resistir info - 27 de set 2011
por Claudio Katz
[*]
Já são incontáveis as comparações do
precedente argentino com o desmoronamento da Grécia. Os analistas tentam
perceber se as medidas adoptadas pelo primeiro país aliviariam ou
agravariam a situação do segundo. Esta avaliação
estende-se habitualmente a outros países da periferia europeia, como
Portugal e Irlanda. Nos movimentos sociais predomina outra
preocupação: que ensinamentos a experiência sul-americana
proporciona para a batalha contra o ajustamento?
RESGATES SEMELHANTES
A Grécia enfrenta o mesmo drama sofrido pela Argentina em meados de 2001. O governo da Aliança preservava a política neoliberal de Menem e o endividamento explosivo do estado empurrava o país para a cessação de pagamentos. Nos anos 90 estes compromissos saltaram de 84 mil milhões para 147 mil milhões de dólares e o pagamento dos juros asfixiava as finanças públicas. Estes desembolsos triplicavam as despesas correntes, superavam em seis vezes as contribuições da assistência social e eram 23 vezes maiores do que os recursos destinados aos planos de emprego.
Periodicamente improvisavam-se refinanciamentos de emergência para evitar o incumprimento (default). Os vencimentos reciclavam-se com créditos a taxas usurárias ("blindagem") e com desesperados intercâmbios de títulos para adiar os pagamentos ("mega-canje"). Os credores descontavam a inviabilidade destas operações a taxa de "risco-país" – que media a vulnerabilidade do devedor – mantinha-se em níveis exorbitantes [1] .
A Grécia desliza rumo ao mesmo precipício. Arrasta um endividamento total semelhante ao argentino dessa época e recorre aos mesmos planos para socorrer os credores. Há um ano aceitou um resgate para escapar ao afogamento de não liquidez e enfrenta agora uma crise de insolvência de grandes proporções.
Uma década atrás este contexto conduziu à catástrofe social da Argentina (54% de pobres, 35% de desemprego, fome dos mais humildes). A degradação acentuava-se a cada agressão que o governo ensaiava para exibir capacidade de pagamento. Reduziram-se os salários e aumentaram os impostos indirectos, juntamente com várias diminuições do orçamento de educação e sucessivos prolongamentos da idade de aposentação.
Estes mesmos atropelos repetem agora os governantes gregos, que no ano passado [2010] cortaram 20% do emprego público, amputaram 10% das pensões, incrementaram o imposto de valor acrescentado e destruíram sem qualquer consideração a educação e a saúde.
Há dez anos o governo argentino já havia consumado as principais privatizações dos bens públicos (petróleo, electricidade, telefones, gás) e prometia acelerar as transferências pendentes (Banco Nación, empresas provinciais, lotaria, universidades).
Na Grécia finalizam-se agora os pormenores de uma liquidação maciça das propriedades do estado (correios, portos, empresas de água). Só a Acrópole ficou excluída dessa venda geral, que alguns capitalistas alemães pretendem estender a várias ilhas.
Os mesmos funcionários do FMI que actualmente redigem os memorandos para a Grécia, uma década atrás dirigiam inspecções periódicas no Cone Sul da América do Sul e seleccionavam os activos a entregar aos credores. Também eram habituais as mesmas sessões de emergência do Parlamento para aprovar ajustes e até se ensaiou uma agência colonial análoga para supervisionar a arrecadação de impostos.
A estratégia dos credores ajusta-se ao mesmo libreto. Procuraram arrecadar todo o possível, esmagando a população e transferindo papéis desvalorizados para os estados. Desta forma limpam seus balanços e reduzem as perdas provocadas pela impossibilidade de cobrança.
Esta sucção consumou-se na Argentina ao longo de vários anos, mediante ciclos de interrupção e retomada dos pagamentos. Enquanto negociavam com os governos, os bancos obtinham fortes fluxos de cash através da fuga ilegal de capitais. Desde essa época, os fundos expatriados superam amplamente a dívida pública do país.
Os financeiros conseguiram lucros caudalosos durante o processo de refinanciamento. Lucraram especialmente com duas iniciativas do governo estado-unidense para recompor o perfil dos títulos latino-americanos. Primeiro utilizaram o Plano Baker para aligeirar a carga dos bancos comerciais mais expostos. A seguir aproveitaram o Plano Brady para completar essa limpeza, associado aos Fundos de Investimento a gestação de um mercado secundários para os títulos com problemas. Os bancos restauraram seus lucros computando nos seus balanços os títulos degradados pelo seu valor original e transferindo as promissórias mais incobráveis aos detentores marginais.
Esta mesma estratégia de reestruturação está agora a ser tentada pelas entidades do Velho Continente. Em Maio de 2010 foi criado um Fundo de Estabilização (FEEF), que o Banco Central Europeu (BCE) utiliza para recomprar aos bancos os títulos atrasados, com fortes subsídios das taxas de juros.
Alguns peritos argentinos que acompanharam de perto este mesmo processo há uma década confirmam a semelhança entre ambas as operações. Mas também consideram que a situação actual dos bancos é muito mais grave [2] .
IMPACTOS DIFERENTES
A crise grega é mais explosiva que a sua antecessora argentina devido à magnitude dos desequilíbrios. Com percentagens semelhantes de passivos totais, o défice fiscal do primeiro país atinge os 10,5% a confrontar com os 3,3% que tinha o segundo.
Mais significativas são as diferenças na situação do bloco credor. Enquanto os prestamistas da Argentina tiveram vários anos para se reacomodarem, os bancos europeus trabalham contra relógio para refazerem o seu património. Quando se declarou o incumprimento no Cone Sul a maior parte dos bancos já havia trespassado seus créditos. Por esta razão, o FMI tolerava a cessação de pagamentos. Em contrapartida, o BCE recusa esta saída, uma vez que as entidades alemãs e francesas que colocaram dinheiro na Grécia continuam a lidar com o problema nas suas carteiras [3] .
Existe, além disso, uma gritante desigualdade no manejo de ambas as crises. A dívida argentina era gerida por um comando do FMI sob estrita supervisão estado-unidense. O passivo grego é supervisionado, em contrapartida, por dirigentes de um banco europeu com pouca experiência neste tipo de explosões. A Comissão Política que monitora este processo tem autoridade escassa e não actua à frente de um estado unificado. Demonstrou pouca capacidade de arbitragem para ultrapassar, por exemplo, as discrepâncias que confrontam a Alemanha com a França [4] .
Ambas as potências inicialmente estiveram de acordo em auxiliar todas as entidades à custa do erário público e em estabelecer só um limite temporal para a conclusão da transferência (ano 2013). Mas o ritmo vertiginoso da crise obriga a acelerar a absorção estatal das perdas e a introduzir uma penalização parcial dos bancos. A Alemanha percebe que a simples continuidade do socorro estatal cria um horizonte de colapso fiscal e reclama uma participação das entidades nos resgates (com os seus próprios recursos). A França opõe-se a esta punição, alegando o perigo de que implica uma descapitalização dessas instituições.
Depois de muitas escaramuças finalmente chegou-se a uma nova trégua e a certo acordo para financiar o segundo pacote da Grécia. Este programa supõe um frágil compromisso dos bancos para processar algumas perdas (através de um prolongado cronograma de trocas voluntárias de títulos), junto com uma nova ampliação do fundo estatal de socorro (FEEF). Com essa intervenção serão solvidas as novas operações concebidas para revalorizar os títulos gregos (recompras, garantias, créditos).
Mas a ruptura permanece sem resolução e os braços de força para definir quem pagará os pratos partidos processam-se através das chantagens que os bancos publicitam, através das classificadoras de risco. As disputas em jogo estendem-se ao próprio âmbito dos credores entre os grupos mais expostos (que aceitam a introdução de algum imposto geral para aliviar os desequilíbrios) e os financeiros menos afectados (que recusam essa contribuição).
A crise argentina nunca apresentou esse nível de dramatismo. Esta diferença é levada em conta pelos analistas que recordam o choque do "corralito" e avaliam a sua possível repetição actual. No zénite do colapso de 2001, os bancos sofreram uma retirada maciça de fundos que o governo contrabalançou confiscando os pequenos poupadores. Essa expropriação desencadeou uma grande comoção, mas esta não ultrapassou as fronteiras nacionais.
A dívida grega encontra-se pelo contrário muito entrelaçada ao sistema financeiro europeu e está denominada na moeda de toda a comunidade. Por esta razão, uma corrida de depósitos poderia ter alcance continental imediato. Os bancos do Velho Continente não só carregam o pesadelo da dívida pública como também enfrentam graves insolvências de empresas. Este perigo não foi dissipado pelas "provas de resistência" realizadas recentemente para simular situações de ruptura. Esta situação preocupa muitos peritos do FMI, que comparam o cenário em curso com o precedente argentino [5] .
