viomundo - publicado em 24 de março de 2014 às 18:45
Júlio Cerqueira César Neto: “A Sabesp se transformou num balcão de negócios. Sucesso total no mundo dos negócios, fracasso total no mundo sanitário, na saúde pública”
por Conceição Lemes
Apesar de o nível do sistema Cantareira diminuir dia após dia, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) insiste: o racionamento de água está descartado em São Paulo.
A razão é óbvia: teme que a medida interfira nas eleições de 4 de outubro.
“Só que o governador e a Sabesp já estão fazendo racionamento e dizem que não vão fazer”, condena o engenheiro Júlio Cerqueira César Neto, professor aposentado de Hidráulica e Saneamento da Escola Politécnica da USP. “Ao não contar todas as coisas que está fazendo, o governador mente.”
“Na verdade, o racionamento começou há mais de dois meses”, denuncia. “A Sabesp já está cortando água em vários pontos da cidade de São Paulo e em municípios da região metropolitana, como Osasco, Guarulhos, São Caetano do Sul. Em português, o nome desses cortes é racionamento.”
“Só que essa forma de fazer o racionamento me parece completamente injusta, pois é dirigida aos pobres; vão deixar os ricos para o fim”, prossegue. “Se existe essa situação de crise total, todos têm de ser penalizados.”
Para o professor, o problema não é falta de chuvas, mas a falta de investimento em mananciais.
“O sistema de chuvas funciona de acordo com ciclos naturais da natureza. Esses ciclos de secas e enchentes, menos água, mais água – chamados de ciclos hidrológicos negativos –, ocorrem naturalmente. Nós não temos influência grande nisso”, explica. “Nosso sistema de abastecimento de água, portanto, deveria ser sido feito de forma a prevê-los e superá-los. Não é o aconteceu. Em 1985, São Paulo inaugurou o sistema Cantareira e o governo do Estado e a Sabesp, especialmente, cruzaram os braços.”
“A partir da década de 1990, a Sabesp aderiu ao modelo neoliberal e passou a buscar o lucro a qualquer custo, independentemente dos direitos fundamentais do homem”, observa o engenheiro. “Assim, deixou de considerar o saneamento básico como problema de saúde pública. E passou a encará-lo como um negócio qualquer.”
“A Sabesp se transformou num balcão de negócios. Sucesso total no mundo dos negócios, fracasso total no mundo sanitário, na saúde pública”, sentencia Júlio de Cerqueira César Neto.
“O volume morto do sistema Cantareira não é reserva estratégica coisa nenhuma e seu uso terá consequências”, avisa. “Tirar água do rio Paraíba do Sul para o Cantareira é mais uma jogada demagógica do governador.”
Por quê? Sugiro que leiam a íntegra da entrevista do professor Júlio Cerqueira César Neto até o final. É muito esclarecedora.
Viomundo – Em 2009, 2010 e 2011, a região metropolitana de São Paulo enfrentou grandes enchentes. O então governador José Serra (PSDB) debitou-as na conta de São Pedro e da população das periferias por jogar lixo e entulhos na rua. Agora, a situação é oposta. Há falta dramática de água. O governador Geraldo Alckmin (PSDB) responsabiliza a falta de chuvas pela crise de desabastecimento. O que acha disso?
Júlio Cerqueira César – O abastecimento de água e a drenagem são sistemas de infraestrutura urbana que têm as suas próprias lógicas e características.
Isso quer dizer o seguinte. O abastecimento depende de chuvas intensas para encher os reservatórios. Então, teoricamente quanto mais água tiver durante o ano, melhor. Teremos água para consumir. Quando isso não acontece, falta água.
O problema da enchente é o contrário. Quando o sistema de drenagem não tem capacidade para escoar as chuvas que ocorrem no período chuvoso, ele extravasa. É completamente oposto ao que acontece agora.
Infelizmente, temos deficiências nos dois sistemas. O nosso abastecimento de água está totalmente insuficiente em função das disponibilidades que o meio ambiente nos fornece. Se o governo do Estado tivesse feito há mais de 10 anos as obras de reforço necessárias, nós não teríamos falta d’ água hoje.
A mesma coisa acontece em relação às enchentes. Se o governo do Estado não aumentar a capacidade de drenagem dos nossos canais e rios, teremos enchentes.
Fiz até esta piada com a nossa situação.
O governador foi dormir com a dona Lu e falou:
– Oh, meu amor, reza para chover bastante. Senão a minha reeleição vai para o brejo…o volume dos reservatórios está diminuindo…
Ao que dona Lu respondeu:
– Mas meu bem, se eu pedir pra chover muito, a cidade vai ficar alagada, você vai perder a eleição do mesmo jeito.
