A estratégia cinematográfica que sustenta Bush
Em um artigo do New York Times, publicado dias antes da eleição presidencial de 2004, Ron Suskind, que foi editorialista do Wall Street Journal e autor de inúmeras investigações sobre a comunicação da Casa Branca depois de 2000, revelou os termos da conversa que manteve com um consultor de George W. Bush: “O assessor me disse que indivíduos como eu éramos parte da ‘reality-based community’, que definiu como pessoas que ‘acham que as soluções emergem de sua análise judiciosa da realidade observável’. Eu concordei e murmurei qualquer coisa sobre os princípios das Luzes e do empirismo. Ele me cortou: ‘Não é mais assim que o mundo funciona’, prosseguiu. ‘Somos um império agora. E, quando agimos, criamos nossa própria realidade. Enquanto vocês estudam essa realidade – judiciosamente, como queiram –, nós agimos de novo, criando outras novas realidades, que vocês podem igualmente estudar. É assim que as coisas se passam. Nós somos os atores da história. E a vocês, vocês todos, só resta estudar o que fazemos.’” [1].
Qualificado como “furo intelectual” pelo New York Times, o artigo de Suskind causou sensação. Os editorialistas e blogueiros se apoderaram da expressão “reality-based comunity”, que se difundiu pela web — onde o Google contabilizava, em julho de 2007, mais de um milhão de ocorrências. A Wikipedia abriu uma página sobre o tema. Segundo Jay Rosen, professor de jornalismo da Universidade de Nova York, “uma porção de gente de esquerda assumiu esse termo para si, se autodesignando em seus blogs como ‘membros dignos da reality-based community’. Enquanto isso, a direita caçoava: ‘Eles são reality-based ? OK!’” [2]. Conversas como esta, mantida sem a menor dúvida com Karl Rove alguns meses antes da Guerra do Iraque, não são apenas cínicas, dignas de um Maquiavel da mídia. Elas parecem brotar de uma cena de teatro, mais do que de um gabinete da Casa Branca. Não se limitam a dar prosseguimento aos velhos dilemas que sempre agitaram as chancelarias, opondo pragmáticos e idealistas, realistas e moralistas, pacifistas e belicistas, defensores do direito internacional e partidários do uso da força. Mais do que isso, tornam pública uma nova concepção das relações entre a política e a realidade [3]. Os líderes da principal potência do mundo deixaram de lado não só a realpolitik, mas também o simples realismo, para tornar-se criadores de sua própria realidade, mestres das aparências, reivindicando o que poderíamos chamar de realpolitik da ficção.
A invasão americana do Iraque, em março de 2003, constituiu um exemplo espetacular da vontade da Casa Branca de “criar sua própria realidade”. Na ocasião, os departamentos do Pentágono, preocupados em não repetir os erros da primeira Guerra do Golfo, de 1991, tomaram uma precaução particular em sua estratégia de comunicação. Além dos quinhentos jornalistas “embedded” (integrados a uma unidade de exército norte-americano), dos quais muito já se falou, eles dedicaram especial cuidado à preparação da sala de imprensa do quartel-general das forças norte-americanas, instalada no Qatar: um armazém remodelado – pela “módica” quantia de um milhão de dólares – como estúdio de tevê ultramoderno, com palco, telas de plasma e toda a parafernália eletrônica capaz de produzir em tempo real imagens do combate, mapas topográficos, animações e gráficos.
Só a cena do porta-voz do exército norte-americano, general Tommy Franks, dirigindo-se aos jornalistas custou 200 mil dólares e foi realizada por um profissional que trabalhou para os estúdios Disney, a MGM e o noticiário Good Morning America. Desde 2001, ele foi encarregado pela Casa Branca de criar os cenários para as aparições presidenciais – escolha que não surpreende nem um pouco quando se sabe como são as ligações entre o Pentágono e Hollywood. Causa muito mais espécie a decisão do Pentágono de recrutar para esses trabalhos de montagem o mágico David Blaine, conhecidíssimo nos Estados Unidos por seu programa de televisão e seus números de prestidigitação, nos quais parece desafiar as leis da física e da biologia, levitando acima do chão ou permanecendo fechado durante dias dentro de uma jaula sem comer. Em um livro publicado em 2002, esse homem, que se autodenomina o “Michael Jordan da Magia”, reivindica a herança de Robert Houdin, o lendário mágico francês do século 19, que aceitou ir à Argélia por conta do governo com o objetivo de pôr fim a um levante, demonstrando que sua magia era superior à dos rebeldes [4]. Ignora-se se é isso que o Pentágono esperava dele, mas sua convocação e envio ao Qatar sugerem que se valeram de seus talentos de ilusionista para algumas trucagens ou efeitos especiais…
Scott Sforza, antigo produtor da rede ABC que trabalhava para a máquina de propaganda republicana, criou os inúmeros cenários diante dos quais Bush fez suas declarações mais importantes durante seus dois mandatos. Em 1º de maio de 2003, foi ele o responsável pela ambientação do pronunciamento de Bush sobre o porta-aviões Abraham Lincoln, diante de uma faixa com a inscrição “Missão Cumprida: As grandes operações de combate no Iraque cessaram. Na batalha do Iraque, os Estados Unidos e nossos aliados vencemos”. Mas a encenação não parou por aí. O presidente aterrissou no porta-aviões a bordo de um caça rebatizado para a ocasião como Navy One, em cuja fuselagem estava escrito “George Bush, Comandante em Chefe”. Usando trajes de aviador, ele foi mostrado saindo da cabine, capacete na mão, como se regressasse de uma missão, em um remake de Top Gun — o filme de Jerry Bruckeimer, velho conhecido das operações conjuntas Hollywood-Pentágono, responsável pela produção de um reality show sobre a guerra do Afeganistão, Profiles from the Front Line.