O pano de fundo do problema está no facto de que a crise grega se desenvolve num contexto de endividamento estatal crítico em todo o Primeiro Mundo. Os passivos da França (81% do PIB), Alemanha (80%), Japão (220%) e Estados Unidos (91%) impedem que se faça a gestão da periferia com a mesma tranquilidade com que foi manejada a explosão da Argentina. Nesse momento a dívida era brasa quente das economias dependentes e na actualidade é uma bomba relógio no centro do capitalismo.
O CÍRCULO VICIOSO DO AJUSTAMENTO
Tal como ocorreu com a Argentina em 2001, chovem os insultos dos governantes direitistas contra os gregos. Apresentam esta comunidade como um bando de preguiçosos que enganaram os bancos, dilapidando os vultuosos créditos que receberam devido à boa vontade dos prestamistas. Esta mesma fábula era difundida pelos funcionários norte-americanos da administração Bush, quando desqualificavam os argentinos.
Os meios de comunicação dominantes encabeçam esta campanha, propagando a crença absurda de que os gregos desfrutam de um nível de vida invejável à custa do Norte da Europa. Este mito não resiste à menor verificação, uma vez que todos os indicadores sociais desfavorecem a periferia da região [6] .
Com essa inversão da realidade, as mensagens reaccionárias pretendem demonstrar que o refinanciamento da dívida grega constitui uma "ajuda da comunidade internacional" ao sócio descarrilado. Há dez anos diziam o mesmo do caso argentino. Aqueles que resolvem com desemprego, pobreza e degradação salarial a sobrevivência dos financeiros são apresentados como beneficiários da caridade mundial.
Tais colocações também ocultam como os governos auxiliam os capitalistas franceses e alemães, que durante as últimas décadas lucraram com a apropriação dos excedentes geraram na Europa do Sul. O mesmo tipo de lucros obtinham as grandes empresas estrangeiras que operavam na Argentina, no período de maior reorganização neoliberal. Primeiro debilitaram a indústria nacional através da abertura comercial e a seguir apropriaram-se de porções crescentes do mercado local.
A Grécia sofreu uma degradação semelhante depois de adoptar o euro e entrar na União Europeia. Uma economia frágil ficou à mercê da esmagadora competitividade alemã e do consequente défice comercial financiado com endividamento [7] .
Na realidade, nenhum país da periferia europeia pôde resistir à esmagadora superioridade de economias mais avançadas, que aproveitaram a criação de um mercado continental unificado para garantir a sua hegemonia. A explosão de dívidas privadas, as ultrapassagens consumistas e as bolhas imobiliárias que afectaram os sócios mais vulneráveis foram alimentados pelos excedentes industriais, que descarregaram as economias mais poderosas. Como a moeda comum facilitou especialmente os negócios dos industriais alemães, este sector actualmente promover a permanência da Grécia no euro e inclusive estimula algum tipo de "Plano Marshall" para financiar futuras importações.
Se estas assimetrias forem concluídas provocando uma fractura da eurozona, repetir-se-á o ocorrido com a Argentina (e outras economias latino-americanas), que padeceram na própria carne os típicos desequilíbrios da relação centro-periferia.
Os neoliberais omitem estas desigualdades quando exigem maiores sacrifícios aos gregos. Afirmam que estes sofrimentos permitirão "recuperar a confiança investidora" e reencaminhar a economia. Merkel repete este vaticínio todos os dias, sem esclarecer quando seria concluído o ajustamento. Seus economistas só prevêem que a Grécia venha a flutuar em algum momento se mantiver a camisa de força do euro e aceitar os sacrifícios deflacionários.
Esta visão também recorda o verificado na Argentina. Há dez anos a economia encontrava-se estritamente atada a um regime de convertibilidade com o dólar, que obrigava a deprimir os rendimentos para assegurar o pagamento da dívida. Quando esse sistema explodiu os ultra-liberais propuseram reforçá-lo mediante uma dolarização completa (como no Equador ou no Panamá). Anulava-se a moeda nacional, retirando ao Estado o último recurso vigente para contrapor-se ao ajustamento deflacionário.
Os partidários desta contracção esgrimiam os mesmos argumentos que actualmente circulam na Grécia, para manter a qualquer preço a submissão ao euro. Afirmavam que a dolarização assegurava a confiabilidade da moeda e a consequente afluência dos capitais externos exigidos para refinanciar a dívida. Com o desmoronamento da convertibilidade essa fantasia passou ao esquecimento.
É evidente que a política deflacionária empurra qualquer país para o abismo. O PIB da Grécia desmoronou desde o início da crise e registou uma nova derrocada de 5,5% no primeiro trimestre do ano. É muito oportuno recordar que a recessão argentina prolongou-se durante quatro anos e o produto industrial chegou a descer 11%, sob o peso de opressivas taxas de juro que frustravam cada assomo de reactivação.
Actualmente os neoliberais não podem apresentar nenhum cenário de saída da crise, uma vez que todos os seus modelos encontram-se em terapia intensiva. Já ninguém se recorda dos elogios que prodigalizavam à Argentina nos anos 90, mas estão muito frescas suas ponderações do esquema irlandês. Este ensaio transitou por todos os calvários que actualmente são promovidos para a Grécia.
Na Irlanda privatizou-se desde a energia até as telecomunicações, introduziram-se todos as desregulamentações promovidas pela ortodoxia económica e os efeitos fiscais estão à vista: quebras de bancos, socorros estatais, défice fiscal, uma nova sequência de supressão de empregos, quedas salariais e aumentos dos impostos indirectos [8] .
Também Portugal encaminha-se rumo ao mesmo desfiladeiro, à medida que um governo conservador tenta galantear com os banqueiros, subindo a aposta dos atropelos sociais. Já recebeu um resgate, ficou sem reservas e negoceia os vencimentos com a corda no pescoço que lhe colocaram os financeiros [9] .
Outro caso extremo de apertão deflacionário pode ser observado na Letónia, uma economia situada fora do circuito do euro. Desde a explosão da crise em 2009 o desemprego subiu até 23%, o PIB caiu 25%, os salários do sector público foram reduzidos nuns 30% e 75% dos trabalhadores sofreram cortes de rendimentos. Num clima de encerramento de escolas e hospitais a emigração massificou-se [10] . Estes cenários não deixam dúvida alguma sobre o carácter demolidor que gera o círculo vicioso do ajustamento.
INUTILIDADE DOS REFINANCIAMENTOS
A política deflacionária é frequentemente contraposta à continuidade dos refinanciamentos. Apela-se a sustentar o devedor com novas emissões de títulos, na expectativa de aliviar a carga futura da hipoteca. Uma variante deste tipo é promovida pelos partidários de emular a experiência latino-americana, com um "Plano Brady Europeu" de títulos a 20 anos supervisionados pelo BCE [11] .
Ainda que aparentem maior contemplação para com os devedores, estas iniciativas endossam as mesmas exigências de privatização, cortes de gastos sociais e esmagamento das pensões de reforma. Longe de reduzir a agonia financeira, estes programas eternizam o tributo da Grécia aos bancos.
É equivocado supor que este refinanciamento será mais digerível, se se efectua junto com medidas de regulação financeira, controle da especulação ou eliminação dos paraísos fiscais. A Grécia tão pouco conseguirá um alívio com a simples redução das taxas de juros, se persistirem os pagamentos aos credores. A dívida é tão monumental que nem sequer com um crescimento contínuo de 8% ao ano durante 20 anos conseguiria diminuir seu passivo para os parâmetros iniciais da União Europeia [12] .
A experiência argentina não deixa dúvida alguma quanto à inutilidade dos refinanciamentos. Todas as versões que se tentaram no país para manter a flutuar o barco da convertibilidade naufragaram em 2001. Ao prorrogar os compromissos de pagamento, esses remendos só adiaram a declaração formal de insolvência. Este mesmo cenário tende a reaparecer na Grécia [13] .
O refinanciamento – que os keynesianos ponderam – não se contrapõe à deflação, que os ortodoxos postulam. São duas variantes do mesmo suporte aos bancos. Enquanto a primeira opção procura potenciar os auxílios para evitar um tsunami de rupturas, a segunda alternativa alerta contra a deterioração fiscal que gera esse salvamento. O governo norte-americano enfrentou este mesmo dilema quando um dia decidiu encerrar o Lehman Brothers e na jornada seguinte recorreu ao financiamento ilimitado das entidades que entraram em colapso.
Os políticos social-democratas actuam como porta-vozes dos empréstimos contínuos frente aos seus pares conservadores, que levantam a voz contra a flexibilidade creditícia. Ambas as posturas divergem apenas na caracterização do mal menor para o capitalismo.
