Ilusões do ambientalismo de mercado
O Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) da ONU estima que devemos impedir que a temperatura média global suba 2°C ao longo deste século. De outro modo, sistemas ecológicos entrariam em colapso e muitos sofreriam de seca, enchentes e fome. Utilizando dados mais atuais, estudos de organizações como o Greenpeace sugerem que deveríamos cortar as emissões de CO2 pela metade até 2005, tomando por base os níveis atuais. Previsões mais pessimistas, publicadas na Geophysical Research Letters, pela equipe liderada por Andrew Weaver, apostam que essa redução deveria ser de 90% nas emissões desse mesmo gás.
O Protocolo de Kyoto, que expira em 2012 e não foi implementado pelos EUA, foi a primeira tentativa mundial de atenuar as emissões de CO2, adotando uma solução de mercado. O resultado não foi muito animador, na medida em que as emissões globais de dióxido de carbono aumentaram cerca de 7% no período de 1998 — quando foi assinado o Protocolo — a 2005, ano que entrou em vigor. Será que soluções de mercado seriam capazes de resolver o problema do aquecimento global? Quais as conseqüências dessa opção?
Antes de mais nada, é bom entender qual o funcionamento do mercado em sua base mais fundamental. O princípio básico do mercado é a troca e. Em uma economia monetarizada, ela é intermediada pelo dinheiro. Se alguém paga 100 reais em uma roupa, é porque acha melhor ter aquela roupa do que permanecer com os 100 reais — ainda que reclame do preço.
Desse ponto de vista o mercado é algo bom: a troca, sendo voluntária, não pode piorar o bem-estar de alguém. Além disso, a troca tem o aspecto positivo de afetar apenas as pessoas envolvidas na transação. Se troco 100 reais por um livro, isso não afeta o bem-estar de mais ninguém. E se você troca 1000 reais por uma bolsa Louis Vuitton, isso diz respeito apenas a você e à pessoa que lhe vendeu a bolsa. Dessa forma, a troca permite que os envolvidos aumentem seu bem-estar sem diminuir o de outros, o que obviamente é algo desejável.
Contudo, há algumas trocas ou operações de mercado que afetam o bem-estar de outras pessoas. Se uma empresa, ao produzir uma mercadoria, polui um rio, essa poluição afeta o bem-estar das pessoas que utilizam as águas de alguma forma — mesmo que a transação do bem produzido fique restrita à empresa e ao consumidor final. Esse tipo de situação, na qual uma transação de mercado gera um efeito colateral para terceiros não envolvidos na troca, é chamada pelos economistas de externalidade, justamente pelo fato de que alguns de seus efeitos são externos aos envolvidos diretamente na transação.
Como se vê, as externalidades são uma falha do mecanismo de mercado, pelo menos no sentido de que causam efeitos colaterais de forma não-voluntária — isto é, de forma forçada sobre indivíduos que não são consultados sobre suas preferências.
Uma possibilidade de resolver o problema das falhas de mercado como as externalidades é encontrar uma forma de levar em consideração as preferências das pessoas que sofrem os efeitos colaterais. No exemplo da poluição do rio, poderíamos imaginar uma situação na qual as pessoas que utilizam o rio podem, à empresa poluidora, seu direito à água limpa. Se a empresa considerar válido o preço que deve pagar para poder poluir o rio, mais o custo usual de produção da mercadoria; e se os consumidores estiverem dispostos a pagar esse acréscimo, então teremos uma situação na qual nenhuma pessoa afetada pela transação de mercado deixou de ter sua preferência considerada.
A preservação do ambiente seria contrária à distribuição de renda?
O protocolo de Kyoto segue idéia semelhante, ao distribuir metas de poluição para os países desenvolvidos. Caso estes países ultrapassem suas metas, devem comprar o direito de poluir de outros países (em desenvolvimento) que tenham feito reduções de poluição. Em suma, a redução na poluição num lugar poder ser vendida como direito de poluir em outro lugar.
Ora, se imaginarmos uma solução efetiva para o problema do aquecimento global, o que aconteceria? Para que as emissões de CO2 fossem reduzidas em 90%, teríamos que virtualmente descarbonizar completamente a economia mundial. Isso significa que o custo de emitir CO2 deve ser incorporado no custo de produção e consumo de cada empresa e indivíduo, de forma a desestimulá-los, voluntariamente, a produzir ou consumir bens que emitam CO2.
Para tanto, seria necessário que as cotas de poluição fossem muito poucas, próximas a zero, aumentando muito o preço do direito de poluir – se a oferta é pouca e a procura é muita, o preço sobe. Como esse aumento no custo deve ser incorporado nos preços dos produtos, observaríamos um aumento brutal nos preços dos produtos mais poluentes relativamente aos bens menos poluentes.
Tal mudança nos preços claramente iria favorecer a produção de bens de consumos limpos. Porém, na medida em que a matriz energética mundial é predominantemente suja e leva tempo para se alterá-la, no curto e médio prazo a única solução possível é que muitas pessoas deixem de consumir produtos tão caros. Como conseqüência, em termos de acesso aos bens de consumo, teríamos uma brutal regressão na distribuição de riqueza entre os países e entre as pessoas, agravando muitíssimo a já ruim distribuição de renda.
Como se vê, a saída de mercado para o aquecimento global é politicamente muito difícil e envolverá a administração de muitas perdas econômicas, com uma substantiva piora na distribuição de renda. No fundo, o sonho ingênuo de que o bem-estar de todos poderia ser aumentado por meio da generalização da economia de mercado para todo o mundo se revela impossível com a restrição ambiental. O consumo de uns deve necessariamente significar o desconsumo de outros, ainda que “voluntariamente”. Essa é a solução estritamente de mercado para o problema ambiental. É bom não ter ilusões...
Manoel Neto e Flávio Shirahige são colunistas do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique.
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