Com seu olhar experiente de crítico teatral, Frank Rich, o prestigioso colunista do New York Times, comentou: “Como teatro, foi fantástico” [5]5. David Broder, do Washington Post, ficou subjugado pelo que chamou de “postura física” do presidente. Sforza deve ter enquadrado cuidadosamente a cena para que não percebêssemos no horizonte a cidade de San Diego, situada a sessenta quilômetros, de modo que o porta-aviões parecesse estar em pleno mar, na zona dos combates.
Mas nunca o enquadramento de um discurso presidencial foi tão explícito quanto em 15 de agosto de 2002, quando o presidente dos Estados Unidos se expressou solenemente sobre a “segurança nacional” diante do célebre despenhadeiro do monte Rushmore, onde estão esculpidos os rostos de George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln. Durante o pronunciamento, as câmeras de televisão foram montadas em um ângulo que possibilitou filmar Bush de perfil, sua imagem se superpondo à dos ilustres predecessores.
O mesmo tipo de procedimento foi utilizado durante o primeiro aniversário dos atentados de 11 de setembro, quando Bush preparou a opinião pública norte-americana para a invasão do Iraque, enaltecendo o “grande combate que desafia nosso poderio e, mais ainda, nossa determinação”. Sforza alugou três chatas para transportar a equipe presidencial até o pé da Estátua da Liberdade, iluminada de baixo para cima por poderosos projetores. Escolheu um ângulo e postou as câmeras de tal maneira que a estátua fosse visível ao fundo durante o discurso. Frank Rich cita a propósito a opinião de um especialista, Michael Deaver, que preparou em 1980 o pano de fundo para a declaração da candidatura de Ronald Reagan, usando como cenário a mesma Estátua da Liberdade: “Eles entendem que aquilo que se encontra em torno da cabeça é tão importante quanto a cabeça” [6]6.
O que há em torno da cabeça é justamente aquilo que transforma uma imagem em lenda: “Missão Cumprida”, os Pais Fundadores, a Estátua da Liberdade. Mas é preciso entrar em ressonância com o espectador, ou seja, fazer dialogar dois instantes da história, aquele que está representado na imagem e o momento real da recepção. É essa ressonância que produz a emoção desejada. Para os norte-americanos em 2002, nenhuma data podia ter peso emocional maior que o primeiro aniversário do 11 de setembro. E foi ela a escolhida para o discurso sobre a guerra. Sem contar que o país acabava de voltar de férias, pronto para se concentrar nos assuntos de primeira importância [7].
Segundo Ira Chernus, professor da Universidade do Colorado, durante os dois mandatos de Bush, Karl Rove pôs em prática a “estratégia de Xerazade”. O acadêmico explica: “Quando a política os condena à morte, comecem a contar histórias – histórias tão fabulosas, tão cativantes, tão sedutoras que o rei (ou nesse caso o cidadão americano, que na teoria governa o país) esquecerá a pena capital. Karl Rove joga com o sentimento de insegurança dos norte-americanos, que têm a impressão de que suas vidas lhes escapam” [8]. E sua jogada foi muito bem-sucedida em 2004, por ocasião da reeleição de Bush, quando ele conseguiu desviar a atenção dos eleitores do balanço da guerra convocando os grandes mitos do imaginário coletivo.
Ira Chernus desenvolve seu argumento: “A aposta de Rove é de que os eleitores ficarão hipnotizados por histórias ao estilo John Wayne, com ‘homens de verdade’ combatendo o diabo na fronteira, e deixarão de proferir a sentença de morte contra um partido que nos conduziu ao total desastre no Iraque. Rove não cansa de inventar histórias sobre mocinhos e bandidos e se esforça por transformar toda eleição em teatro moral, opondo o ‘rigor moral’ dos republicanos à ‘confusão moral’ dos democratas. A estratégia de Xerazade é uma pilantragem, construída sobre a ilusão de que simples histórias moralizantes irão nos proporcionar uma sensação de segurança, independentemente do que aconteça no mundo. Rove espera que cada voto em favor dos republicanos seja uma tomada de posição simbólica” [9].
Em agosto de 2007, obrigado a entregar sua demissão pelos membros democratas do Congresso, Rove anunciou a decisão com uma declaração que resume toda a sua obra: “Eu sou Moby Dick e eles são meus perseguidores!”.
[1] Ron Suskind, “Without a doubt, faith, certainty and the presidency of George W. Bush”, The New York Times, 17de outubro de 2004.
[2] Jay Rosen, “The retreat from empiricism and Ron Suskind’s intellectual scoop”, The Huffington Post, 4de julho de 2007.
[3] Ver Christian Salmon, “La machine à raconter des histoires”, Manière de Voir, n.° 96, “La fabrique du conformisme”.
[4] David Blaine, Mysterious Stranger — A Book of Magic, Nova York, Villard Books, 2002.
[5] Frank Rich, The Greatest Story Ever Sold, Nova York, Penguin Books, 2007.
[6] Ibid.
[7] Ibid.
[8] Ira Chernus, “Karl Rove’s Scheherazade strategy”, 7 de julho de 2006.
[9] Ibid.
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