Nos momentos de crise aguda os sociais-democratas procuram escapatórias e tentam disfarçar seu alinhamento explícito junto aos bancos e contra os povos. Na conjuntura europeia essa máscara está a cair e os atropelos brutais contra os trabalhadores são aplicados sem nenhuma anestesia.
TRÊS ENSINAMENTOS
A cessação de pagamentos da Argentina prolongou-se durante mais de três anos. Afectou os credores privados, mas não os organismos multilaterais (o FMI conseguiu o cancelamento antecipado de todos os seus empréstimos). As negociações com os detentores de títulos realizaram-se em várias rondas. Em 2005 instrumentou-se uma troca com três opções de quitação entre 50% e 60% do valor original. Uma percentagem minoritária de credores não aceitou esta proposta e foi convocada para um segundo intercâmbio de papéis, que culminou recentemente.
O montante total da dívida argentina reduziu-se significativamente em comparação com as exportações e o produto (48% do PIB). Atenuou-se o horizonte imediato de compromissos e a metade do passivo ficou denominada em moeda nacional (com uma significativa porção das obrigações dentro do próprio sector público) [14] .
O ocorrido com a Argentina mostra que a suspensão de pagamentos é factível e conveniente, para qualquer devedor empurrado a uma situação de asfixia. A cessação parcial das contribuições oxigenou a economia nacional, durante o período crítico de recuperação que se seguiu ao incumprimento. Este alívio permitiu negociar em melhores condições financeiras a troca da dívida.
O resultado desta operação desinchou todos os fantasmas propagados pelos banqueiros para atemorizar os devedores. O país não ficou "fora do mundo", não perdeu mercados, nem se transformou num "pária da comunidade internacional". Os bens do país no exterior tão pouco sofreram confiscos. Todas as advertências que os financeiros esgrimiam foram diluídas sem pena nem glória.
Certamente o povo argentino sofreu uma terrível degradação do nível de vida. Mas esses sofrimentos foram anteriores ao incumprimento e motivados pelo cumprimento forçoso das exigências dos banqueiros. A cessação de pagamentos não acrescentou qualquer sofrimento adicional à sangria desse período.
Muitos economistas do establishment sustentam que o caminho "agressivo" seguido pela Argentina gerou mais adversidades do que o caminho "amistoso" transitado por outros países latino-americanos (como o Brasil, Uruguai ou Jamaica) [15] .
Mas esta afirmação não tem o menor fundamento. A América Latina atravessou muitas experiências de moratória e inclusive a Argentina viveu vários períodos de cessação concertada dos pagamentos (por exemplo entre 1988 e 1992). Nenhum dado sugere a conveniência deste curso. A negociação do incumprimento ou sua imposição de facto não reduz por si mesmo as restrições que o povo suporta.
A história económica contemporânea regista, além disso, uma incontável variedade de crises de pagamento, com processos negociados igualmente dolorosos. Inclusive casos muito acordados (como a Alemanha em 1953 ou a Indonésia em 1971) exigiram importantes contrapartidas aos credores.
Nos debates sobre estas peripécias convém reter as três grandes lições da Argentina para a Grécia. Essa experiência indicou em primeiro lugar a inquestionável conveniência de travar a sangria do devedor, mediante uma suspensão unilateral dos pagamentos. Também esclareceu a importância de escolher o momento mais conveniente para essa ruptura.
A Argentina declarou incumprimento de forma involuntária, quando o país ficou sem fundos. A Grécia poderia consumar esta acção antes de perder seus recursos. Tem a possibilidade de antecipar-se e actuar enquanto os credores afrontam o grande lastro de títulos incobráveis que acumulam nas suas carteiras. Não há que dar tempo aos financeiros para que transformem esses papéis em obrigações alheias.
Em segundo lugar é indispensável por em prática de imediato a auditoria da dívida. Na Argentina discutiu-se muito essa iniciativa, perante as denúncias esmagadoras que existiam acerca do carácter fraudulento do passivo. A dívida foi acrescentada com compromissos inexistentes que financiaram a fuga de capitais, com uma espiral dos juros e com uma grande absorção estatal de rupturas privadas.
Estas irregularidades comprovadas ficaram impunes. O lobby dos banqueiros bloqueou todas as tentativas de investigação e paralisou vários projectos parlamentares de revisão dos passivos. As consequências deste silenciamento saíram à tona em todos os debates posteriores acerca da dívida. Neste terreno, a Argentina ficou muito atrás do Equador, que implementou uma investigação esclarecedora.
Na Grécia existe actualmente a possibilidade de efectuar a auditoria. Esta acção permitiria anular a porção ilegítima dos passivos e facilitaria a constituição de um registo dos proprietários dos títulos. Esta identificação seria indispensável para determinar os direitos de cobrança. Já existe uma importante iniciativa para desenvolver essa investigação [16] .
A terceira lição da Argentina é a necessidade de nacionalizar os bancos e estabelecer um controle total sobre os movimentos de divisas e capitais. Estas medidas deveriam ser adoptadas antes de suspender o pagamento da dívida (ou modificar a taxa de câmbio). A Grécia está a tempo de, com estas acções, preservar os recursos do país.
Alguns economistas consideram indispensável romper de imediato com a adscrição ao euro. Mas a recuperação da moeda nacional exige primeiro assegurar as reservas, impedindo a fuga frenética de dinheiro que acompanharia qualquer viragem económico. Só com a intervenção dos bancos (e sua nacionalização posterior) e mediante um estrito controle de câmbios seria possível actuar contra o esvaziamento de divisas que rodearia a busca de uma nova soberania monetária.
Na Argentina não se adoptaram essas medidas e o resultado foi um colapso caótico da convertibilidade, em meio à inflação e ao empobrecimento popular. Em lugar de expropriar os bancos roubou-se os poupadores e dilapidaram-se fundos vultuosos (equivalentes a 12-14 pontos do PIB) no socorro aos financeiros.
É indubitável que qualquer política radical de choque com credores geraria custos e implicaria riscos. No caso grego é vital considerar como seriam feitas as importações, como se garantiria a continuidade do turismo e como se preservaria a actividade da navegação. Mas há que encarar esta avaliação, sem esquecer que o pagamento da dívida vaticina um horizonte muito superior de sofrimentos.
Alguns economistas deixam de avaliar as salvaguardas que são precisas para optar por outro rumo económico. Aconselham desvalorizar e sair do euro, sem mencionar a protecção das reservas e a necessária conversão dos bancos em entidades públicas. Esta atitude leva a um remédio que piora a doença. Basta observar o que já ocorre nos países que instrumentam políticas capitalistas fora do raio do euro. A Argentina é uma boa referência para analisar o que se pode fazer e o que é preciso evitar, para reconstruir a economia grega.
CAMINHOS DE RECUPERAÇÃO
Depois de chegar ao fundo, a economia argentina iniciou um processo sustentado de crescimento. Esta reflutuação apoia-se na ampliação das exportações e na restauração do consumo interno.
A fractura social da procura, a elevada inflação, a continuada fuga de capitais e o baixo investimento obstruem esta retomada e abrem sérias interrogações sobre a sua consistência. Mas é indubitável que a era pós-incumprimento é assinalada por um ciclo de reanimação, que induz muitos economistas a apresentar o país como um modelo a seguir pela periferia europeia.
Nesta tentação de imitação costuma-se esquecer que a recuperação argentina obedece a três razões específicas: a restauração da taxa de lucro, a valorização internacional das exportações e a ampla margem para aplicar políticas económicas expansivas.
O primeiro determinante surgiu ao fim do ajuste brutal gerado pela mega-desvalorização. Esta cirurgia depurou capitais, embarateceu salários e, como costuma ocorrer em certas conjuntas do ciclo capitalista, facilitou a recomposição do lucro.
Esta retomada foi assegurada pela reacção do sector externo. Uma economia parcialmente autónoma dos fluxos internacionais de capital pode manter certa desconexão do financiamento internacional. O quinto exportador mundial de alimentos gozou, além disso, dos melhores preços internacionais das últimas décadas para as vendas de soja.
A Argentina transformou-se num fornecedor privilegiado das economias asiáticas em ascensão, enquanto multiplicou seus intercâmbios com o Brasil e diversificou o seu comércio. Grande parte dos enormes rendimentos captados pelo estado durante os últimos anos foi utilizada para reanimar a procura interna. Por essa via substituiu-se o escasso investimento privado e ensaiou-se um esquema neo-desenvolvimentista de maior fomento à indústria e menor espaço para a valorização financeira [17] .
