Hiram Reis e Silva (*), Bagé, RS,
11 de abril de 2015.
Acordamos cedo, o Cabo Mário e o
Marcos aportaram a Delta na rampa a jusante do hidroporto de
Almeirim. No meu planejamento inicial eu tinha previsto alcançar o
Porto de Santana em quatro dias, mas agora eu estava resolvido a
diminuir em um dia a jornada para recuperar um dos dois dias que
levara de Santarém a Monte Alegre. De Almeirim a Porto de Santana
teríamos de percorrer
aproximadamente 271 km, impossível
de serem superados em apenas dois dias, mas que poderiam, se as
condições meteorológicas e marés permitissem, serem vencidos em
três.
14.03.2015 (sábado) –
Almeirim, PA – AC do Palmital, PA
Mantivemos nossa espartana rotina,
coloquei a lanterna de cabeça, e parti, às 05h30, inicialmente com
a intenção de passar pela margem Meridional da Ilha do Comandaí. A
forte correnteza e a possibilidade de ter de enfrentar fortes
banzeiros fizeram-me alterar a rota passando pela margem Setentrional
da Ilha Comandaí no Paraná conhecido como Arrailos, homônimo do
Rio que desemboca na margem esquerda do Rio Amazonas. A rota era
tranquila e navegamos serenamente até avistar a Comunidade de Porto
Franco a 52 km de Almeirim. Continuamos nossa progressão e
adentramos no Paraná da Velha em cujas margens avistamos as enormes
Aninga-açus (Montrichardia linifera). As raras flores da
planta que avistamos pareciam enormes copos-de-leite (Zantedeschia
aethiopica) com espádice e espata totalmente brancos.
Aninga-açus (Montrichardia
linifera): planta macrófita aquática encontrada nas margens dos
Rios, Lagos, Igapós, Paranás, Furos e Igarapés. Suas folhas e
frutos são usados como alimento pelos peixes e quelônios e
mamíferos como o peixe-boi, capivara e gado bovino e bubalino.
(Hiram Reis)
Espádice: tem o formato de uma
pequena espiga que abriga minúsculas flores. Normalmente, a espádice
acha-se envolvida por uma espata. (Hiram Reis)
Espata: suas formas e cores exóticas
atraem os agentes polinizadores, tendo em vista que as verdadeiras
flores que ela protege são insignificantes e são agrupadas na
espádice. (Hiram Reis)
Fizemos nossa primeira parada,
depois de remar 63 km, por volta das 12h30, na Boca de um Igarapé,
na margem esquerda do Paraná da Velha onde estava sendo construída
uma enorme residência de madeira. Segundo carpinteiros a fazenda
tinha sido adquirida recentemente por um investidor que residia em
Macapá, AP.
O Mário entrara no Igarapé e na
hora de partir verificou que a Delta encalhara. Aguardei sem remar,
arrastado pela forte correnteza do Paraná da Velha, até que a Delta
estivesse novamente em condições de navegar. Na Boca de jusante do
Paraná da Velha avistamos novamente o Amazonas que se bifurca depois
de receber as águas do Rio Xingu formando, logo em seguida, o
intrincado e ciclópico labirinto do Amazônico Delta formado por
inúmeros Rios, Ilhas, Igarapés, Furos, Paranás, Lagos e Canais.
Segui costeando a margem esquerda,
durante algum tempo. Eu pretendia somente aproar para a margem
direita quando me aproximasse da Ilha Taiaçu onde o Canal
convenientemente se torna mais estreito (1,6 km) e permitiria, graças
a isso uma travessia mais segura. Como o vento e as ondas tivessem
amainado seus ímpetos resolvi atravessar logo os poucos mais de 4 km
que me separavam da margem oposta, achando com isso que a correnteza
do talvegue me proporcionaria um adicional importante de velocidade.
Assim que atingi o talvegue do Canal, aonde a correnteza deveria ser
mais favorável, os ventos fortes acompanhados por ondas travessas
frearam substancialmente meu Depois de me aproximar da margem direita
do Canal procurei costeá-la com o intuito de buscar abrigo da
ventania e águas mais serenas. Tinha sido uma jornada extremamente
cansativa, chamei o pessoal de apoio e indiquei algumas casas adiante
onde poderíamos procurar abrigo. No mapa do Google Earth podia-se
identificar um pequeno canal junto às casas onde o Mário poderia,
possivelmente, ancorar com segurança a Delta. Quando aportei, às
15h00, depois de remar 90 km, o pessoal já tinha contatado o morador
local que nos recebeu com a característica cortesia ribeirinha.
