"Não haverá socialismo, e sim socialismos do séc. 21", afirma Boaventura de Sousa Santos, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 7-06-2007. Segundo ele, eles "terão em comum reconhecerem-se na definição de socialismo como democracia sem fim".
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo português, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
Eis o artigo.
"O que de mais relevante está a acontecer em nível mundial acontece à margem das teorias dominantes e até em contradição com elas.
Há 20 anos, o pensamento político conservador declarou o fim da história, a chegada da paz perpétua dominada pelo desenvolvimento "normal" do capitalismo - em liberdade e para benefício de todos -, finalmente liberto da concorrência do socialismo, lançado este irremediavelmente no lixo da história. À revelia de todas essas previsões, houve, neste período, mais guerra que paz, as desigualdades sociais se agravaram, a fome, as pandemias e a violência se intensificaram, a China "se desenvolveu" sem liberdade e mediante violações massivas dos direitos humanos e, finalmente, o socialismo voltou à agenda política de alguns países.
Concentro-me neste último, pois constitui um desafio tanto ao pensamento político conservador como ao pensamento político progressista. A ausência de alternativa ao capitalismo foi tão interiorizada por um quanto pelo outro. Daí que, no campo progressista, tenham dominado "terceiras vias", buscando achar no capitalismo a solução dos problemas que o socialismo não soubera resolver.
Em 2005, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, colocou na agenda política o objetivo de construir o "socialismo do século 21". Desde então, dois outros governantes -tal como Chávez, democraticamente eleitos -, Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador), tomaram a mesma opção.
Qual o significado desse aparente desmentido do fim da história? Qual o perfil da alternativa proposta ao capitalismo? Que potencialidades e riscos ela contém?
O socialismo reemerge porque o capitalismo neoliberal não só não cumpriu suas promessas como tentou disfarçar o fato com arrogância militar e cultural; porque sua voracidade por recursos naturais o envolveu em guerras injustas e acabou por dar poder a alguns países que os detêm; porque Cuba -seja qual for a opinião a respeito do seu regime- continua a ser exemplo de solidariedade internacional e de dignidade na resistência contra a superpotência; porque, desde 2001, o Fórum Social Mundial tem vindo a apontar para futuros pós-capitalistas, ainda que sem os definir; porque nesse processo ganharam força e visibilidade movimentos sociais cujas lutas pela terra, pela água, pela soberania alimentar, pelo fim da dívida externa e das discriminações raciais e sexuais, pela identidade cultural e por uma sociedade justa e ecologicamente equilibrada parecem estar votadas ao fracasso no marco do capitalismo neoliberal.
O socialismo do século 21, como o próprio nome indica, define-se, por enquanto, melhor pelo que não é do que pelo que é: não quer ser igual ao socialismo do séc. 20, cujos erros e fracassos não quer repetir.
Não basta, porém, afirmar tal intenção. É preciso realizar um debate profundo sobre os erros e fracassos para que seja credível a vontade de evitá-los. Se tal desidentificação em relação ao socialismo do séc. 20 for levada a cabo, alguns dos seguintes traços da alternativa deverão emergir.
Um regime pacífico e democrático assente na complementaridade entre democracia representativa e democracia participativa; legitimidade da diversidade de opiniões, não havendo lugar para a figura sinistra do "inimigo do povo"; modo de produção menos assente na propriedade estatal dos meios de produção que na associação de produtores; regime misto de propriedade em que coexistem propriedade privada, estatal e coletiva (cooperativa); concorrência por um período prolongado entre a economia do egoísmo e a economia do altruísmo, digamos, entre Microsoft Windows e Linux; sistema que saiba competir com o capitalismo na geração de riqueza e lhe seja superior no respeito à natureza e na justiça distributiva; nova forma de Estado experimental, mais descentralizada e transparente, de modo a facilitar o controle público do Estado e a criação de espaços públicos não estatais; reconhecimento da interculturalidade e da plurinacionalidade (onde for o caso); luta permanente contra a corrupção e os privilégios decorrentes da burocracia ou da lealdade partidária; promoção da educação, dos conhecimentos (científicos e outros) e do fim das discriminações sexuais, raciais e religiosas como prioridades governativas.
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