Se a Grécia entrasse numa cessação de pagamentos poderia repetir esta trajectória? É evidente que a economia mediterrânica não conta com os recursos naturais, nem o tipo de inserção internacional que permitiram a recuperação argentina. Mas ninguém imaginou há uma década que a economia austral entraria numa fase ascendente logo a seguir ao incumprimento. Supunha-se antes que esse episódio conduziria a uma derrocada apocalíptica. Confirmou-se que os vai-e-vens da conjuntura internacional são relativamente imprevisíveis e não trazem argumentos definitivos para optar por uma ou outra política económica.
É evidente que a Grécia está mais conectada ao curso geral da Europa do que a Argentina ao devir da América Latina. A primeira região opera como um motor auto-suficiente e a segunda mantém as suas amarras tradicionais aos principais centros da economia global.
Devido a esta elevada conexão com seu sócios europeus, a Grécia precisa complementar uma eventual moratória com acções regionais colectivas. O êxito de uma política radical exigiria medidas comuns com os vizinhos da periferia europeia. A batalha contra os credores exigiria obter um acompanhamento de Portugal, Irlanda, Islândia e outros países penalizados por banqueiros.
Durante a década passada este tipo de iniciativas conjuntas era discutido na América Latina, avaliando a proposta de formar um "clube de devedores". O objectivo era forjar um bloco de afectados para dobrar o poder dos financeiros. Mas em 2001 esta campanha havia perdido impulso e predominava um grande dispersão entre os países golpeados pelo saqueio da dívida. A situação europeia actual difere desse período latino-americano pelo alto grau de associação comunitária que se verifica no Velho Continente [18] .
Outra diferença importante é a inexistência de uma fronteira nítida entre situações de colapso na periferia e conjunturas de prosperidade no centro europeu. As economias intermédias da Espanha e Itália começam por exemplo a padecer a mesma ameaça de desmoronamento fiscal que afecta a Grécia ou a Irlanda. Por essa razão, o principal receio do momento é a eventual extensão da crise a esses países.
Neste quadro, a batalha para associar os devedores apresenta outras modalidades. Mas estas características só poderão revelar-se se algum país se puser de pé frente aos banqueiros e propuser a constituição de uma rede de solidariedade. A Grécia reúne muitas condições para liderar esse processo.
Só a moratória unilateral abriria a possibilidade de negociar com os bancos sem afectar o nível de vida popular. Para estabelecer um estrito limite de pagamentos, implementar políticas de investimento em áreas sociais e recompor a capacidade aquisitiva popular há que por em prática medidas mais audazes que as adoptadas há uma década pela Argentina.
A MESMA SUBLEVAÇÃO
A principal analogia entre a Grécia e a Argentina verifica-se no terreno da insubordinação popular. Ambos os países contam um rico historial de lutas sociais. O levantamento de Dezembro de 2001 foi herdeiro do Cordobazo (1969), da greve geral (1975), das paralisações contra a inflação (anos 80) e das mobilizações contra o desemprego (década de 90). Nas batalhas que trava o povo grego está presente o legado da guerra civil (1944-49), a resistência contra a ditadura (1973) e as acções da juventude (2008) [19] .
A seguir a onze paralisações incontáveis manifestações observam-se nas últimas semanas uma nova irrupção maciça. Multiplicam-se as ocupações das praças, os enfrentamentos com a polícia e a ultrapassagem das direcções sindicais [conciliadoras]. Tal como em Buenos Aires dez anos atrás, os militantes de Atenas organizam acampamentos, resistem aos desalojamentos e lideram assembleias populares. A juventude converge com os trabalhadores, forjando o mesmo reencontro que tiveram na América do Sul os piquetes dos desempregados com as caçarolas da classe média.
As palavras de ordem também se assemelham ("fora com os ladrões") ou as exigências ("não devemos, não pagamos, não vendemos") e existe o mesmo tipo de recusa aos conluios entre os oficialismo e a oposição conservadora.
O despertar popular veio à tona na Argentina quando se desmoronou o sermão neoliberal, que vaticinava um iminente "ingresso no Primeiro Mundo". A mesma ira explodiu entre os gregos, quando se dissiparam as expectativas criadas com a incorporação à União Europeia. Todos os analistas coincidem em caracterizar que a crise já ultrapassou completamente a esfera financeira e resolve-se nas ruas [20] .
Dez anos atrás a rebelião argentina travou o ajustamento, frustrou o programa deflacionário e bloqueou a dolarização. Também obrigou a implementar um projecto político que combina restauração do poder dos dominadores com concessões democráticas e sociais. A sublevação confirmou a utilidade da luta para reverter relações de força desfavoráveis, conceder legitimidade aos movimentos sociais e legalizar as greves. Permitiu travar a repressão brutal (que persiste na Colômbia ou no México) e contrariou a resignação dos movimentos sociais (que se observa no Uruguai ou no Brasil).
A rebelião argentina ficou na metade do caminho. Não expulsou os políticos corruptos, nem erradicou o lastro do bipartidarismo. Tão pouco impediu o enriquecimento dos mesmos capitalistas que lucraram com a convertibilidade. Mas condicionou toda a política externa e induziu a um manejo da dívida que limitou as apetências dos credores durante a mudança (canje). É importante ter em conta estes resultados quando se traçam comparações internacionais [21] .
A batalha popular que se trava actualmente na Grécia apresenta um carácter mais popular. A rebelião argentina fez parte de um ciclo sul-americano de luta, mas não explodiu junto com as sublevações da Venezuela, Equador ou Bolívia. As mobilizações gregas coincidem em contrapartida com uma crise geral do Velho Continente, que tende a desencadear reacções simultâneas em vários pontos dessa região.
Essas respostas começam a romper o isolamento das resistências nacionais e permitiriam superar o desconcerto que prevaleceu no início da recessão. A generalização da acção popular é o melhor antídoto contra a passividade que a social-democracia estimula e contra as campanhas racistas que a direita promove.
O recente protesto dos indignados espanhóis pode marcar um ponto de inflexão nesta intervenção. O movimento ganha carácter de massa à medida que suas exigências políticas ("democracia de verdade") e económicas (fim do socorro aos bancos) conquistam maior legitimidade e acompanhamento [22] .
A presença dominante da juventude nestes movimentos – e a nova utilização das redes sociais como instrumento de contra-informação – incentiva o contágio continental. Esta generalização pode repetir o efeito dominó, que marcou os levantamentos do mundo árabe.
Além disso o entusiasmo juvenil aquece as energias dos trabalhadores, tanto nos países que mantém uma grande mobilização social (França), como nos países que sofreram refluxos prolongados (Grã-Bretanha). Se reaparecer a confiança na resistência poder-se-á visualizar a forma de generalizar a batalha contra os credores, já iniciada por alguns países como a Islândia.
Em síntese, a chama grega estender-se-á pela Europa e o seu impacto definirá quem aguentará com as consequências da crise. Este processo é seguido com enorme atenção na América Latina. Muito poucas notícias se aguardam com tanta esperança como uma vitória popular na Europa.
RESGATES SEMELHANTES
A Grécia enfrenta o mesmo drama sofrido pela Argentina em meados de 2001. O governo da Aliança preservava a política neoliberal de Menem e o endividamento explosivo do estado empurrava o país para a cessação de pagamentos. Nos anos 90 estes compromissos saltaram de 84 mil milhões para 147 mil milhões de dólares e o pagamento dos juros asfixiava as finanças públicas. Estes desembolsos triplicavam as despesas correntes, superavam em seis vezes as contribuições da assistência social e eram 23 vezes maiores do que os recursos destinados aos planos de emprego.
Periodicamente improvisavam-se refinanciamentos de emergência para evitar o incumprimento (default). Os vencimentos reciclavam-se com créditos a taxas usurárias ("blindagem") e com desesperados intercâmbios de títulos para adiar os pagamentos ("mega-canje"). Os credores descontavam a inviabilidade destas operações a taxa de "risco-país" – que media a vulnerabilidade do devedor – mantinha-se em níveis exorbitantes [1] .
A Grécia desliza rumo ao mesmo precipício. Arrasta um endividamento total semelhante ao argentino dessa época e recorre aos mesmos planos para socorrer os credores. Há um ano aceitou um resgate para escapar ao afogamento de não liquidez e enfrenta agora uma crise de insolvência de grandes proporções.
Uma década atrás este contexto conduziu à catástrofe social da Argentina (54% de pobres, 35% de desemprego, fome dos mais humildes). A degradação acentuava-se a cada agressão que o governo ensaiava para exibir capacidade de pagamento. Reduziram-se os salários e aumentaram os impostos indirectos, juntamente com várias diminuições do orçamento de educação e sucessivos prolongamentos da idade de aposentação.
Estes mesmos atropelos repetem agora os governantes gregos, que no ano passado [2010] cortaram 20% do emprego público, amputaram 10% das pensões, incrementaram o imposto de valor acrescentado e destruíram sem qualquer consideração a educação e a saúde.
