"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

domingo, abril 11, 2010

Punidos Pelo Nada

Revista da Cultura - Edição 33 abr 10



Aos 11 anos, uma medicação fez com que Adrieli Cotrim tivesse suas primeiras espinhas. O que deveria ser um costumeiro problema de adolescente tornou seus anos escolares um tormento quando ela se viu alvo de chacotas. “Sempre riam de mim e os ouvia dizer que quem chegasse perto teria espinhas também. Isso durou até acabarem meus estudos. Ficava arquitetando um jeito de morrer. Hoje, vejo quão infeliz eu era”, relembra a estudante de Rolândia (PR), agora com 19 anos. Sem coragem de expor seu drama à família, à mercê de outros jovens que talvez não percebessem o mal que lhe causavam e sem orientação escolar, a garota sofreu sozinha o bullying. A expressão, em inglês, remete à prática que se tornou foco de estudos há pouco tempo, mas que existe desde que crianças e adolescentes passaram a conviver na escola.

Derivada do adjetivo bully, que significa valentão, a palavra reúne em seu conceito o hábito de se valer da superioridade física para intimidar, amedrontar ou humilhar outra pessoa. “A destruição pelo bullying não é uma violência única, é prática contínua, que significa uma criança ou adolescente destruir o semelhante”, afirma o vereador Gabriel Chalita, criador da lei que inclui o combate à prática nas escolas da rede municipal de ensino de São Paulo e autor dos títulos Pedagogia do amor e Pedagogia da amizade, entre outros.

Os casos são inúmeros e, na maioria, o despreparo da escola e a falta de diálogo entre pais e filhos agravam a situação. “Pesquisas apontam que metade dos alunos sofre alguma forma de bullying. Se não houver medidas protetoras e preventivas contra, vão existir crianças e adolescentes traumatizados, com medo da escola, com dificuldade de aprender”, avalia Chalita.

Para o pediatra Aramis Lopes, as escolas devem se conscientizar de que são instituições dedicadas à educação, e não apenas ao ensino. “São espaços para o desenvolvimento de habilidades dedicadas a socialização, convivência e desenvolvimento de potenciais entre os estudantes. Portanto, todas elas deveriam contemplar ações de prevenção e redução dessa prática.” Lopes é um dos fundadores da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), uma organização não governamental carioca que, há 18 anos, defende os direitos da criança e do adolescente por meio de programas de prevenção à violência.

Lopes garante que medidas individuais são pouco eficazes e a escola deve manter um trabalho que contemple o alvo, o agressor e as famílias. Um exemplo de trabalho que envolve as três vertentes acontece no Colégio Dante Alighieri, de São Paulo. Silvana Leporace, coordenadora do serviço de orientação educacional da escola, admite que o problema é real, mas defende que, com diálogo, é possível para a vítima adquirir atitudes positivas.

“Fazemos um trabalho reflexivo sobre responsabilidade, cooperação, solidariedade e convivência. Temos os professores como grandes aliados, além da família, que muitas vezes traz o problema até nós”, conta. As ações têm diversos efeitos. Moderador de uma comunidade no Orkut que fazia apologia ao bullying, Giovanni Knoxville, 14 anos, que não quis dar seu verdadeiro nome, afirma que o praticava por diversão. “Já joguei um moleque numa lata de lixo e, quando ele caiu, chutei. Depois, chamei uns amigos e fizemos ‘montinho’ nele”, afirma o adolescente de Santos (SP). Giovanni revela que as palestras em sua escola surtiram efeito, já que ele não pratica mais ataques. Porém, o jovem diz não sentir culpa. “Sentia alegria, euforia. Meus amigos riam sem parar. Mas, agora, penso bem e ainda imagino se um desses moleques me ataca armado.”

Os agressores nem sempre agem assim por natureza. Segundo Chalita, um dos motivos recorrentes para a prática está na imitação do comportamento dos pais. “Uma criança que apanha na escola e, por conta disso, apanha do pai, vai achar que pode fazer isso com outras. O agressor é tão vítima quanto a vítima. Ele quer chamar atenção e consegue, se impondo pela força”, explica.