Viomundo – Qual o peso da falta de chuvas na atual crise desabastecimento de água?
Júlio Cerqueira César – Vamos tirar a chuva da pauta de discussões, porque o sistema de chuvas, que é o clima, funciona de acordo com ciclos naturais da natureza. Esses ciclos de secas e enchentes, de menos água, mais água – chamados ciclos hidrológicos negativos –, ocorrem naturalmente. Nós não temos influência grande nisso.
Nosso sistema de abastecimento de água, portanto, deveria ser sido feito de forma a prevê-los e superá-los. Não é o aconteceu. Em 1985, São Paulo inaugurou o sistema Cantareira e o governo do Estado e a Sabesp, especialmente, cruzaram os braços.
Viomundo – O que deveria ter sido feito?
Júlio Cerqueira César — Em 1985, quando o Cantareira ficou pronto, ele abastecia com folga 100% da população que existia naquela época. E, ainda, tinha capacidade para fazer face às ocorrências cíclicas que a natureza nos proporciona. Era um sistema projetado para satisfazer as necessidades e não deixar a população sem água.
Tanto que de 1985 a 2003 não tivemos um problema de abastecimento de água. Fomos ter 2003, quando houve estiagem prolongada e o Cantareira quase entrou em colapso. A demanda de água de São Paulo era maior do que a disponibilidade dos nossos mananciais.
O que aconteceu? De 1985 a 2003, a população continuou crescendo. Só que não se investiu mais em mananciais.
Com a inauguração do Cantareira, não era para sentar na cadeira e dizer: agora eu não faço mais nada. Tinha e tem que continuar fazendo, porque a população cresce e eventos hidrológicos negativos variados acontecem.
Viomundo – E de 2003 para cá o que foi feito?
Júlio Cerqueira César – Nada! Há quase 30 anos São Paulo não investe em novos mananciais.
De 1985, quando o sistema Cantareira foi inaugurado, até 2003, quando tivemos a primeira situação complicada de desabastecimento, eles queimaram a “gordura” que o sistema tinha.
Acontece que não aprenderam nada com a crise de 2003 e continuaram a não tomar as providências indispensáveis e agora estamos nessa situação dramática.
Em certas regiões do mundo não tem água. Israel, por exemplo. Lá, eles não têm água e têm de se virar, pegar água do mar, desalinizar…
Nós, não. A região metropolitana de São Paulo dispõe do Vale da Ribeira, que tem água mais do que suficiente para o resto da vida da metrópole. E sem prejudicar os moradores de lá.
Então, o nosso problema não é falta d’água. É falta de investimento para ampliar o sistema como foi feito anteriormente com o Cantareira e que nos deixou em 1985 numa situação de abastecimento de gente civilizada.
Viomundo – O que deveria ter sido feito?
Júlio Cerqueira César – No dia seguinte à situação altamente favorável com a inauguração do Cantareira, a Sabesp deveria ter-se sentado à mesa para definir qual seria o próximo manancial a abastecer São Paulo dali a 10 anos.
E, aí, começar a programar a evolução do sistema ao longo do tempo em função de um crescimento de população que ela deveria imaginar que iria ocorrer. E ir fazendo investimentos, aumentando os mananciais, em função de uma previsão de crescimento da população.
Mas a Sabesp não fez isso. Ficou com os louros da vitória. E a população à revelia (risos) continuou crescendo.
Viomundo – Na prática, seria fazer o quê?
Júlio Cerqueira César — Ampliar os mananciais. E entre disponíveis, há o do Vale da Ribeira. Se lá atrás, a Sabesp tivesse feito obras para captar 20 m3/s do Vale do Ribeira, hoje não faltaria água.
Raciocine comigo. O sistema Cantareira foi inaugurado em 1985. Então, em 1990/1995, eles já deveriam começar as obras de novos mananciais. E poderiam fazer sem correrias, sem superfaturamento, e ir atendendo as necessidades da população de, repito, forma civilizada.
Viomundo – Como se captaria água do Vale da Ribeira, por exemplo?
Júlio Cerqueira César– No Alto Juquiá, nós temos o reservatório França. É como se fosse um imenso tanque que armazena água do rio Juquiá, que vai parar no Ribeira, lá embaixo. Ele tem capacidade de 20m3/s. Nós poderíamos ter providenciado a captação desses 20 m3/s, para mandá-los para São Paulo.