Há dez anos o governo argentino já havia consumado as principais privatizações dos bens públicos (petróleo, electricidade, telefones, gás) e prometia acelerar as transferências pendentes (Banco Nación, empresas provinciais, lotaria, universidades).
Na Grécia finalizam-se agora os pormenores de uma liquidação maciça das propriedades do estado (correios, portos, empresas de água). Só a Acrópole ficou excluída dessa venda geral, que alguns capitalistas alemães pretendem estender a várias ilhas.
Os mesmos funcionários do FMI que actualmente redigem os memorandos para a Grécia, uma década atrás dirigiam inspecções periódicas no Cone Sul da América do Sul e seleccionavam os activos a entregar aos credores. Também eram habituais as mesmas sessões de emergência do Parlamento para aprovar ajustes e até se ensaiou uma agência colonial análoga para supervisionar a arrecadação de impostos.
A estratégia dos credores ajusta-se ao mesmo libreto. Procuraram arrecadar todo o possível, esmagando a população e transferindo papéis desvalorizados para os estados. Desta forma limpam seus balanços e reduzem as perdas provocadas pela impossibilidade de cobrança.
Esta sucção consumou-se na Argentina ao longo de vários anos, mediante ciclos de interrupção e retomada dos pagamentos. Enquanto negociavam com os governos, os bancos obtinham fortes fluxos de cash através da fuga ilegal de capitais. Desde essa época, os fundos expatriados superam amplamente a dívida pública do país.
Os financeiros conseguiram lucros caudalosos durante o processo de refinanciamento. Lucraram especialmente com duas iniciativas do governo estado-unidense para recompor o perfil dos títulos latino-americanos. Primeiro utilizaram o Plano Baker para aligeirar a carga dos bancos comerciais mais expostos. A seguir aproveitaram o Plano Brady para completar essa limpeza, associado aos Fundos de Investimento a gestação de um mercado secundários para os títulos com problemas. Os bancos restauraram seus lucros computando nos seus balanços os títulos degradados pelo seu valor original e transferindo as promissórias mais incobráveis aos detentores marginais.
Esta mesma estratégia de reestruturação está agora a ser tentada pelas entidades do Velho Continente. Em Maio de 2010 foi criado um Fundo de Estabilização (FEEF), que o Banco Central Europeu (BCE) utiliza para recomprar aos bancos os títulos atrasados, com fortes subsídios das taxas de juros.
Alguns peritos argentinos que acompanharam de perto este mesmo processo há uma década confirmam a semelhança entre ambas as operações. Mas também consideram que a situação actual dos bancos é muito mais grave [2] .
IMPACTOS DIFERENTES
A crise grega é mais explosiva que a sua antecessora argentina devido à magnitude dos desequilíbrios. Com percentagens semelhantes de passivos totais, o défice fiscal do primeiro país atinge os 10,5% a confrontar com os 3,3% que tinha o segundo.
Mais significativas são as diferenças na situação do bloco credor. Enquanto os prestamistas da Argentina tiveram vários anos para se reacomodarem, os bancos europeus trabalham contra relógio para refazerem o seu património. Quando se declarou o incumprimento no Cone Sul a maior parte dos bancos já havia trespassado seus créditos. Por esta razão, o FMI tolerava a cessação de pagamentos. Em contrapartida, o BCE recusa esta saída, uma vez que as entidades alemãs e francesas que colocaram dinheiro na Grécia continuam a lidar com o problema nas suas carteiras [3] .
Existe, além disso, uma gritante desigualdade no manejo de ambas as crises. A dívida argentina era gerida por um comando do FMI sob estrita supervisão estado-unidense. O passivo grego é supervisionado, em contrapartida, por dirigentes de um banco europeu com pouca experiência neste tipo de explosões. A Comissão Política que monitora este processo tem autoridade escassa e não actua à frente de um estado unificado. Demonstrou pouca capacidade de arbitragem para ultrapassar, por exemplo, as discrepâncias que confrontam a Alemanha com a França [4] .
Ambas as potências inicialmente estiveram de acordo em auxiliar todas as entidades à custa do erário público e em estabelecer só um limite temporal para a conclusão da transferência (ano 2013). Mas o ritmo vertiginoso da crise obriga a acelerar a absorção estatal das perdas e a introduzir uma penalização parcial dos bancos. A Alemanha percebe que a simples continuidade do socorro estatal cria um horizonte de colapso fiscal e reclama uma participação das entidades nos resgates (com os seus próprios recursos). A França opõe-se a esta punição, alegando o perigo de que implica uma descapitalização dessas instituições.
Depois de muitas escaramuças finalmente chegou-se a uma nova trégua e a certo acordo para financiar o segundo pacote da Grécia. Este programa supõe um frágil compromisso dos bancos para processar algumas perdas (através de um prolongado cronograma de trocas voluntárias de títulos), junto com uma nova ampliação do fundo estatal de socorro (FEEF). Com essa intervenção serão solvidas as novas operações concebidas para revalorizar os títulos gregos (recompras, garantias, créditos).
Mas a ruptura permanece sem resolução e os braços de força para definir quem pagará os pratos partidos processam-se através das chantagens que os bancos publicitam, através das classificadoras de risco. As disputas em jogo estendem-se ao próprio âmbito dos credores entre os grupos mais expostos (que aceitam a introdução de algum imposto geral para aliviar os desequilíbrios) e os financeiros menos afectados (que recusam essa contribuição).
A crise argentina nunca apresentou esse nível de dramatismo. Esta diferença é levada em conta pelos analistas que recordam o choque do "corralito" e avaliam a sua possível repetição actual. No zénite do colapso de 2001, os bancos sofreram uma retirada maciça de fundos que o governo contrabalançou confiscando os pequenos poupadores. Essa expropriação desencadeou uma grande comoção, mas esta não ultrapassou as fronteiras nacionais.
A dívida grega encontra-se pelo contrário muito entrelaçada ao sistema financeiro europeu e está denominada na moeda de toda a comunidade. Por esta razão, uma corrida de depósitos poderia ter alcance continental imediato. Os bancos do Velho Continente não só carregam o pesadelo da dívida pública como também enfrentam graves insolvências de empresas. Este perigo não foi dissipado pelas "provas de resistência" realizadas recentemente para simular situações de ruptura. Esta situação preocupa muitos peritos do FMI, que comparam o cenário em curso com o precedente argentino [5] .
O pano de fundo do problema está no facto de que a crise grega se desenvolve num contexto de endividamento estatal crítico em todo o Primeiro Mundo. Os passivos da França (81% do PIB), Alemanha (80%), Japão (220%) e Estados Unidos (91%) impedem que se faça a gestão da periferia com a mesma tranquilidade com que foi manejada a explosão da Argentina. Nesse momento a dívida era brasa quente das economias dependentes e na actualidade é uma bomba relógio no centro do capitalismo.
O CÍRCULO VICIOSO DO AJUSTAMENTO
Tal como ocorreu com a Argentina em 2001, chovem os insultos dos governantes direitistas contra os gregos. Apresentam esta comunidade como um bando de preguiçosos que enganaram os bancos, dilapidando os vultuosos créditos que receberam devido à boa vontade dos prestamistas. Esta mesma fábula era difundida pelos funcionários norte-americanos da administração Bush, quando desqualificavam os argentinos.
Os meios de comunicação dominantes encabeçam esta campanha, propagando a crença absurda de que os gregos desfrutam de um nível de vida invejável à custa do Norte da Europa. Este mito não resiste à menor verificação, uma vez que todos os indicadores sociais desfavorecem a periferia da região [6] .
Com essa inversão da realidade, as mensagens reaccionárias pretendem demonstrar que o refinanciamento da dívida grega constitui uma "ajuda da comunidade internacional" ao sócio descarrilado. Há dez anos diziam o mesmo do caso argentino. Aqueles que resolvem com desemprego, pobreza e degradação salarial a sobrevivência dos financeiros são apresentados como beneficiários da caridade mundial.
Tais colocações também ocultam como os governos auxiliam os capitalistas franceses e alemães, que durante as últimas décadas lucraram com a apropriação dos excedentes geraram na Europa do Sul. O mesmo tipo de lucros obtinham as grandes empresas estrangeiras que operavam na Argentina, no período de maior reorganização neoliberal. Primeiro debilitaram a indústria nacional através da abertura comercial e a seguir apropriaram-se de porções crescentes do mercado local.
A Grécia sofreu uma degradação semelhante depois de adoptar o euro e entrar na União Europeia. Uma economia frágil ficou à mercê da esmagadora competitividade alemã e do consequente défice comercial financiado com endividamento [7] .
