"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, junho 11, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 07/06/07

A ‘aventura’ de viajar para os Estados Unidos

“Desde os atentados do 11-S, algumas pessoas renunciaram a ir para os Estados Unidos, em parte por esses pesados procedimentos e em parte pela impressão geral de que o país se converteu numa fortaleza”, escreve Timothy Garton Ash. Para ele, os Estados Unidos, depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, se tornaram menos acolhedores. Descrevendo minuciosamente a saga para se conseguir um visto na Embaixada dos Estados Unidos em Londres, Ash se justifica: “Detenho-me nestes detalhes prosaicos porque são os que oferecem as primeiras impressões que centenas de milhares de pessoas que desejam trabalhar, estudar e viver nos Estados Unidos têm. E as primeiras impressões são importantes.” Mas, questiona tamanha rigidez, quando a maioria das entradas – pelo México e pelo Canadá – nos Estados Unidos não segue o mesmo rigor: “Mesmo assim, alguém pode se perguntar sobre a eficácia dessa rede de segurança tão vasta e de tecnologia tão complexa”.

Segue a íntegra do artigo publicado no El País, 03-06-2007. A tradução é do Cepat.

Desde os atentados do 11 de setembro (11-S), algumas pessoas desistiram de ir para os Estados Unidos. Na parede do consulado, na Embaixada norte-americana em Londres, vi projetadas uma série de fotos. Procediam de uma base de dados situada em algum lugar dos Estados Unidos, e mostravam meu rosto – com as olheiras e o cansaço do vôo transatlântico – assim como o havia captado a câmara do Departamento de Segurança Interior, no controle dos passaportes, em cada uma das minhas entradas nos Estados Unidos desde 2004. Junto ao meu nome, algumas palavras: “Status de segurança: Não desfavorável”.

Segundo as informações mais recentes que a embaixada me passou, nessa base de dados – situada em lugar não revelado – figuram atualmente cerca de 100 milhões de pessoas. No ano passado, a cifra que me deram foi de cerca de 60 milhões. Nesse ritmo, daqui a 10 anos terão arquivado o rosto de uma boa parte da humanidade.

Não constam apenas as nossas caras, mas também nossas digitais. Quando alguém vai para os Estados Unidos com um visto de intercâmbio acadêmico, como faço todos os anos, tem que ir cada vez à embaixada e deixar que lhe tomem as digitais e que voltem a entrevistá-lo. Cuidado para não fazer um corte no dedo na noite anterior, porque se o corte modificar as digitais, o fazem voltar para casa e esperar que cicatrize.

Depois de preencher vários formulários, um dos quais pede os números de telefone de pais e irmãos (imagino a ligação: “Você tem ou teve um filho chamado Timothy?”), fazer uma nova foto de passaporte de formato especial e pagar, não uma, mas duas consideráveis quantias de dinheiro, recebe-se uma severa carta na qual o advertem que talvez tenha que esperar diante da embaixada com tempo “inclemente” e lhe dizem para não levar telefone celular (pode-se guardá-lo no armário de alguma estação, sugerem). Na minha carta diziam que contasse com três a quatro horas para completar o processo.

Na fortaleza que é a Embaixada dos Estados Unidos em Londres desde os atentados do 11-S, é preciso passar por uma cabine na qual a revista está a cargo de empregados britânicos. Quando foi esta última vez, esses empregados britânicos estavam sendo desnecessariamente grosseiros com um visitante norte-americano ao qual acabavam de estropiar uma valiosa caneta. Uma vez dentro, há uma ampla sala, do tamanho de duas pistas de tênis, com filas e filas de gente sentada em cadeiras, como zumbis, esperando que chegue a vez do seu ticket na tela eletrônica. Se o dedo sem cortar passa no exame da janelinha número 13, é preciso voltar a se sentar para esperar que o chamem para a entrevista na janelinha número 23, antes de voltar a entrar na fila para pagar outra soma pelo mensageiro que levará o passaporte à sua casa. A cena me lembrou um verso que li uma vez num poema sobre a vida na Europa durante os anos trinta: algo como “aqueles cujo domicílio eram os corredores da Europa / enquanto esperavam ser interrogados sobre sua falta de culpa”. Agora são os corredores de um consulado norte-americano.

Visados

Que fique clara uma coisa: mesmo tediosos que são esses procedimentos, entendo perfeitamente por que os Estados Unidos os implantaram. No meu exemplar do relatório da comissão sobre o 11-S posso ler com detalhes como os homens que cometeram aqueles atentados haviam solicitado e obtido seus vistos. Estava justificado que endurecessem os trâmites.