Agora, são obras complexas. Entre programar e executar, elas demoram aproximadamente dez anos.
Vamos supor que, em 1995, a Sabesp tivesse começado as obras do França, não tinha faltado água em 2003. E não teríamos problema hoje.
Viomundo – Por que a Sabesp não fez isso?
Júlio Cerqueira César — Até o final da década de 1980, a Sabesp era uma empresa de saneamento básico. E saneamento, para a empresa, era considerado problema de saúde pública. A Sabesp era mantida e operada por engenheiros sanitaristas, que sabiam que o problema era saúde publica. Ela tinha que abastecer a população com água, ao longo do tempo, sem interrupções. E tratar os esgotos que a população produzia.
Até o final da década 1980 foi assim que funcionou. Os responsáveis estavam ligados no assunto para resolver esses problemas.
Na década de 1990, a Sabesp aderiu ao modelo neoliberal e passou a buscar o lucro a qualquer custo, independentemente dos direitos fundamentais do homem. A Sabesp demitiu os engenheiros sanitaristas e advogados e economistas assumiram o comando.
Viomundo – E o que aconteceu?
Júlio Cerqueira César — A Sabesp deixou de considerar o saneamento básico como problema de saúde pública. E passou a encará-lo como um negócio qualquer. A Sabesp se transformou num balcão de negócios.
E os usuários?! A partir daquele momento a Sabesp não quis nem mais saber de nós, os usuários; éramos um estorvo. Ela passou a ser preocupar unicamente com os seus acionistas.
Em 2000, colocou suas ações na bolsa de Nova York. Dez anos depois, houve uma grande festa lá, pois as ações da Sabesp tinham sido que as mais valorizadas na Bolsa de Nova York na década.
O capital ativo da Sabesp cresceu uma enormidade. Sucesso total no mundo dos negócios, fracasso total no mundo sanitário, na saúde pública.
Sabendo disso eles vão mudar? O pior é que não.
Viomundo – Apesar dos níveis do Cantareira só diminuírem dia após dia, o Alckmin continua descartando o racionamento. Por que empurrar com a barriga algo que parece inevitável?
Júlio Cerqueira César — Porque o senhor governador está preocupado com o dia 4 de outubro. Ele acha que se falar em racionamento, a população não vai votar nele. Então começa a inventar uma série de jogadas demagógicas. Só que ele já está racionando a água há mais de dois meses.
Viomundo – Como assim, professor?
Júlio Cerqueira César — Na verdade, o racionamento já começou. A Sabesp já está cortando água em vários pontos da cidade e em cidades da região metropolitana, como Osasco, Guarulhos. Em português, o nome desses cortes é racionamento.
Só que essa forma de fazer o racionamento me parece completamente injusta. Se existe essa situação de crise total, acho que todos têm de ser penalizados. Isso significa fazer o racionamento de modo uniforme em toda a região metropolitana para todos terem a mesma penalização.
Só que eles estão fazendo o racionamento dirigido.
Dirigido a quem? Aos pobres que não reclamam. Vão deixam os ricos para o fim.
Viomundo – Em que regiões a Sabesp já está racionando a água?
Júlio Cerqueira César — A Sabesp já tinha cortado 20% de São Caetano. Cortou 20% de Guarulhos. Em Osasco e alguns bairros da Zona Norte, o pessoal está com água só de dia. À noite, a Sabesp corta o fornecimento.
O governador e a Sabesp já estão fazendo racionamento e dizem que não vão fazer. Ao não contar todas as coisas que está fazendo, o governador mente. É uma situação muito complicada.
Viomundo – O governador está mentido?!
Júlio Cerqueira César — Não há a menor dúvida. O nome certo do que estão fazendo é mentira. Eles estão mentindo para a população há tempos.
Você viu o que a Sabesp fez desde janeiro?
De acordo com o sistema de outorga existente, a Sabesp tem o direito de tirar para São Paulo, em condições normais, 31m3/s. E é obrigada a soltar 5m3/s para Piracicaba. Essa é a regra.
Consta da regra também o seguinte. Se houver falta de chuva, São Paulo só pode tirar 24,8m3/s em vez dos 31. E soltar 3m3/s para Piracicaba.
O que fez a Sabesp, quando chegou janeiro e o negócio engrossou? Cortou os 3m3/s para Piracicaba e continuou tirando os 31 para São Paulo, até o dia que isso veio a público e o governador mandou diminuírem, mas não diminuíram para os níveis estabelecidos na outorga.
