O lixo é um lugar por excelência para inquirir sobre culturas passadas. No entanto, "não é preciso jogar-se em lixeiros para dar de cara com essas antigas mensagens. O passado está escrito no próprio corpo e pode ser lido não só nos cabelos e nas rugas, mas muito mais interiormente: no próprio genoma", conta Federico Kukso em artigo para o Página/12, 31-03-2007.
O genoma constitui "um arquivo quase inesgotável de histórias e lembranças de épocas" passadas, continua. Mas esconde também surpresas. Dos 100% do genoma, apenas 3% tem função aparente e codifica - fabrica - proteínas. E os 97% restantes? O que se esconde por trás do aparente "lixo de DNA"? Kukso relata que "o paradigma sistemático que vai ganhando força está associado à idéia de que o DNA lixo - os "textos absurdos" do livro da vida - na realidade não é tão imprestável mas que tem de fato uma função mecânica de acoplamento, para chamá-la assim, num funcionamento orquestral de todos os genes ao uníssono."
Segue a íntegra do artigo traduzido pelo Cepat.
As culturas mortas têm muitas maneiras de falar e fazer perdurar sua mensagem. Fazem-no através de pirâmides, monoblocos, estátuas, totens, papiros ou pedras crípticas decifradas com suor e lágrimas. Mas, acima de tudo, seu principal canal de transmissão é o lixo. Pode ser que seja um diálogo silencioso e até desagradável, mas é aí, no coração mesmo do consumido e do descartado, onde revelam sua mais autêntica forma de ser; não como se mostraram, mas mais como eram na realidade. Hábitos alimentares, formas de se vestir, estilos de caça, tudo está aí, aguardando aquele que não se deixa dominar pela sensação de asco, usa as luvas e se mergulha com gosto nas camadas geológicas de lixo e desperdícios.
Mesmo assim não é preciso preocupar-se muito com a limpeza. Ao fim e ao cabo, segundo se sabe há algumas décadas, não é preciso jogar-se em lixeiros para dar de cara com essas antigas mensagens. O passado está escrito no próprio corpo e pode ser lido não só nos cabelos e nas rugas, mas muito mais interiormente: no próprio genoma. Livro da vida, manual de instruções para construir e fazer funcionar o corpo humano, o conjunto de todos os genes humanos (pequenos segmentos de DNA que controlam uma função celular específica e que estão organizados linearmente em 23 pares de cromossomos) constitui um arquivo quase inesgotável de histórias e lembranças de épocas talvez não melhores, mas diferentes, de quando, por exemplo, os atuais 6,5 bilhões de indivíduos que circulam e envernizam o planeta Terra eram apenas criaturas unicelulares, vermes ou peixes que em algum momento tomaram o ímpeto e decidiram emigrar para terra firme.
Diz-se que a geração atual é afortunada, a única em toda a história da humanidade que terá o luxo de ler seu próprio roteiro, seu plano de construção (talvez o otimismo seja desmedido, afinal de contas também é a primeira vez que a espécie é tecnologicamente capaz de decidir sua autodestruição). O certo é que naquelas receitas químicas e codificadas das quais sai como resultado o ser humano - os genes, até pouco tempo atrás inacessíveis e misteriosos - ficaram guardadas o registro evolutivo do caminho percorrido pelas máquinas de sobrevivência que somos.
As surpresas e os golpes ao ego não demoraram a chegar, mal a caixa de Pandora - o próprio genoma humano - começou a se abrir. Não apenas expulsou do vocabulário científico a palavra "raça", mas reafirmou o parentesco íntimo e próximo com os chimpanzés (é correto dizer que o ser humano é chimpanzé em aproximadamente 98%). O sequenciamento do genoma humano tinha guardado outras surpresas: também revelou, por exemplo, que estamos mais próximos dos ratos do que dos gatos.
O segundo tombo ao amor próprio veio, ao contrário, não do lado da qualidade, mas da quantidade. Uma simples (mas drástica) redução fez tremer a auto-estima da humanidade: dos especulados 150 mil genes que constituíam um ser humano se caiu a um número muito mais modesto, mas nem por isso menos importante, 30 mil, em comparação com os seis mil da fermentação da cerveja Saccharomyces cerevisae, os 19.100 do nematóide [verme] Caenorhabditis elegans e os 26 mil da planta Arabidopsis thaliana. "Do ponto de vista bioquímico, não existem grandes diferenças entre uma couve e um rei", dizia o biólogo francês Jacques Monod.
Entretanto, as estocadas ao antropocentrismo não pararam aí. Quase sem muita pompa midiática, o Projeto Genoma Humano chegou também à conclusão de que cada indivíduo é, literalmente, um lixo. Assim é (quando seguimos ao pé da letra as definições conceituais da biologia molecar): dos 100% do genoma, apenas 3% tem função aparente e codifica - fabrica - proteínas. E os 97% restantes? A esse resto, cuja existência já se sabia há décadas ainda que não a sua proporção, o japonês Susumu Ohno o batizou em 1972 de "junk DNA" (ou "DNA lixo") ao passo que o sempre polêmico Richard Dawkins o etiquetou como "DNA egoísta", uma confusão de seqüências repetitivas e aleatórias que nadam em todos os cromossomos e até há pouco tempo consideradas imprestáveis, uma espécie de cenografia de fundo que cobiçava os genes protagonistas.
Há, inclusive, cientistas que se referem ao DNA lixo como "pseudogenes", "genes satélites" ou como resíduos de vírus ancestrais que invadiram o genoma humano há milhões de anos e, seja por comodidade, seja por conveniência, ali ficaram acampados; uma hipótese que encaixa perfeitamente com os diálogos da trilogia Matrix em que, em meio ao pastiche filosófico e pós-modernista, se afirma que o ser humano não é mais que um vírus informático que deve ser aniquilado. Em 1999 se conheceu, por exemplo, que um destes invasores é o retrovírus HERV-K (Human Endogenous Retrovirus-K) [Retrovírus endógenos humanos-K], do qual há 30 a 50 cópias distribuídas nos cromossomos.
A questão é que estas seqüências repetitivas (chamadas endonucleases), que até bem pouco tempo eram consideradas recheio ou meras atrizes de distribuição, estão atraindo cada vez mais a atenção. Presume-se inclusive que é ali que se deve enfocar o olhar para advertir os motores da evolução: de fato, há endonucleases especiais e diminutas chamadas "Alu" (os membros dessa família têm um comprimento de cerca de 300 pares de bases) que, segundo cientistas do Centro Sidney Kimmel de San Diego (Estados Unidos), ao brincar com o genoma põem muitos genes dispersos sob um novo controle que os ative um pouco mais, um pouco menos, segundo sua trajetória de vida. Nessa capacidade de saltar de um lado para o outro do genoma talvez more a resposta à questão de por que a espécie humana não é como era há três milhões de anos e talvez não o seja daqui a três milhões de anos.
Uma vez enterrada a idéia causal e determinista de que a cada gene (e sua modificação) correspondia uma doença, o paradigma sistemático que vai ganhando força está associado à idéia de que o DNA lixo - os "textos absurdos" do livro da vida - na realidade não é tão imprestável mas que tem de fato uma função mecânica de acoplamento, para chamá-la assim, num funcionamento orquestral de todos os genes ao uníssono.
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