Na realidade, nenhum país da periferia europeia pôde resistir à esmagadora superioridade de economias mais avançadas, que aproveitaram a criação de um mercado continental unificado para garantir a sua hegemonia. A explosão de dívidas privadas, as ultrapassagens consumistas e as bolhas imobiliárias que afectaram os sócios mais vulneráveis foram alimentados pelos excedentes industriais, que descarregaram as economias mais poderosas. Como a moeda comum facilitou especialmente os negócios dos industriais alemães, este sector actualmente promover a permanência da Grécia no euro e inclusive estimula algum tipo de "Plano Marshall" para financiar futuras importações.
Se estas assimetrias forem concluídas provocando uma fractura da eurozona, repetir-se-á o ocorrido com a Argentina (e outras economias latino-americanas), que padeceram na própria carne os típicos desequilíbrios da relação centro-periferia.
Os neoliberais omitem estas desigualdades quando exigem maiores sacrifícios aos gregos. Afirmam que estes sofrimentos permitirão "recuperar a confiança investidora" e reencaminhar a economia. Merkel repete este vaticínio todos os dias, sem esclarecer quando seria concluído o ajustamento. Seus economistas só prevêem que a Grécia venha a flutuar em algum momento se mantiver a camisa de força do euro e aceitar os sacrifícios deflacionários.
Esta visão também recorda o verificado na Argentina. Há dez anos a economia encontrava-se estritamente atada a um regime de convertibilidade com o dólar, que obrigava a deprimir os rendimentos para assegurar o pagamento da dívida. Quando esse sistema explodiu os ultra-liberais propuseram reforçá-lo mediante uma dolarização completa (como no Equador ou no Panamá). Anulava-se a moeda nacional, retirando ao Estado o último recurso vigente para contrapor-se ao ajustamento deflacionário.
Os partidários desta contracção esgrimiam os mesmos argumentos que actualmente circulam na Grécia, para manter a qualquer preço a submissão ao euro. Afirmavam que a dolarização assegurava a confiabilidade da moeda e a consequente afluência dos capitais externos exigidos para refinanciar a dívida. Com o desmoronamento da convertibilidade essa fantasia passou ao esquecimento.
É evidente que a política deflacionária empurra qualquer país para o abismo. O PIB da Grécia desmoronou desde o início da crise e registou uma nova derrocada de 5,5% no primeiro trimestre do ano. É muito oportuno recordar que a recessão argentina prolongou-se durante quatro anos e o produto industrial chegou a descer 11%, sob o peso de opressivas taxas de juro que frustravam cada assomo de reactivação.
Actualmente os neoliberais não podem apresentar nenhum cenário de saída da crise, uma vez que todos os seus modelos encontram-se em terapia intensiva. Já ninguém se recorda dos elogios que prodigalizavam à Argentina nos anos 90, mas estão muito frescas suas ponderações do esquema irlandês. Este ensaio transitou por todos os calvários que actualmente são promovidos para a Grécia.
Na Irlanda privatizou-se desde a energia até as telecomunicações, introduziram-se todos as desregulamentações promovidas pela ortodoxia económica e os efeitos fiscais estão à vista: quebras de bancos, socorros estatais, défice fiscal, uma nova sequência de supressão de empregos, quedas salariais e aumentos dos impostos indirectos [8] .
Também Portugal encaminha-se rumo ao mesmo desfiladeiro, à medida que um governo conservador tenta galantear com os banqueiros, subindo a aposta dos atropelos sociais. Já recebeu um resgate, ficou sem reservas e negoceia os vencimentos com a corda no pescoço que lhe colocaram os financeiros [9] .
Outro caso extremo de apertão deflacionário pode ser observado na Letónia, uma economia situada fora do circuito do euro. Desde a explosão da crise em 2009 o desemprego subiu até 23%, o PIB caiu 25%, os salários do sector público foram reduzidos nuns 30% e 75% dos trabalhadores sofreram cortes de rendimentos. Num clima de encerramento de escolas e hospitais a emigração massificou-se [10] . Estes cenários não deixam dúvida alguma sobre o carácter demolidor que gera o círculo vicioso do ajustamento.
INUTILIDADE DOS REFINANCIAMENTOS
A política deflacionária é frequentemente contraposta à continuidade dos refinanciamentos. Apela-se a sustentar o devedor com novas emissões de títulos, na expectativa de aliviar a carga futura da hipoteca. Uma variante deste tipo é promovida pelos partidários de emular a experiência latino-americana, com um "Plano Brady Europeu" de títulos a 20 anos supervisionados pelo BCE [11] .
Ainda que aparentem maior contemplação para com os devedores, estas iniciativas endossam as mesmas exigências de privatização, cortes de gastos sociais e esmagamento das pensões de reforma. Longe de reduzir a agonia financeira, estes programas eternizam o tributo da Grécia aos bancos.
É equivocado supor que este refinanciamento será mais digerível, se se efectua junto com medidas de regulação financeira, controle da especulação ou eliminação dos paraísos fiscais. A Grécia tão pouco conseguirá um alívio com a simples redução das taxas de juros, se persistirem os pagamentos aos credores. A dívida é tão monumental que nem sequer com um crescimento contínuo de 8% ao ano durante 20 anos conseguiria diminuir seu passivo para os parâmetros iniciais da União Europeia [12] .
A experiência argentina não deixa dúvida alguma quanto à inutilidade dos refinanciamentos. Todas as versões que se tentaram no país para manter a flutuar o barco da convertibilidade naufragaram em 2001. Ao prorrogar os compromissos de pagamento, esses remendos só adiaram a declaração formal de insolvência. Este mesmo cenário tende a reaparecer na Grécia [13] .
O refinanciamento – que os keynesianos ponderam – não se contrapõe à deflação, que os ortodoxos postulam. São duas variantes do mesmo suporte aos bancos. Enquanto a primeira opção procura potenciar os auxílios para evitar um tsunami de rupturas, a segunda alternativa alerta contra a deterioração fiscal que gera esse salvamento. O governo norte-americano enfrentou este mesmo dilema quando um dia decidiu encerrar o Lehman Brothers e na jornada seguinte recorreu ao financiamento ilimitado das entidades que entraram em colapso.
Os políticos social-democratas actuam como porta-vozes dos empréstimos contínuos frente aos seus pares conservadores, que levantam a voz contra a flexibilidade creditícia. Ambas as posturas divergem apenas na caracterização do mal menor para o capitalismo.
Nos momentos de crise aguda os sociais-democratas procuram escapatórias e tentam disfarçar seu alinhamento explícito junto aos bancos e contra os povos. Na conjuntura europeia essa máscara está a cair e os atropelos brutais contra os trabalhadores são aplicados sem nenhuma anestesia.
TRÊS ENSINAMENTOS
A cessação de pagamentos da Argentina prolongou-se durante mais de três anos. Afectou os credores privados, mas não os organismos multilaterais (o FMI conseguiu o cancelamento antecipado de todos os seus empréstimos). As negociações com os detentores de títulos realizaram-se em várias rondas. Em 2005 instrumentou-se uma troca com três opções de quitação entre 50% e 60% do valor original. Uma percentagem minoritária de credores não aceitou esta proposta e foi convocada para um segundo intercâmbio de papéis, que culminou recentemente.
O montante total da dívida argentina reduziu-se significativamente em comparação com as exportações e o produto (48% do PIB). Atenuou-se o horizonte imediato de compromissos e a metade do passivo ficou denominada em moeda nacional (com uma significativa porção das obrigações dentro do próprio sector público) [14] .
O ocorrido com a Argentina mostra que a suspensão de pagamentos é factível e conveniente, para qualquer devedor empurrado a uma situação de asfixia. A cessação parcial das contribuições oxigenou a economia nacional, durante o período crítico de recuperação que se seguiu ao incumprimento. Este alívio permitiu negociar em melhores condições financeiras a troca da dívida.
O resultado desta operação desinchou todos os fantasmas propagados pelos banqueiros para atemorizar os devedores. O país não ficou "fora do mundo", não perdeu mercados, nem se transformou num "pária da comunidade internacional". Os bens do país no exterior tão pouco sofreram confiscos. Todas as advertências que os financeiros esgrimiam foram diluídas sem pena nem glória.
Certamente o povo argentino sofreu uma terrível degradação do nível de vida. Mas esses sofrimentos foram anteriores ao incumprimento e motivados pelo cumprimento forçoso das exigências dos banqueiros. A cessação de pagamentos não acrescentou qualquer sofrimento adicional à sangria desse período.
Muitos economistas do establishment sustentam que o caminho "agressivo" seguido pela Argentina gerou mais adversidades do que o caminho "amistoso" transitado por outros países latino-americanos (como o Brasil, Uruguai ou Jamaica) [15] .