Só que eles vão ter de fazer isso de uma forma mais uniforme. Não é possível só penalizar alguns. Vai ser necessário penalizar todos até outubro. Aos poucos, vão ter de compreender isso e fazer racionamento pelo menos até outubro.
Viomundo – Por que outubro?
Júlio Cerqueira César – É quando começa a nova estação de chuvas. Nós estamos entrando na estação de estiagem com os reservatórios secos! É um negócio muito sério.
Viomundo — E essa ideia de bombear água do volume morto?
Júlio Cerqueira César — Isso também é um negócio muito mal contado. Esse volume morto é um acidente de obra. Ele não tem nenhuma função no abastecimento de água do sistema Cantareira.
Viomundo – Nenhuma função?!
Júlio Cerqueira César – Nenhuma, mesmo, tanto que ele não pode ser retirado normalmente de lá. Para retirar essa água de lá, são necessárias obras que ficam em de R$ 80 a R$ 100 milhões. Se essa água fosse usável, fosse mesmo reserva estratégica, não seria um buraco ao qual que não se tem acesso.
Viomundo – Mas o governador diz que é uma reserva estratégica?
Júlio Cerqueira César – Não é reserva estratégica coisa nenhuma. É um volume 400 milhões de litros de água que está lá. Só que ele não é usável, porque está abaixo do reservatório do Cantareira. Então, esse volume morto não entra no reservatório. Não entrando no reservatório, não entra no sistema Cantareira. Eles vão ter de comprar bombas para tirar água desse buraco e jogar no reservatório.
Viomundo – Supondo que consigam retirar os 400 milhões de litros de água, o que vai acontecer?
Júlio Cerqueira César — Se fizerem isso realmente, eles podem fazer o sistema Cantareira usar essa água por três meses: abril, maio e junho. E ela acaba. E nós continuamos com os reservatórios secos , pois só vai chover em outubro. Como ficaremos em julho, agosto e setembro?
Se eles tirarem a água agora, eles vão jogar o problema para três meses à frente. Esse é o primeiro problema.
Mas há um segundo problema. Quando começar a chover em outubro, os reservatórios do Cantareira vão começar a encher? Não!!!
O buraco é que vai encher primeiro. Enquanto não estiver cheio, nada de água nos reservatórios. E a quantidade de água das chuvas é menor do que essa que vão tirar do buraco. Em vez de três meses, vai levar um ano para encher esse buraco e começar a entrar água no Cantareira.
Viomundo – O senhor é contra usar o volume morto?
Júlio Cerqueira César — Podem até usar, mas sabendo o que vai acontecer depois. Acho que eles se esqueceram disso.
Quando começar a chover, não há a menor dúvida que a primeira água vai cair no buraco. Eles estão resolvendo um problema agora para criar outro depois. Não tem cabimento uma coisa dessas. Depois, o que eles vão fazer com essas bombas?
Viomundo — O que é um acidente de obra?
Júlio Cerqueira César — Eu também não conhecia esse volume morto. Acontece que é uma região topograficamente muito acidentada. Então quando foi encher o reservatório do Cantareira, encheu o buraco também, pois ele fica abaixo do nível do Cantareira.
Por isso, foi um acidente de obra. Ele estava lá e deixaram lá.
Tanto que de 85 para cá, nunca foi usado, ninguém lembrava que ele existia.
E mesmo agora que precisam usar, eles não podem usar. É preciso gastar R$ 100 milhões em obras, para tirar a água de lá de dentro.
E com o agravante que eu já falei. Essa água vai fazer falta quando começar a chover. Ela vai ter de encher primeiro o buraco, porque ele está abaixo do reservatório e a água escorre.
Viomundo – Parece piada, professor.
Júlio Cerqueira César — Parece piada, mesmo. E isso feito pela quarta empresa de saneamento do mundo e a maior da América Latina.
Viomundo – E essa ideia de trazer água do rio Paraíba do Sul para o Cantareira?
Júlio Cerqueira César — Tecnicamente, é viável. Mas ela esbarra na questão política. O Estado do Rio de Janeiro vai autorizar? Além disso, não é uma obra que ficará pronta em uma semana. Serão necessários dois anos para ela ficar concluída. Por isso, pra mim, é mais uma jogada demagógica do governador.
Viomundo – E como sair dessa situação?
Júlio Cerqueira César –bNão tem como sair. Nós chegamos agora num ponto que vamos ter de suportar essa estiagem até começar a chover de novo. São seis meses de racionamento violento. O Cantareira representa metade da água de São Paulo. Não tem outro jeito, a não ser racionar.
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