Eu estava cuidando de meus afazeres
quando o Mário subiu a bordo correndo noticiando que uma sucuri
tinha pegado uma galinha. Fui correndo ver o que estava acontecendo e
lá chegando deparei-me com uma cobra de seus 2,6 m com a boca cheia
de penas e desfalecida com a paulada que lhe dera o ribeirinho.
Resolvi preparar o ofídio para uma sessão de fotos, retirando-lhe
cuidadosamente as penas da boca, e chamei o Teixeira.
Convencionei chamar este acampamento
de “AC do Palmital” tendo em vista que o proprietário tentou
aqui montar uma fábrica de palmitos retirados do açaí que não
vingou. As touceiras de açaizeiro possuem de 4 a 5 caules permitindo
que a extração seja feita alternadamente. O intervalo ideal para a
colheita é feito a cada 4 anos e a grande vantagem do açaí em
relação a outras palmáceas é de que o açaizeiro rebrota após o
corte.
15.03.2015 (domingo) – AC do
Palmital, PA – Foz Rio Cajari, AP
Partimos, às 06h40, com a
temperatura agradável e ventos amenos. Passamos pela Boca do Paraná
Miruim e entramos no Paraná Taiaçu e logo que deixamos para trás a
Boca de jusante do Taiaçu avistamos a costa do Amapá e à nossa
retaguarda o Rio Jari, que faz a divisa dos Estados do Pará e Amapá
e tem muita história para contar.
Rio Jari
O Rio Jari, afluente da margem
esquerda do Rio Amazonas, tem aproximadamente 800 km de extensão,
delimita os Estados do Pará e Amapá, nasce na Serra do Tumucumaque
e desemboca no Amazonas na altura da Ilha Grande de Gurupá, a 2ª
maior Ilha do Delta do Amazonas. O Jari apresenta sérios obstáculos
à navegação em decorrência do grande número de cachoeiras ao
longo de seu curso. As principais são as cachoeiras da Pancada, do
Desespero e a de Santo Antônio, na divisa com o Amapá.
A hidrelétrica de Santo Antônio do
Jari opera a fio d’água, com um reservatório, de 31,7 km2,
localizado logo acima da cachoeira de Santo Antônio. A capacidade
plena da usina é de 373,4 MW e sua potência firme 217,7 MW. A
hidrelétrica está interligada ao Sistema Integrado Nacional (SIN) e
entrou em operação no dia 01.01.2015.
Projeto Jari
José Julio de Andrade nasceu em,
1862, no Município de São Francisco de Uruburetama, hoje Itapajé,
CE. O Coronel José Julio veio para a Amazônia, em 1879, com apenas
17 anos no apogeu do ciclo da borracha e instalou-se na região do
Jarí, em 1882, onde conseguiu, graças a tramóias políticas,
dominar o comércio extrativista da região e transformar-se em um
grande latifundiário tomando posse de uma área de aproximadamente
16.000 km2 que tinha como principal via de acesso o Rio Jari.
Revolta no Jari
O Encantado Vale do Jari
(Compositores: Aureliano Neck e
Nonato Soledade)
Era gente de todo lugar
Num sistema de semiescravidão
Trabalhavam sempre devendo ao patrão
Zé Cesário vendo a situação
Liderou a revolta da região
Os índios com medo
Dos novos habitantes
Fugiram para matas distantes. [...]
Em 1928, os extrativistas
revoltaram-se contra o Coronel, tomaram um barco e foram até Belém
denunciar as péssimas condições de trabalho e os crimes praticados
pelo Coronel José Julio e seus capatazes. Relata-nos o historiador
Lúcio Flávio Pinto:
A população de Belém só tomou
conhecimento do inferno que era trabalhar no Jari quando dezenas de
cearenses, liderados por Cesário Medeiros, sublevaram-se, tomaram um
navio e obrigaram o dono da propriedade a aceitar a fuga em massa.
Chegaram a capital aliviados: haviam conseguido abandonar o cativeiro
disfarçado nas terras do Coronel José Júlio de Andrade. (PINTO)
Estas denúncias só surtiram efeito
quando, após a vitória do movimento de 1930, o Governo Federal
nomeou Joaquim de Magalhães Cardoso Barata como interventor do Pará
(novembro de 1930 a abril de 1934). O Tenente Barata determinou a
prisão do Coronel José Júlio obrigando-o a fugir para o Rio de
Janeiro. Em 1948, Zé Júlio vendeu suas propriedades para um grupo
de quatro comerciantes portugueses e um brasileiro, que deram
continuidade ao sistema de extrativismo.