Mas esta afirmação não tem o menor fundamento. A América Latina atravessou muitas experiências de moratória e inclusive a Argentina viveu vários períodos de cessação concertada dos pagamentos (por exemplo entre 1988 e 1992). Nenhum dado sugere a conveniência deste curso. A negociação do incumprimento ou sua imposição de facto não reduz por si mesmo as restrições que o povo suporta.
A história económica contemporânea regista, além disso, uma incontável variedade de crises de pagamento, com processos negociados igualmente dolorosos. Inclusive casos muito acordados (como a Alemanha em 1953 ou a Indonésia em 1971) exigiram importantes contrapartidas aos credores.
Nos debates sobre estas peripécias convém reter as três grandes lições da Argentina para a Grécia. Essa experiência indicou em primeiro lugar a inquestionável conveniência de travar a sangria do devedor, mediante uma suspensão unilateral dos pagamentos. Também esclareceu a importância de escolher o momento mais conveniente para essa ruptura.
A Argentina declarou incumprimento de forma involuntária, quando o país ficou sem fundos. A Grécia poderia consumar esta acção antes de perder seus recursos. Tem a possibilidade de antecipar-se e actuar enquanto os credores afrontam o grande lastro de títulos incobráveis que acumulam nas suas carteiras. Não há que dar tempo aos financeiros para que transformem esses papéis em obrigações alheias.
Em segundo lugar é indispensável por em prática de imediato a auditoria da dívida. Na Argentina discutiu-se muito essa iniciativa, perante as denúncias esmagadoras que existiam acerca do carácter fraudulento do passivo. A dívida foi acrescentada com compromissos inexistentes que financiaram a fuga de capitais, com uma espiral dos juros e com uma grande absorção estatal de rupturas privadas.
Estas irregularidades comprovadas ficaram impunes. O lobby dos banqueiros bloqueou todas as tentativas de investigação e paralisou vários projectos parlamentares de revisão dos passivos. As consequências deste silenciamento saíram à tona em todos os debates posteriores acerca da dívida. Neste terreno, a Argentina ficou muito atrás do Equador, que implementou uma investigação esclarecedora.
Na Grécia existe actualmente a possibilidade de efectuar a auditoria. Esta acção permitiria anular a porção ilegítima dos passivos e facilitaria a constituição de um registo dos proprietários dos títulos. Esta identificação seria indispensável para determinar os direitos de cobrança. Já existe uma importante iniciativa para desenvolver essa investigação [16] .
A terceira lição da Argentina é a necessidade de nacionalizar os bancos e estabelecer um controle total sobre os movimentos de divisas e capitais. Estas medidas deveriam ser adoptadas antes de suspender o pagamento da dívida (ou modificar a taxa de câmbio). A Grécia está a tempo de, com estas acções, preservar os recursos do país.
Alguns economistas consideram indispensável romper de imediato com a adscrição ao euro. Mas a recuperação da moeda nacional exige primeiro assegurar as reservas, impedindo a fuga frenética de dinheiro que acompanharia qualquer viragem económico. Só com a intervenção dos bancos (e sua nacionalização posterior) e mediante um estrito controle de câmbios seria possível actuar contra o esvaziamento de divisas que rodearia a busca de uma nova soberania monetária.
Na Argentina não se adoptaram essas medidas e o resultado foi um colapso caótico da convertibilidade, em meio à inflação e ao empobrecimento popular. Em lugar de expropriar os bancos roubou-se os poupadores e dilapidaram-se fundos vultuosos (equivalentes a 12-14 pontos do PIB) no socorro aos financeiros.
É indubitável que qualquer política radical de choque com credores geraria custos e implicaria riscos. No caso grego é vital considerar como seriam feitas as importações, como se garantiria a continuidade do turismo e como se preservaria a actividade da navegação. Mas há que encarar esta avaliação, sem esquecer que o pagamento da dívida vaticina um horizonte muito superior de sofrimentos.
Alguns economistas deixam de avaliar as salvaguardas que são precisas para optar por outro rumo económico. Aconselham desvalorizar e sair do euro, sem mencionar a protecção das reservas e a necessária conversão dos bancos em entidades públicas. Esta atitude leva a um remédio que piora a doença. Basta observar o que já ocorre nos países que instrumentam políticas capitalistas fora do raio do euro. A Argentina é uma boa referência para analisar o que se pode fazer e o que é preciso evitar, para reconstruir a economia grega.
CAMINHOS DE RECUPERAÇÃO
Depois de chegar ao fundo, a economia argentina iniciou um processo sustentado de crescimento. Esta reflutuação apoia-se na ampliação das exportações e na restauração do consumo interno.
A fractura social da procura, a elevada inflação, a continuada fuga de capitais e o baixo investimento obstruem esta retomada e abrem sérias interrogações sobre a sua consistência. Mas é indubitável que a era pós-incumprimento é assinalada por um ciclo de reanimação, que induz muitos economistas a apresentar o país como um modelo a seguir pela periferia europeia.
Nesta tentação de imitação costuma-se esquecer que a recuperação argentina obedece a três razões específicas: a restauração da taxa de lucro, a valorização internacional das exportações e a ampla margem para aplicar políticas económicas expansivas.
O primeiro determinante surgiu ao fim do ajuste brutal gerado pela mega-desvalorização. Esta cirurgia depurou capitais, embarateceu salários e, como costuma ocorrer em certas conjuntas do ciclo capitalista, facilitou a recomposição do lucro.
Esta retomada foi assegurada pela reacção do sector externo. Uma economia parcialmente autónoma dos fluxos internacionais de capital pode manter certa desconexão do financiamento internacional. O quinto exportador mundial de alimentos gozou, além disso, dos melhores preços internacionais das últimas décadas para as vendas de soja.
A Argentina transformou-se num fornecedor privilegiado das economias asiáticas em ascensão, enquanto multiplicou seus intercâmbios com o Brasil e diversificou o seu comércio. Grande parte dos enormes rendimentos captados pelo estado durante os últimos anos foi utilizada para reanimar a procura interna. Por essa via substituiu-se o escasso investimento privado e ensaiou-se um esquema neo-desenvolvimentista de maior fomento à indústria e menor espaço para a valorização financeira [17] .
Se a Grécia entrasse numa cessação de pagamentos poderia repetir esta trajectória? É evidente que a economia mediterrânica não conta com os recursos naturais, nem o tipo de inserção internacional que permitiram a recuperação argentina. Mas ninguém imaginou há uma década que a economia austral entraria numa fase ascendente logo a seguir ao incumprimento. Supunha-se antes que esse episódio conduziria a uma derrocada apocalíptica. Confirmou-se que os vai-e-vens da conjuntura internacional são relativamente imprevisíveis e não trazem argumentos definitivos para optar por uma ou outra política económica.
É evidente que a Grécia está mais conectada ao curso geral da Europa do que a Argentina ao devir da América Latina. A primeira região opera como um motor auto-suficiente e a segunda mantém as suas amarras tradicionais aos principais centros da economia global.
Devido a esta elevada conexão com seu sócios europeus, a Grécia precisa complementar uma eventual moratória com acções regionais colectivas. O êxito de uma política radical exigiria medidas comuns com os vizinhos da periferia europeia. A batalha contra os credores exigiria obter um acompanhamento de Portugal, Irlanda, Islândia e outros países penalizados por banqueiros.
Durante a década passada este tipo de iniciativas conjuntas era discutido na América Latina, avaliando a proposta de formar um "clube de devedores". O objectivo era forjar um bloco de afectados para dobrar o poder dos financeiros. Mas em 2001 esta campanha havia perdido impulso e predominava um grande dispersão entre os países golpeados pelo saqueio da dívida. A situação europeia actual difere desse período latino-americano pelo alto grau de associação comunitária que se verifica no Velho Continente [18] .
Outra diferença importante é a inexistência de uma fronteira nítida entre situações de colapso na periferia e conjunturas de prosperidade no centro europeu. As economias intermédias da Espanha e Itália começam por exemplo a padecer a mesma ameaça de desmoronamento fiscal que afecta a Grécia ou a Irlanda. Por essa razão, o principal receio do momento é a eventual extensão da crise a esses países.
Neste quadro, a batalha para associar os devedores apresenta outras modalidades. Mas estas características só poderão revelar-se se algum país se puser de pé frente aos banqueiros e propuser a constituição de uma rede de solidariedade. A Grécia reúne muitas condições para liderar esse processo.
Só a moratória unilateral abriria a possibilidade de negociar com os bancos sem afectar o nível de vida popular. Para estabelecer um estrito limite de pagamentos, implementar políticas de investimento em áreas sociais e recompor a capacidade aquisitiva popular há que por em prática medidas mais audazes que as adoptadas há uma década pela Argentina.
