Folha de São Paulo - 3 jul 2013
Vladimir Safatle
Assim como o povo brasileiro, o povo da pequena Islândia um dia
descobriu que estava em crise de representação. A crise econômica lhes
havia mostrado a relação profundamente incestuosa entre classe política,
imprensa e interesses econômicos do sistema financeiro.
Essa situação não seria superada por meio da troca dos partidos no
comando, pois crises de representação exigem um movimento de outra
natureza. Elas só podem ser realmente superadas quando saímos da própria
esfera da representação, ou seja, quando fazemos apelo a uma força
política bruta e instituinte fora do universo da representação.
Com essa consciência em mente, o povo islandês decidiu que era hora de
ter outra Constituição. Mas, em vez de chamar juristas e políticos para
preparar um esboço inicial do texto constitucional, eles fizeram algo
mais ousado: mandaram, ao acaso, 950 cartas convocando 950 cidadãos a se
reunirem em um estádio a fim de preparar as bases do que seria
discutido na Assembleia Constituinte.
Essa incrível confiança no acaso, essa crença de que o acaso é o nome
que desperta a potência da invenção democrática não foi a porta aberta
para todos os delírios possíveis. Sua Constituição é uma das mais
fantásticas peças da democracia contemporânea.
Há um tipo de pessoa incapaz de ter o único sentimento que realmente
funda a democracia: confiança no povo. Para tais pessoas, toda vez que o
povo é chamado à cena da instauração política, isso só pode significar
convite ao caos e à desordem. O povo só pode aparecer dentro de um filme
cujo cenário já está desenhado de antemão, seja para sorrir no dia da
"festa eleitoral", seja para plebiscitar perguntas que a classe política
previamente decidiu.
Nesse sentido, a única ideia sensata depois de semanas de ações
paliativas para aplacar as manifestações populares foi a proposta de uma
constituinte da reforma política capaz de colocar em questão todo o
sistema atualmente em funcionamento. A ideia era tão sensata que foi
abandonada em menos de 24 horas.
No seu lugar, ficou um plebiscito canhestro, em que a população será
chamada a responder perguntas que ela não colocou. Ou alguém imagina que
o povo brasileiro foi às ruas para decidir se as eleições teriam lista
fechada ou aberta, voto distrital ou estadual? Há algo de piada de mau
gosto nesse tipo de manobra.
Se alguém realmente ouvisse a população em nossos governos, a solução
islandesa seria aplicada e as propostas de reforma política sairiam de
fóruns de participação direta pela sábia mão do acaso. Isso, entretanto,
seria pedir demais para quem, no fundo, tem medo das massas.
O que me preocupa nessa ideia da "constituinte específica" que todos consideram iluminada, é a de que a especificidade se perca na entrada do Congresso, e ela não se torne assim tão específica. Mas, que a coisa como tá sendo conduzida parece piada, parece.
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