Daniel Keith Ludwig
Ludwig adquiriu, em 1967, as terras
deste grupo. Instalando um complexo agroindustrial que produzia
celulose e arroz, dedicava-se à criação de gado além de explorar
recursos minerais como a bauxita e o caulim. Foi desmatada uma área
de mais de 200 mil hectares de floresta, para o cultivo de espécies
exóticas (gmelina - Gmelina arborea) – com a finalidade de
produzir celulose. O milionário invadiu territórios indígenas e
ribeirinhos que viviam às margens dos Rios Paru e Cajari gerando
sérios conflitos com os moradores locais. A partir da década de
1980, teve início a derrocada financeira do Projeto Jari que foi
transferido para um grupo de empresários brasileiros, liderado pelo
Banco do Brasil e pelo Grupo Caemi Mineração.
Grupo Jari
Em 1999, o Projeto foi adquirido
pelo Grupo ORSA pelo valor simbólico de 1 dólar. A negociação com
o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) durou
dois anos. O projeto passou a ter o nome de Grupo Jari, e os
empresários firmaram compromisso em sanar passivos sociais e
ambientais.
Chegamos por volta das 15h30 à Foz
do Rio Cajari, depois de percorrer 72 km, e aportamos no trapiche da
Comunidade Santa Ana área da Reserva Extrativista do Rio Cajari.
Reserva Extrativista do Rio
Cajari
A Reserva foi criada pelo Decreto n°
99.145, de 12.03.1990, com 481.650 hectares e 5.000 habitantes. A
população local dedica-se ao manejo da castanheira, da seringa, do
açaí e da copaíba. Essas terras pertenceram ao Coronel José Júlio
de Andrade, que usou de sua influência política quando exerceu os
mandatos de Deputado Federal e Senador para registrar, através de
ardilosas manobras cartoriais, um enorme latifúndio nos dois
Estados.
16.03.2015 (segunda-feira) –
Foz Rio Cajari, AP – Porto de Santana, AP
Faltavam apenas 109 km para encerrar
o Projeto Desafiando o Rio-mar. Parti às 05h30, as águas do Cajari
fluíam velozmente no sentido do Rio Amazonas, a maré baixa, que
atingiria a sua cota mínima às 07h28, iria ajudar-me bastante
durante a manhã. Mantive a rota próxima à margem esquerda do Canal
do Norte. A viagem transcorreu sem alterações pela manhã até que
à tarde a força da maré cheia, com pico às 12h24, mudou o sentido
das águas do Rio Amazonas.
Fiz minha única parada a bordo da
Delta para evitar que a torrente fizesse meu caiaque retornar caso
parasse de remar em pleno Rio. O maior Rio do Planeta Terra não era
páreo para o Atlântico que subjugava o Rio-mar à sua vontade.
Observar o gigantesco manancial retroceder sua torrente a mais de 150
km de distância do oceano era uma experiência ímpar além de nos
apresentar uma real noção da relatividade das coisas.
Um fato curioso deixou meus
parceiros preocupados, eu estava progredindo ao longo da margem
Setentrional de uma Ilha, bem longe deles, e um enorme transatlântico
subindo o Rio. Desviei várias vezes minha rota para Boreste e o
navio continuava vindo na minha direção, resolvi, então, mudar a
rota para bombordo evitando uma possível a colisão. Evidentemente,
a minha tomada de decisão e a minha avaliação das velocidades do
Rio e barcos estavam embasadas na minha experiência no Guaíba em
Porto Alegre onde preciso constantemente cruzar pelo canal usado por
grandes embarcações. Meus amigos, porém, ficaram preocupados
achando que eu estava próximo demais da formidável nau e das
enormes marolas por ela provocadas.
Aportamos no caótico Porto de
Santana às 18h30, depois de remar durante 13 horas, e percorrer
exatos 109 km. Uma média sofrível de 8,7 km/h, um pouco superior à
que costumo fazer em lagunas e lagoas onde não existe correnteza
para ajudar a navegação. O Cabo Mário teve de embarcar às 19h00
em uma lancha para Santarém onde precisava realizar os testes
físicos que o habilitavam a pilotar embarcações maiores enquanto
eu e o Teixeira fomos de táxi para Macapá nos hospedar em um hotel.
Fonte:
PINTO, Lúcio Flávio. Jari: Toda a Verdade sobre o Projeto de Ludwig
– Brasil – São
Paulo
– Marco Zero, 1986.
(*)
Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante,
Historiador,
Escritor e Colunista;
Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
Presidente
da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM - RS);
Sócio
Correspondente da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER)
Membro
da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB –
RS);
Membro
do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul
(IHTRGS);
Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra
(ADESG).
Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail:
hiramrsilva@gmail.com;
Blog:
desafiandooriomar.blogspot.com.br
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