Seja da forma que aconteça, a melhor defesa é o conhecimento. Para Chalita, o tema não deve vir imposto, e sim colocado em discussão com filmes, livros e peças teatrais. “O importante é desenvolver estratégia para perceber que tipo de sofrimento o jovem ou a criança está tendo na escola. O ideal é que exista um programa preventivo e que a escola ajude a formar os professores. Ao formálos, é necessário que haja material para trabalhar o bullying dentro da sala e na interação com os pais, trazê-los para discutir o que é preconceito, discriminação, sofrimento. Você precisa despertar nos alunos o senso de compaixão”, frisa.

A falta de culpa que acomete os agressores pode ser amenizada com os exemplos de quem já passou por isso. “Por muito tempo, me senti a pior pessoa do mundo. Ficava com medo de ir a alguns lugares, de me aproximar das pessoas, pois achava que também poderiam me maltratar. Superei o trauma conhecendo gente que não se importava com meu jeito de ser, com as roupas que vestia”, conta a universitária Adriéli Mussete, 24 anos, de São Paulo, que sofreu bullying na escola e ainda passa por isso na universidade.

Esse é um dos principais conselhos para quem ainda sofre com o problema. “Os alvos devem ser orientados sobre medidas para evitar que continuem sofrendo ataques. Eles podem buscar amizades com grupos que não adotem comportamentos agressivos, contar a seus pais sobre o que vem ocorrendo na escola, buscar o auxílio de algum professor ou funcionário da escola em quem confiem”, explica Lopes.

As experiências são sempre parecidas e os motivos que servem de estopim, pequenos. Entretanto, o trauma que fica na vida adulta é, de certa forma, perene. “A pessoa perde a confiança no outro, em si própria e começa a render pouco; não acredita em si. Outras vivem à base de remédios. O bullying deixa uma marca interna muito profunda”, completa Chalita. Cabe aos envolvidos impedir que essa marca continue a existir.

ASSÉDIO MORAL
Se no mundo infantojuvenil é a força física que decide, no universo adulto é o poder do cargo ou o poder econômico que define vítima e algoz. Quando essa relação se baseia no abuso de poder e inflige humilhações, está caracterizado o assédio moral.

“Juridicamente, o assédio moral pode ser considerado abuso emocional no local de trabalho, de forma maliciosa, sem conotação sexual ou racial, com o fim de afastar o empregado das relações profissionais, por meio de boatos, intimidações, humilhações, descrédito e isolamento”, garante o advogado trabalhista Téssio Tôrres.

A assistente jurídica S.M.S., 30 anos, não se esquece dos traumas adquiridos pelo assédio a que foi submetida. “Já não podia medir meu rendimento profissional, porque a assediadora tirou de mim todas as responsabilidades e incumbências que à minha função cabiam. Ia para o trabalho e não tinha nada para fazer. não havia mais a relação da contraprestação do contrato de trabalho”, conta.

Muitos casos vão parar na Justiça. Contudo, provar que está sob assédio é algo difícil. “Tão logo a vítima perceba que está sendo atacada, ela deve reunir documentos escritos pelo assediador, como e-mails, cartas e bilhetes, além de laudos médicos, cartões de ponto e quaisquer outros documentos que provem perseguição”, explica Tôrres.

S.M.S. disse ter confirmado suas suspeitas durante palestra sobre o assunto. Ao fazer uma pergunta hipotética, mas usando seu caso, obteve uma resposta imediata: a situação que descrevia era de assédio moral. Apesar disso, não conseguiu provar, para seus superiores, as denúncias. “O pesadelo teve fim quando resolveram me demitir, depois de nove anos de prestação de serviços. Foram incisivos em dizer que meu desligamento não tinha relação alguma com a queixa apresentada. Sei que saí de lá por ter denunciado. Mas não me arrependo. Fiz o que era certo. Recuperei, apesar de tudo, o bem que eles queriam tirar: minha dignidade.” ©



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