou com o dinheiro usado para comprar os pães,
fruto do trabalho da pessoa que os adquiriu. Tem-se aí uma troca real,
uma troca de equivalentes. Quando a indústria cinematográfica
coloca um filme no mercado, não fica com menos filmes na sua estante.
Há uma capacidade infinita de reproduzi-lo. Aqui não há
troca, mas um licenciamento. Então, é preciso criar regimes para
assegurar que aquelas pessoas que vejam o filme não possam
replicá-lo a custo zero. Esse regime, em princípio, é o
reconhecimento do direito autoral.
UFRJ Plural – E para garanti-lo é necessária uma
série de controles?
Marcos Dantas – Sim. Como o reconhecimento do direito autoral, em si,
não assegura que as pessoas não "pirateiem", criam-se
estruturas físicas para isso, como o
DRM
[dispositivo para restringir a
difusão e duplicação de cópias de conteúdos
digitais]. Outro tipo de controle é o acesso a conteúdo por meio
de pagamento, como é o caso de TVs por assinatura ou dos novos sistemas
de smartphones. São estruturas criadas para garantir que as pessoas
somente tenham acesso a uma música ou a um filme se tiverem um
determinado terminal conectado a uma rede paga. Esse tipo de
comercialização em que se baseia a rentabilidade de Hollywood e
outras indústrias culturais ainda não conseguiu se adequar, por
inteiro, ao outro modelo de negócios que vem sendo proposto pelo Google,
pela Apple, enfim, pelas empresas que já nasceram no sistema reticular,
ou seja, no sistema em rede.
UFRJ Plural – Fale mais sobre esse novo modelo.
Marcos Dantas – A rentabilidade desse modelo de negócios que o
Google vem tentando construir está totalmente calcada na
informação e na negociação dessa
informação. É um modelo que defende a
liberação das práticas sociais, ou seja, as pessoas podem
fazer o que bem entenderem na rede. Mas, como falamos no início, toda
essa movimentação está sendo monitorada, manipulada,
tratada por algoritmos poderosos, com o objetivo de vender
informação.
UFRJ Plural – E essas legislações que preveem o bloqueio de
sites acusados de desrespeitar o direito autoral podem ir contra esse modelo?
Marcos Dantas – Exatamente isso. O Google está propondo uma
alternativa. Vou dar um exemplo. Se todo mundo vai ter um smartphone, ele deve
estar ligado a uma loja, seja iTunes, Nokia ou Samsung. Da mesma forma, o
tocador Blu-ray também deve estar ligado a uma loja. No momento em que
todo mundo estiver na rede, aí será possível construir
esse pacto.
UFRJ Plural – O movimento
Cypherpunks
defende a criptografia como forma de
preservar os direitos civis das pessoas e também a soberania e a
autodeterminação dos povos. Como você avalia essa proposta?
Marcos Dantas – Pode ser uma alternativa interessante, mas, como já
ensinava Norbert Wiener, código é uma questão de tempo
para quebrar. Primeiro, é algo que exige um investimento técnico,
uma organização que trabalhe a criptografia. Os grandes Estados
nacionais trabalham com isso, em função de interesses
estratégicos. Mas os Estados Unidos, neste momento, demonstram grande
preocupação porque dizem que estão sofrendo ataques de
ciberinvasores. E dificilmente haverá um país mais criptografado
do que os Estados Unidos. Então, não sei se essa é a
questão.
UFRJ Plural – E qual é a questão?
Marcos Dantas – Acho que deveríamos passar por um processo
político que colocasse em questão o poder das grandes
corporações de controlar a grande rede e, a partir daí,
controlar a vida dos cidadãos.
16/Abril/2013
[*]
(*) Entrevista publicada na edição de 15/abril/2013 do UFRJ Plural,
boletim eletrônico da Coordenadoria de Comunicação da UFRJ.
O original encontra-se em www.plural.ufrj.br/007/entrevista.php
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