A MESMA SUBLEVAÇÃO
A principal analogia entre a Grécia e a Argentina verifica-se no terreno da insubordinação popular. Ambos os países contam um rico historial de lutas sociais. O levantamento de Dezembro de 2001 foi herdeiro do Cordobazo (1969), da greve geral (1975), das paralisações contra a inflação (anos 80) e das mobilizações contra o desemprego (década de 90). Nas batalhas que trava o povo grego está presente o legado da guerra civil (1944-49), a resistência contra a ditadura (1973) e as acções da juventude (2008) [19] .
A seguir a onze paralisações incontáveis manifestações observam-se nas últimas semanas uma nova irrupção maciça. Multiplicam-se as ocupações das praças, os enfrentamentos com a polícia e a ultrapassagem das direcções sindicais [conciliadoras]. Tal como em Buenos Aires dez anos atrás, os militantes de Atenas organizam acampamentos, resistem aos desalojamentos e lideram assembleias populares. A juventude converge com os trabalhadores, forjando o mesmo reencontro que tiveram na América do Sul os piquetes dos desempregados com as caçarolas da classe média.
As palavras de ordem também se assemelham ("fora com os ladrões") ou as exigências ("não devemos, não pagamos, não vendemos") e existe o mesmo tipo de recusa aos conluios entre os oficialismo e a oposição conservadora.
O despertar popular veio à tona na Argentina quando se desmoronou o sermão neoliberal, que vaticinava um iminente "ingresso no Primeiro Mundo". A mesma ira explodiu entre os gregos, quando se dissiparam as expectativas criadas com a incorporação à União Europeia. Todos os analistas coincidem em caracterizar que a crise já ultrapassou completamente a esfera financeira e resolve-se nas ruas [20] .
Dez anos atrás a rebelião argentina travou o ajustamento, frustrou o programa deflacionário e bloqueou a dolarização. Também obrigou a implementar um projecto político que combina restauração do poder dos dominadores com concessões democráticas e sociais. A sublevação confirmou a utilidade da luta para reverter relações de força desfavoráveis, conceder legitimidade aos movimentos sociais e legalizar as greves. Permitiu travar a repressão brutal (que persiste na Colômbia ou no México) e contrariou a resignação dos movimentos sociais (que se observa no Uruguai ou no Brasil).
A rebelião argentina ficou na metade do caminho. Não expulsou os políticos corruptos, nem erradicou o lastro do bipartidarismo. Tão pouco impediu o enriquecimento dos mesmos capitalistas que lucraram com a convertibilidade. Mas condicionou toda a política externa e induziu a um manejo da dívida que limitou as apetências dos credores durante a mudança (canje). É importante ter em conta estes resultados quando se traçam comparações internacionais [21] .
A batalha popular que se trava actualmente na Grécia apresenta um carácter mais popular. A rebelião argentina fez parte de um ciclo sul-americano de luta, mas não explodiu junto com as sublevações da Venezuela, Equador ou Bolívia. As mobilizações gregas coincidem em contrapartida com uma crise geral do Velho Continente, que tende a desencadear reacções simultâneas em vários pontos dessa região.
Essas respostas começam a romper o isolamento das resistências nacionais e permitiriam superar o desconcerto que prevaleceu no início da recessão. A generalização da acção popular é o melhor antídoto contra a passividade que a social-democracia estimula e contra as campanhas racistas que a direita promove.
O recente protesto dos indignados espanhóis pode marcar um ponto de inflexão nesta intervenção. O movimento ganha carácter de massa à medida que suas exigências políticas ("democracia de verdade") e económicas (fim do socorro aos bancos) conquistam maior legitimidade e acompanhamento [22] .
A presença dominante da juventude nestes movimentos – e a nova utilização das redes sociais como instrumento de contra-informação – incentiva o contágio continental. Esta generalização pode repetir o efeito dominó, que marcou os levantamentos do mundo árabe.
Além disso o entusiasmo juvenil aquece as energias dos trabalhadores, tanto nos países que mantém uma grande mobilização social (França), como nos países que sofreram refluxos prolongados (Grã-Bretanha). Se reaparecer a confiança na resistência poder-se-á visualizar a forma de generalizar a batalha contra os credores, já iniciada por alguns países como a Islândia.
Em síntese, a chama grega estender-se-á pela Europa e o seu impacto definirá quem aguentará com as consequências da crise. Este processo é seguido com enorme atenção na América Latina. Muito poucas notícias se aguardam com tanta esperança como uma vitória popular na Europa.
|1| Uma descrição pormenorizada desta conjuntura em Economistas de Izquierda, "Propuestas socialistas para superar la crisis nacional", julio 2002, Ediciones Herramienta. Economistas de Izquierda, "Propuestas de reconstrucción popular de la economía", noviembre 2002.
|2| Blejer Mario, "Una quita mayor que la Argentina", La Nación, 10-7-2011.
|3| Esta assimetria é ressaltada pelos economistas do establishment argentino Redrado Martin, Prat Gay Alfonso, Marx Daniel, "Lo que Grecia puede aprender de Argentina, La Nación, 6-7-2011.
|4| Uma análise em: Toussaint Eric, ¿Se está resquebrajando la UE? También Toussaint Eric, "Ocho propuestas para otra Europa " www.cadtm.org, abril 2011.
|5| Ver Oviedo Jorge, "En el caso griego la solución argentina sería una catástrofe", La Nación, 24-6-2011. "El default argentino, eje de un debate con Krugman", La Nación, La Nación,
|6| Uma comparação contundente é apresentada por Navarro Vicenc, "Qué pasa en Irlanda y los otros PIGS", Revista Digital Sistema, 26-11-2010.
|7| Lapavitsas Constantinos, "Grecia se parece cada vez más a la Argentina", www.socialismo-o-barbarie.org , 1-7-2011, "Callejón sin salida", Página 12, 12-6-2011.
|8| O modelo irlandês também foi reivindicado na Argentina durante os anos 90. Ver crítica en Telechea Rubén, "Imitemos el milagro irlandés", Pagina12, 10-1-2001.
|9| Uma análise em: Bloco de Izquierda, "Sobre a crise e os meios da a vencer", 23 maio 2010.
|10| Ver Hudson Michel, "Huelgas contra un golpe de estado financiero", Sin Permiso, 10-10-2010.
|11| Attali Jacques, "La solución es un tesoro europeo", Clarín, 17-12-201. Roubini Nouriel, Mihm Stephen, "Los rescates no impedirán cuatro defaults europeos", La Nación, 29-5-2011.
|12| As propostas de refinanciamento em: Nair Sami, "Para Onde vai a Europa", El País La Nación, El País, 22-7-2011.
|13| Uma analogía en: Rapaport Mario, "Grecia en el espejo argentino", Página 12,
|14| Lucita Eduardo, "Ciclos de acumulación y dinámica de la deuda", Seminario CADTM AYNA- Propuestas soberanas y alternativas sociales frente a la deuda", Buenos Aires, 16- 17-9- 2010.
|15| Davis Bob, "Las lecciones que Europa puede aprender de América Latina", La Nación, 6-12-10.
|16| Ver: Mitralias Yorgos, Révolte populaire de masse en Grece, www.cadtm.org
|17| Katz Claudio, "Los nuevos desequilibrios de la economía argentina", Anuario EDI, n 5, septiembre 2010. Estabelecemos uma primeira comparação com o caso griego em: Katz Claudio, "Grecia 2010, Argentina 2001", 21-10-2010, www.combate.info.
|18| Este contexto é sublinhado por Weisbrot Mark, "Euro, el fin de un sueño", Página 12,
|19| Kuvelakis Statis "La caldera griega", www.vientosur.info/ 22-6-2011
|20| Rodrik Dani, "La duda es si Grecia evitará la senda argentina", La Nación, 19-6-2011, Garton Ash Timothy, "La claves es Alemania", El País, 20-6-2011. Friedman Thomas, "El choque de generaciones" La Nación, 18-7-2011.
|21| Katz Claudio, "De la rebelión popular al nacimiento de la nueva izquierda", Tercer Foro Nacional de Educación para el Cambio Social, Buenos Aires, 3/junio/2011.
|22| Antentas Josep María, Vivas Esther, Indignación masiva, alainet.org/active, 20-6-2011. 24-6-2011.Também Machinea José Luis, "Actuar antes que sea tarde", 20-7-2011. 16-12-11 y Krugman Paul, "El fantasma de Argentina en la crisis europea", 13-1-2011. O cálculo da gravidade do endividamento em: Vidal Folch Xavier, "Los mitos se derrumban", 30-5-2010.
27/Julho/2011
[*] Economista, investigador e professor. É membro do colectivo de Economistas de Izquierda (EDI). Sítio web: www.lahaine.org/katz .
O original encontra-se em http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=5875 e em
http://www.cadtm.org/Lecciones-de-Argentina-para-Grecia
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