Até aqui o estonteante crescimento chinês foi benéfico para a economia mundial, em especial para os países da periferia condenados a exportar produtos básicos. A grande questão é saber se este ritmo acelerado irá se manter. A opinião é do coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), Gilberto Dupas em artigo para o jornal O Estado de S.Paulo, 15-09-2007.
Eis o artigo.
Há razões de sobra para dúvidas sobre o futuro da China como protagonista na nova ordem - ou desordem - global. Responsável por boa parte do crescimento dos mercados mundiais dos anos recentes, o casamento estratégico da China com os EUA fez disparar o preço das matérias-primas, enquanto gerava reservas internacionais em dólares que sustentaram o gigantesco déficit norte-americano.
Agora, com o estouro de parte da bolha imobiliária que sustentava altas taxas de consumo naquele país, resta descobrir: se a demanda endógena chinesa, somada à da Índia, será suficiente para manter elevado o crescimento mundial, ou se ele se acomodará num patamar mais baixo; e se o estouro do final de junho já fez o ajuste ou outras bolhas maiores explodirão. Já que ninguém pode garantir boas respostas, teremos de viver de especulações, incluindo saber - no caso de um agravamento - se o sistema global consegue continuar socializando os prejuízos entre os jogadores menores, enquanto sustenta os grandes bancos.
Até aqui o estonteante crescimento chinês foi benéfico para a economia mundial, em especial para os países da periferia condenados a exportar produtos básicos. Nestes seis últimos anos, os preços das principais commodities metálicas (níquel, cobre, alumínio e zinco) haviam subido em média 250%; os das energéticas (gás, petróleo e carvão), 100%; e os das agrícolas (milho, soja, açúcar e café), 60%. Isso tinha sido suficiente para garantir um crescimento médio das exportações de Brasil, Bolívia, Chile, Equador, Peru e Venezuela de 150%; o que permitiu um aumento das reservas internacionais de Argentina, Brasil e Venezuela ao redor de 120%, transformando vários países da América Latina de devedores em aplicadores líquidos de recursos no exterior. Será que a festa acabou? Ficamos muito a depender de como se comportará a China no médio e longo prazos.
No artigo Impasses na lógica global?, que escrevi para esta página em dezembro, eu alertava para as dificuldades de China e Índia manterem as trajetórias atuais de altíssimo crescimento. Supondo que essas duas nações apenas pretendessem atingir, em dez anos, um padrão de vida equivalente à média atual do Brasil e do México, países ainda pobres, eu mostrava que seria necessário a economia global gerar um PIB adicional no período próximo de US$ 12 trilhões (28% do total), ou seja, equivalente ao atual dos EUA; o que provocaria um impacto brutal em recursos naturais, matérias-primas, poluição ambiental e efeito estufa em nível planetário. Não podemos esquecer, também, a possibilidade de graves tensões sociais e políticas na própria China. Imagine-se, então, se aceitarmos alguns delírios que andam por aí.
Em ensaio preparado para o National Bureau of Economic Research em junho, Robert Fogel - diretor de centro de pesquisa da Universidade de Chicago - projeta, a partir de metodologia que considero equivocada, seu cenário provável para 2040: PIB (em PPPs - Purchase Power Parity) da China em US$ 123 trilhões; dos EUA, em US$ 42 trilhões; e da União Européia, em apenas US$ 15 trilhões. Isso significaria uma China brutalmente hegemônica, com 40% do PIB global, e uma decadência plena da Europa. China mais Índia e Sul da Ásia (exceto Japão) seriam então 64% da economia do mundo! São os absurdos a que levam projeções de longo prazo contendo vícios de origem.
No outro extremo, há céticos radicais que iniciam por considerar uma falácia as atuais estatísticas oficiais chinesas. Lester Thurow, aplaudido professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), em artigo aqui publicado há 20 dias, garante que o crescimento real da China tem sido entre 4,5% e 6%, e não de 10%. E conclui, com convicção, que somente o século 22 talvez seja o da China.
Vê-se, assim, como as análises sobre a China são contraditórias e mostram baixa compreensão sobre as razões do “milagre chinês”. Critica-se o “arremedo de democracia” do país - comparada aos “padrões ocidentais” - e um Estado centralizador e autoritário. Em relatório recente, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) afirma que o maior obstáculo para a China ser uma força global em ciência e tecnologia é o predomínio estatal em pesquisa e desenvolvimento (P&D). Mas reconhece os impressionantes avanços desde os anos 1970 que dão aos chineses o segundo lugar em pesquisas inovadoras, apenas atrás dos EUA.
Um bom sintoma desses avanços são as espantosas revelações de que hackers a serviço do Exército de Libertação do Povo estariam invadindo sistemas-chave sensíveis dos governos norte-americano, alemão e britânico. Como se vê, são justamente o Estado e a política chineses - com suas idiossincrasias - que fazem possível até aqui o grande fenômeno de crescimento e de inovação; e permitem manter sob controle uma massa enorme de “novos miseráveis com telefone celular”, entretidos pela possibilidade remota de uma ascensão social. O filme Em Busca da Vida, de Jia Zhang-Ke, é um precioso ensaio impressionista sobre essa delicada questão.
A China é, pois, um gigantesco “dragão equilibrista” que tanto pode chegar ao fim de 30 anos disputando a hegemonia mundial com os EUA como queimar com seu hálito incandescente sua própria corda, esborrachando-se no chão e espalhando tremores sísmicos intensos pelo mundo afora. O cenário intermediário mais benévolo para a economia global seria um crescimento chinês mais moderado, da ordem de uns 6% ao ano, conduzido por um Estado ainda forte e centralizador, com competência para controlar as intensas tensões políticas e sociais que o capitalismo gera, permitindo aos poucos processos democráticos mais intensos. Haja talento para conduzir um processo dessa complexidade.
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