Mesmo assim, alguém pode se perguntar sobre a eficácia dessa rede de segurança tão vasta e de tecnologia tão complexa, posto que todos os anos viajam da Grã-Bretanha para os Estados Unidos três milhões de pessoas sem visto, graças ao programa de exceção para turistas. Além disso, a grande maioria das entradas nos Estados Unidos não se realiza pelo ar nem por mar, mas por terra, a partir do México e do Canadá. O cônsul que tinha minha coleção de retratos involuntários em seu computador me disse que se calcula a assombrosa cifra de 400 milhões de entradas anuais pelas fronteiras terrestres, muitas delas de gente que vai diariamente trabalhar (quer dizer, que o número total de visitantes é inferior ao de entradas). Os controles com México e Canadá também estão se endurecendo, mas, ao que parece, muitos destes visitantes continuam entrando pelo simples fato de mostrarem um carnê ao funcionário da cabina, que os deixa passar sem mais com seu carro. Quer dizer, há uma ânsia de perfeccionismo na hora de controlar a parte menos avultada e um autêntico corredor no controle dos mais numerosos. Mas compreendo que tinha que começar por algum lugar.

Ao longo dos anos notei certos esforços para fazer com que o procedimento seja um pouco mais simples, facilitando a complementação de formulários pela Internet e o pagamento com cartão de crédito por telefone. Antes era preciso ir pessoalmente ao Barclays Bank – e só podia ser no Barclays – para pagar o visto e obter um recibo. Ao final de sete anos, finalmente, o Governo dos Estados Unidos se deu conta de que estamos no século XXI.

Muitas vezes, os problemas se devem à atitude arrogante e suspicaz dos empregados locais, que são, por assim dizer, mais americanos que os americanos. Em Londres, isso se traduz em britânicos que tratam de forma prepotente a outros britânicos. Ou, no caso do incidente que presenciei no controle de segurança, britânicos que estavam tratando com prepotência norte-americanos, em nome dos Estados Unidos. Este fenômeno não é exclusivo dos norte-americanos. Ouvi casos de experiências semelhantes (e piores) sofridas por solicitantes de vistos com o pessoal local dos consulados britânicos no leste europeu. Uma coisa é a teoria e outra a prática.

Detenho-me nestes detalhes prosaicos porque são os que oferecem as primeiras impressões que centenas de milhares de pessoas que desejam trabalhar, estudar e viver nos Estados Unidos têm. E as primeiras impressões são importantes. O que pretende Osama Bin Laden é que essas impressões sejam más. Eu quero que os Estados Unidos lhe neguem essa satisfação.

Desde os atentados do 11-S, algumas pessoas renunciaram a ir para os Estados Unidos, em parte por esses pesados procedimentos e em parte pela impressão geral de que o país se converteu numa fortaleza. No curso 2003-2004, o número de estudantes estrangeiros matriculados em universidades norte-americanas caiu pela primeira vez desde 1971. Em vez disso, foram para a Grã-Bretanha e a Austrália. Os reitores norte-americanos deram o sinal de alarme. Condoleezza Rice disse publicamente que era preciso inverter a tendência. Porque, como não se cansa nunca de repetir o catedrático de Harvard Joseph Nye, os estudantes estrangeiros contribuem para reforçar o “poder brando” de um país. Em tempos mais recentes, parece que a tendência está começando a melhorar. Em 2005-2006 houve mais de 560 mil alunos estrangeiros nas universidades norte-americanas.

Um lugar pouco acolhedor

Está por se saber que experiência têm durante sua permanência ali. Tenho a impressão de que, nos últimos anos, os Estados Unidos foram um lugar pouco menos acolhedor que de costume, mesmo que siga sendo um dos países mais cordiais e generosos do mundo. Em parte se deve ao sentimento nacional de assédio depois do 11-S, alimentado pela implacável retórica da Fox News sobre a “guerra contra o terror”. Em parte se deve também ao medo da competição de países com salários inferiores, um medo fomentado por alarmistas demagogos como Lou Dobbs na CNN. Mas a atmosfera muda de um ano para o outro. Voltarei a este tem durante os próximos meses, quando escreva dos Estados Unidos; sempre, claro está, que minha condição de segurança siga sendo a de “Não desfavorável”. Quando chegar ao controle de passaportes, darei um lânguido sorriso para o álbum secreto de fotografias.

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